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Procurador federal fala sobre regularização do quilombo Mata Cavalo

Quilombolas

O procurador federal junto ao Incra fala da regularização das terras de remanescentes de quilombos no Brasil a partir das experiências de Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento (MT).

Pergunta: Em que fase se encontra o processo de Mata Cavalo?

Resposta:Foi publicado o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da área quilombola e existem algumas notificações feitas posteriormente, de pessoas que estão ocupando frações de terra dentro da área. O prazo final para apresentação de contestação a esse relatório se esgota dia 25 de setembro.

P: O que se pode esperar após este prazo?

R: A partir daí, o CDR (Comitê de Decisão Regional) julgará as contestações elaboradas. O CDR, entendendo que o laudo antropológico e o Relatório de Identificação e Delimitação estão corretos, inicia o processo de desapropriação. Começa com um laudo de vistoria e avaliação e depois vai à publicação do Decreto Presidencial, declarando a área de interesse social para fins de reforma agrária.

P: O reconhecimento das terras quilombolas também é entendido como reforma agrária?

R: Sim, a instrução normativa nº 20 do Incra permite à Superintendência Regional adotar medidas visando a obtenção dos imóveis que possuam justo título, mediante instrumentos de desapropriação previstos no art. 184 da Constituição Federal. Um exemplo: uma grande área particular improdutiva que porventura tenha justo título incidente no território quilombola de Mata Cavalo. O procedimento é o 184, desapropriação para efeitos de reforma agrária. Sendo essa área considerada produtiva, ela é insuscetível de desapropriação para efeitos de reforma agrária, aí o procedimento é o art. 216, § 1° da CF, que fala do patrimônio histórico e cultural.

P: Já existe um decreto de reconhecimento da área?

R: O que existe da área é um laudo antropológico e o certificado emitido pela Fundação Cultural Palmares, que inclusive titulou, só que essa titulação foi declarada nula.

P: Lucena, já que mencionou os títulos, o que é possível adiantar sobre a legitimidade dos títulos referentes ao quilombo de Mata Cavalo?

R: O Incra ainda está fazendo o levantamento da cadeia dominial e a gente só vai poder fazer uma análise concreta da situação da área e da licitude dos títulos depois dessa cadeia dominial completa. No levantamento da cadeia dominial inclui-se o que se chama de destaque patrimonial. Destaque patrimonial é quando a terra deixa de ser pública – porque pertence á Coroa – , deixa de ser da Coroa, passa para os estados e daí passa a pertencer a particulares. As terras que não foram “doadas”, aos particulares. As terras que não foram “doadas”, aos particulares, ou seja, que os particulares não adquiriram da Coroa, são aquelas chamadas terras devolutas, portanto pertencem aos Estados. Tem muita terra arrecadada pelo Intermat (Instituto de Terras de Mato Grosso), terras devolutas. Então, analisando o título dessas terras arrecadadas que pertencem ao Estado, não se indenizará a terra nua, só se porventura houver benfeitorias úteis e necessárias, de boa-fé. Mas Mata Cavalo está na pendência desse prazo final para contestação do relatório pelos particulares. Só depois chegaremos ao processo de desapropriação, com as vistorias, o laudo de avaliação, quando, bem claro, haja justo título.

Patrimônio seja transferido aos sucessores. Os juízes ainda tratam a questão agrária em cima do Código Civil brasileiro, civilista, ou seja, de propriedade. A questão agrária, quilombola, esbarra nesse viés. Mas nós temos uma saída, uma alternativa bastante viável, que é tratar a questão quilombola em nível internacional, através de organismos internacionais, buscando instrumentos adequados inclusive para levar as causas junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com os direitos humanos básicos, fundamentais, sendo violados- e não são direitos individuais, são direitos coletivos-, entra a questão de despejo forçado. Quando determinados grupos étnicos, culturais são desalojados do seu território – ainda que em cima de uma lei válida dentro de um país – isso é tratado pela ONU como desejo forçado. Nessa questão a gente não pode, no meu ponto de vista, ter simplesmente um ordenamento jurídico vigente como norte. Se for só pela questão da legalização, a Alemanha nazista foi toda embasada juridicamente e em tese houve a legitimidade de existir, porque todas aquelas leis segregacionistas, todas elas, foram aprovadas pelo parlamento alemão. E mais que isso, foram submetidas ao referendo popular e a população alemã referenciou. Então o direito positivo nem sempre deve ser levado ao extremo, nem sempre ele atende os interesses sociais ou pelo menos aos direitos humanos básicos fundamentais.

P: O fundamento para tratar a questão dos quilombolas é a resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)?

R: A OIT 169 reconhece os territórios dos povos indígenas, tribais e comunidades tradicionais e o direito deles viverem na sua forma tradicional, que eles têm em memorial. Ela reconhece os direitos que essas etnias, que esses povos, têm ao seu território, não só aos territórios que eles estejam efetivamente ocupado, mas aqueles territórios necessários pra sua reprodução física e cultural futura, portanto não é só uma questão de espaço geográfico, de posse momentânea. O território é aquilo necessário para a expansão. Antes da OIT 169 havia a OIT 107 que dizia o seguinte: que os povos autóctones, indígenas, tribais, deveriam gradativamente ser integrados à sociedade maior, dos seus respectivos estados. Após a resolução 169 da OIT, mudou radicalmente, ou seja, essa (resolução) já é de tendência plural, pluralista, eles querem viver como eles bem entendem. Os laudos antropológicos dos quilombos são apontados, cada um, com um sistema muito peculiar na questão do uso da terra, porque eles têm a terra como valor de uso, jamais como valor de troca, diferentemente do branco (quando eu falo entre aspas), que se apropria ou adquire uma propriedade e tem a terra como valor de troca, como valor de mercadoria. Já na questão quilombola nós temos os membros da comunidade, temos a terra como seu valor de uso, ou seja, aquilo que ele pode ter da terra, aquilo que ele pode extrair da terra para a sua sobrevivência, e eu até vou mais além, temos a idéia de pertencimento do solo, o solo não pertence a ele, ele pertence ao solo. Há uma posse muito superior à mera detenção física da coisa, que a gente denomina de posse espiritual, o vínculo com território já vem da memória genética ancestral. Esse vínculo permanece ainda que ele esteja muito longe, distante, afastado da terra por pressões socioeconômicas. Uma característica muito peculiar ao cultivo da terra, do trabalho é o muxium, uma espécie de mutirão, de trabalho conjunto, que é muito interessante.

P: Lucena, a expectativa é de que a erra, daqui a algum tempo, esteja na posse dos quilombos. É isso mesmo?

R: É, a expectativa é boa. Tudo vai depender da nossa agilidade. Nós temos três grandes áreas, a fazenda São Carlos, fazenda Romale e Ourinhos. Nessas, provavelmente teremos litígio judicial, mas com certeza, e eu acho que o juiz já deixou bem claro, somente acerca de valores. A discussão não vai girar em torno de “é terra quilombola, não é terra quilombola”. Pelo que eu entendi é terra quilombola, o juiz está entendendo assim, o laudo elaborado pela perita do juízo confirma: é terra quilombola. Então a discussão que possa se dar doravante é em cima de valores. Com isso a gente garante, com certeza, a posse dos territórios dos quilombolas de Mata Cavalo.

P: O que você acha que está mudando em relação à questão quilombola e o judiciário? Como o judiciário tem se posicionado?

R: É uma questão ainda muito nova. Nós não temos ainda uma posição dominante no judiciário brasileiro. A tendência, por enquanto, é que grande parte dos juízes ainda trate a questão agrária sob a ótica do Direito Civil, e não é. É uma questão bem mais complexa, a questão agrária envolve interesses  individuais, envolve interesses coletivos e a questão quilombola muito mais. Essa ótica individualista – que vem da ordenação do direito comum, que é mãe dos três pilares de sustentação do Código Civil brasileiro: família, contrato e herança – gira em torno do que se chama propriedade, patrimônio, ou seja, o indivíduo adquire capacidade para formar uma família, adquire capacidade para realizar contratos, para adquirir patrimônio, para que esse…

P: De que forma a resolução 169 da OIT tem sido entendido pelo direito brasileiro?

R: Até dezembro de 2004 toda convenção, acordo, tratado ou pacto internacional assinado pelo estado brasileiro entraria na nossa legislação como legislação ordinária, uma lei comum. A partir da Emenda Constitucional de dezembro de 2004, quaisquer tratados, pactos internacionais, equivalem a emendas constitucionais, fazem parte da nossa Constituição. Ocorre o seguinte: há duas teorias, dois entendimentos. O primeiro entendimento é que os tratados e as convenções assinadas anteriormente a essa Emenda Constitucional têm status de lei ordinária. Mas isso seria absurdo do meu ponto de vista. Outro entendimento é que a partir dessa Emenda Constitucional, houve a recepção desses tratados, convenções, pactos, acordos, então todos eles valem como Emenda Constitucional. Sendo assim a OIT 169 é parte integrante da nossa Constituição, superior, portanto, a qualquer legislação fundiária existente. Mas essa ainda é uma corrente minoritária. Um exemplo: se o Brasil celebra um tratado estabelecendo, por exemplo, a proibição de um país importar produtos confeccionados com mão-de-obra escrava – o que é muito bom, ter status jurídico superior à Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma vez que aquele decorre desta – , esse tratado vale como Emenda Constitucional. Agora, a Declaração sobre Direitos do Homem tem status de lei ordinária, não dá, né! Uma coisa completamente absurda! Não te parece absurdo isso? Então, existe uma rediscussão – e eu acho difícil levar essa tese ao poder judiciário – de que esses tratados, acordos, pactos assinados pelo Brasil, que foram recepcionados, valham como Emenda Constitucional. Vai ser uma batalha jurídica esse tipo de reconhecimento.

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