Antropólogos repudiam tratamento dado ao seu trabalho pela mídia
Carta Aberta da Associação Brasileira de Antropologia – ABA
No último dia 20 [de novembro] a Associação Brasileira de Antropologia – ABA assinou novo termo de cooperação com Ministério Público Federal – MPF, comprometendo-se a indicar peritos para a elaboração de laudos envolvendo demandas de minorias em processos judiciais. A ABA expressa aqui a satisfação de estar assim contribuindo para ampliação das possibilidades de que indígenas, quilombolas e outras minorias exerçam o direito, previsto em nossa constituição, de serem efetivamente ouvidas. Mas nossa Associação também não pode deixar de aproveitar esta oportunidade para expressar a indignação dos antropólogos com a maneira pela qual nosso trabalho tem sido tratado na imprensa, que por preconceito ou por interesses menores contra os grupos que têm sido objeto de nossos laudos periciais, tem faltado com o respeito às nossas atividades e, frequentemente, negado nosso direito de sermos ouvidos.
A antropologia, enquanto disciplina, tem uma longa trajetória na critica ao etnocentrismo e aos preconceitos, instrumentos que são do obscurantismo e da negação do desenvolvimento humano. Neste sentido, um dos principais responsáveis pelo sucesso da disciplina tem sido a sua capacidade de esclarecer o que o etnocentrismo e os preconceitos escondem. Como, por exemplo, o sentido da organização social e das praticas culturais de nossas sociedades indígenas.
Mas não é só isto, e aqui é preciso chamar a atenção para um aspecto particularmente presente na ABA e na Antropologia Brasileira de uma maneira geral. Trata-se da aguçada consciência dos antropólogos brasileiros quanto às implicações ético-morais do etnocentrismo e dos preconceitos quando estes se misturam com relações de poder, e este é precisamente o caso da relação com as minorias. Isto é, uma arbitrariedade cognitiva que inviabiliza a compreensão transforma-se numa arbitrariedade normativa, caracterizando práticas de desrespeito e de abuso a direitos de todo o tipo. É a clara percepção do significado e implicações deste tipo de agressão que tem marcado a atuação política da ABA e da comunidade de antropólogos brasileiros em defesa de minorias contra as arbitrariedades do Estado e de grupos poderosos que, por incompreensão ou por interesses econômicos, frequentemente implementados em nome de políticas de desenvolvimento, não medem esforços para impor sua vontade e seu ponto de vista.
Deste modo, é importante distinguir este tipo de atuação política daquela identificada com interesses partidários, ou mesmo daquelas que dão suporte aos movimentos sociais. Os antropólogos, como os demais cidadãos brasileiros, têm suas opções políticas, que são diversas, e uma parte deles, certamente, têm militância política em partidos ou em movimentos sociais específicos. Entretanto, quando se expressam em nome da ABA, ou quando atuam como peritos em laudos para a justiça a dimensão política de sua atuação se restringe à defesa dos princípios ético-morais mencionados acima, e que dão suporte ao combate às arbitrariedades nos planos cognitivo e normativo. É assim que defendemos os direitos de indígenas, quilombolas e de outras minorias de serem ouvidos, compreendidos e respeitados. Este é o objetivo de nossos laudos. Mesmo quando antropólogos atuam a partir de outros engajamentos, inspiram-se nestes princípios tidos como consensuais na disciplina.
A observação destes princípios e objetivos não significa, evidentemente, que os antropólogos tomam acriticamente o que dizem os sujeitos da pesquisa ou dos laudos periciais, indígenas e quilombolas por exemplo. Nossos laudos e monografias procuram reproduzir apenas o que somos capazes de fundamentar à luz das teorias e dos instrumentos de produção de verdade de nossa disciplina. Como tem sido argumentado por vários colegas, no que concerne aos laudos periciais sobre território, o objetivo é compreender a relação do grupo em tela com a área que ocupa, assim como expressa em sua organização social, em sua visão de mundo e em suas praticas culturais. É a esta articulação, portanto, que os laudos periciais procuram dar sentido, sempre apoiados em conhecimento produzido pela nossa disciplina, tornando inteligível para a justiça as demandas do grupo. Tal empreendimento é muito distante do que tem sido divulgado equivocadamente na mídia como uma simples reprodução da afirmação de vontade do grupo ou de uma parte dele. Embora os antropólogos não pretendam ter a palavra final sobre demandas de reconhecimento de identidade étnica ou cultural, e apoiemos a Convenção 169 da OIT no que concerne ao valor da auto-identificação, defendemos a capacidade de nossa disciplina em fundamentar o sentido e tornar inteligível a relação dos grupos envolvidos nos laudos com o território pleiteado.
Finalmente, gostaria de repudiar, com veemência, as alegações de que os laudos periciais produzidos por antropólogos seriam motivados por outros interesses, ou que se limitariam a reproduzir a opinião dos beneficiados. A ABA está e sempre esteve aberta ao diálogo com a sociedade, mas exige respeito ao saber produzido pela nossa disciplina, assim como à honestidade, à seriedade e aos compromissos éticos dos antropólogos que atuam na elaboração de laudos periciais.
Luís R. Cardoso de Oliveira
Presidente da ABA
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