Quilombos do estado são pauta de Revista Batucadas Brasileiras
QUILOMBOS: Sonhos e resistência na luta pela vida e pela terra
por Hugo Naidin
Dona Madalena oferece caldo de cana para quem chega com sede. Corta a cana na hora, com o facão que traz à cintura. Mói no engenho que seu marido construiu. Os braços septuagenários rodam a manivela com dificuldade, mas nem por isso precisa de ajuda. A farinha também é ela quem prepara, controlando a prensa na casa de forma, logo ao lado da sua. Dona Madalena foi a primeira artesã da comunidade e até hoje vive das folhas e troncos que recolhe na mata para fazer chapéus e rostos. Sorridentes como ela própria. A vida é boa porque a gente dorme sossegado.Nem sempre foi assim. Dona Madalena mora na comunidade Campinho da Independência, na cidade de Paraty, Sul Fluminense, Rio de Janeiro. O Campinho, como é chamado, é o único quilombo do estado com Título de Propriedade da Terra, outorgado pelo Governo do Rio em 21 de março de 1999. A política de regularização das áreas quilombolas foi iniciada há dez anos em nível nacional, mas avança com especial lentidão no território fluminense. Isto se deve não apenas à significativa quantidade de comunidades, mas principalmente à diversidade de interesses em jogo. Afinal, a questão fundiária não é um problema de escassez de terra, mas de aproveitamento, portanto precisa de respostas que vão além da doação física. Quando o Estado concede o título de propriedade, está também reconhecendo uma dívida social que, deste modo, apenas começa a ser quitada. Um processo legítimo e eficaz deve incluir mecanismos que garantam a preservação da história e do indivíduo quilombola. A concessão de direitos é dada com a equivalente cobrança de deveres.
O Campinho tem 287 hectares, onde estão fixadas 110 famílias, atualmente na quinta geração de descendentes das escravas conhecidas como Vovó Antonica, Tia Marcelina e Tia Luiza, que tiveram a terra doada por seus antigos senhores. Em 1971, a criação do Parque Nacional da Bocaina impôs à comunidade a fiscalização de guardas-florestais. A partir de 1973, a construção da rodovia Rio-Santos (BR 101) supervalorizou as terras do município, atraindo auto denominados proprietários com vistas a empreendimentos imobiliários. Diante da ameaça de grileiros, em 1975, a população fundou a Associação de Moradores do Campinho da Independência (Amoc), filiada ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Durante a década de 80, os governos estadual e federal também passaram a disputar a região, mas em 1999 o processo, a cargo da Fundação Cultural Palmares, foi concluído favoravelmente aos quilombolas.
Seu Valentim é marido de Dona Madalena e bisneto de Tia Luiza. Ele trabalhou no Sindicado durante 12 anos, tendo chegado à Diretoria estadual. Sua experiência na organização foi muito importante para a conquista da titulação, mas faz questão de lembrar os companheiros, todos já falecidos. “Agradeço quando o povo diz que sou responsável, mas muitos colegas lutaram comigo, porque as coisas só vão pra frente quando existe união, diz. Ele conta que naquela época o Sindicato tinha mais força, porque o número de trabalhadores rurais no estado era grande. ~gente era muito conhecido e dava todo o apoio que o pessoal precisasse. Quando o advogado não tinha condição de resolver a questão, a gente mesmo papeava os homens. De fato, os argumentos judiciais às vezes não são suficientes para comprovar determinados direitos.
Dona Maria Adelaide, contemporânea de Seu Valentim, é bisneta de Vovó Antonica. Ela própria teve nove filhos e uma porção de netos. Suas lembranças mais remotas dizem respeito ao trajeto de quatro horas a pé do Campinho a Paraty, com o saco de farinha na cabeça. Dona Adelaide fala muito baixinho, como quem já brigou demais. Minha vida era trabalhar na roça de enxada, capinar cana, plantar milho, feijão. A farinha cada um fazia na sua casa. A mandioca agora ninguém mais planta, compra tudo na cidade. Eu também apanhava caranguejo, cascudo, mas da última vez que fui no mangue meu filho ainda era pequeno; o avô tocava cometa e a gente ia buscar os peixes. Era um lugar atrasado, mas tinha muita fartura. Quando me entendi por gente essa terra não tinha dono, mas com a estrada todo dia passou a chegar alguém aqui. Eu já podia ter saído, mas gosto daqui, porque nasci e fui criada. É onde vou acabar meus dias de vida, conforme Deus e Jesus Cristo. É um orgulho que eu tenho.
A economia local sempre foi baseada na agricultura familiar, trabalhada em regime de mutirões. Sementes, bambus, bananeiras, taboas e coqueiros são também matérias-primas para o artesanato, importante fonte de renda da comunidade. Com o projeto Manoel Martins, financiado pelo Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, o Campinho da Independência se constituiu num Ponto de Cultura. Assim, oferece diversas atividades de resgate e de formação cultural, como oficinas de Capoeira AngoIa, de percussão e confecção de instrumentos, de cerâmica e cestaria. Outro convênio foi firmado com a Petrobras e visa o desenvolvimento do turismo regional, através de arranjos auto-sustentáveis de produção agrícola e cultural. Vagner do Nascimento, o Vaguinho, é presidente da Amoc e explica a razão da posição dianteira do Campinho na conquista do título. A história de todos os quilombolas é uma história de luta pela terra. No nosso caso acho que começamos mais cedo; assim que se instrumentalizou a lei demos entrada na documentação. O último estágio deste processo foi em 2003, com a criação da Associação das Comunidades de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), presidida por Ronaldo dos Santos, também nascido no Campinho.
Desde 2004, a responsabilidade pela regularização, demarcação e titulação dos quilombos – chamados oficialmente Comunidades Remanescentes de Quilombos – pertence ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), subordinado ao Ministério da Reforma Agrária (MDA). O processo não exclui a participação efetiva dos líderes comunitários, conforme disposto no Art. 6 do Decreto 4887 de 20/11/2003 da Constituição Federal. Mas os órgãos que vêm tratando da questão quilombola em âmbito nacional envolvem 17 Ministérios e quatro Secretarias com status de Ministério, ou seja, ligadas diretamente à Presidência da República. Juntos, compõem o Programa Brasil Quilombola, criado pelo governo atual e coordenado pela Secretaria Especial da Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir). Entre as ações do projeto está a catalogação de todos os quilombos do país, sob responsabilidade da Fundação Palmares, que já mapeou cerca de 750 comunidades – a estimativa é de que o número total seja de duas mil.A cantora Sandra de Sá está pessoalmente envolvida nesta pesquisa. A convite da Ministra da Seppir, Matilde Ribeiro, ela e outros músicos, como Martinho da Vila, têm visitado os quilombos com a intenção de conhecer melhor as origens do som que produzem. Somos muito influenciados, mas quase sempre sem saber. Os quilombos não precisam do nosso carimbo; acho que o povo brasileiro é que precisa conhecer melhor de si. Nosso mistério está guardado nos quilombos, diz Sandra. A cantora, que tem 26 anos de carreira e está finalizando o próximo disco, pretende transformar a experiência nas comunidades num DVD documental, como parte do projeto Música Preta Brasileira que realiza desde 2002, ao lado dos cantores Toni Garrido (do grupo Cidade Negra) e Zé Ricardo. E quando falo em música preta não estou me referindo só à cor, mas à origem africana; porque a música brasileira começa e termina no tambor.Neste sentido, merece destaque o Quilombo de São José da Serra, na cidade de Valença, interior do Rio, onde um importante centro de Jongo, atrai bailarinos e instrumentistas de todo o estado. A comunidade está na sétima geração desde que os primeiros escravos foram trabalhar nas lavouras de café da fazenda São José. São 16 famílias numa terra que se encontra ainda em litígio, não havendo definição quanto à sua delimitação. Os conflitos se iniciaram há mais de quinze anos, quando o novo proprietário, que não pertence à família do proprietário que teria feito a primeira doação verbal, passou a restringir as práticas religiosas e as culturas de subsistência comuns na região. Casos desse tipo não fazem parte do documentário de Sandra, que por outro lado não deixará de mostrar a alegria de quilombos onde apenas há pouco tempo chegou a luz elétrica; assim como a tristeza de outros que não dispõem sequer de água potável. O foco das filmagens, contudo, está mesmo na questão artística. Porque a realidade cultural de um povo é o seu folclore, justifica Sandra. A afirmação foi testemunhada pela historiadora Emília Viotti da Costa em seu livro Da senzala à colônia, no capítulo em que trata da vida dos escravos na zona urbana. O escravo trabalhava ao som de uma toada rítmica ou de chocalho. Cantavam os barqueiros, cantavam os carregadores; nas horas de repouso, aglomeravam-se nas praças ou junto aos chafarizes e ao menor pretexto faziam sua batucada, com instrumentos improvisados: cacos de pratos, pedaços de ferro, conchas ou pedras, latas e paus. Às vezes, o canto era acompanhado de uma pantomina, representando quase sempre histórias de amor. Os de Angola eram os mais dados à música, notabilizando-se por instrumentos, tais como a marimba, a viola de AngoIa, o violão e o urucungo. Às vezes, os ajuntamentos degeneravam em pancadaria e as autoridades, para t evitar essas desordens, colocavam soldados a montar r guarda junto aos chafarizes. Chegou-se mesmo a estabelecer um regulamento no Rio de Janeiro proibindo que fizessem barulho.Administrador, advogado e pós-graduado pela I Universidade de Brasília e University of Essex, da Inglaterra, com Especialização em Direitos Humanos, Cláudio Braga está há 33 anos no Incra, os últimos dedicados à questão dos quilombos. Em 2004 assumiu no Instituto a Coordenação Geral de Regularização Fundiária de Quilombos, trabalhando atualmente como coordenador de Ordenamento Territorial, além de exercer a função de Consultor Interno da Presidência do Incra. Assim, ele pode lembrar que a Instrução Normativa n° 20 do Instituto (Diário Oficial de 26/09/05) ainda lhe permite agir nas áreas conhecidas como Quilombos Urbanos. A Constituição não diferencia nem particulariza que os quilombos que nos fala o Artigo 68 do ADCT sejam rurais ou urbanos, portanto nos encontramos aptos a responder a todos os casos de regularização de territórios quilombolas. No Rio de Janeiro, estamos trabalhando na Comunidade de Sacopã, no bairro de Copacabana, fazendo os levantamentos iniciais, visando à titulação definitiva, conta Cláudio.O artigo 68 ao qual Cláudio se refere está contido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1888, onde, pela primeira vez, o Estado brasileiro reconheceu os direitos da população de origem africana. São direitos coletivos, porque o quilombo resistiu em grupo; daí o direito sagrado ao título de seus territórios, comenta Cláudio. Ocorre que a cultura afro-brasileira foi se consolidar nas favelas, em espaços religiosos ou agremiações festivas. E os remanescentes daquelas comunidades acabaram se tomando a borra da história do povo do estado. Eles ergueram em tomo de si uma muralha de segredos, como se ainda não tivessem se livrado das milícias coloniais. As perseguições, os assassinatos, as pilhagens e as queimadas construíram uma história de aflição cujos fantasmas ainda hoje sombreiam as narrativas dos descendentes de escravos, diz Cláudio.Etimologicamente, quilombo é um termo banto que quer dizer acampamento guerreiro na floresta. Mas, segundo Cláudio, a definição histórica para as comunidades remete ao Conselho Ultramarino de 1740, no qual são tratadas como toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenha ranchos levantados nem se achem pilões neles. Hoje em dia a Academia enfatiza o aspecto antropológico ao caracterizar os territórios quilombolas como centro de resistência de grupos com trajetória própria, de ancestralidade presumidamente negra e onde se verificam relações territoriais extra-oficiais. A afirmação étnica desses povos – comenta Cláudio – é indissociável de seu modo de viver, porque sua história é uma história de oposição à dominação branca. Assim chegamos à definição do que seja um território étnico, pois foi a resistência cultural que garantiu a sobrevivência dos quilombos.É neste conceito que estão embasados os artigos 1° e 2° do Decreto 4887/03, que garantem à população quilombola as terras necessárias para a sua sustentação física, social e econômica. O texto diz: Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-Ihes o título definitivo. O Incra atua nesses territórios desenvolvendo os requisitos necessários à Regularização Fundiária (regida pelo Decreto 4887/03). Em alguns locais já se encontra avançada a elaboração dos relatórios técnicos, cuja aprovação precisa ser publicada no Diário Oficial. Entre as áreas de trabalho, destaca-se o caso da ilha da Marambaia, na cidade de Mangaratiba, litoral do estado.O Quilombo de Marambaia está localizado numa área considerada de segurança nacional e mantida por militares. Só se chega a ele por meio de barco da Marinha do Brasil, com autorização prévia. São 90 famílias, que vivem agrupadas nos dois pontos extremos da ilha, não havendo dados oficiais sobre suas dimensões. Na época colonial, o local era utilizado para engorda de escravos, antes de serem vendidos para outras fazendas. Segundo os atuais moradores, pouco antes de morrer o proprietário Comendador Breves – maior senhor de café e de tráfico de escravos do Rio no século XIX – teria doado verbalmente toda a ilha para os descendentes de escravos. Depois de passar por diversos administradores, em 1971 a Marinha retomou o controle e em dez anos inaugurava o Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia (Cadim), único lugar da ilha com luz elétrica. A partir de 1998, a Marinha deu início a ações judiciais de Reintegração de Posse contra os moradores, alegando que seriam invasores de terras da União. Alguns deles chegaram a ser expulsos. Em 2002, a Procuradoria da República, com base num relatório do Programa Egbé/Territórios Negros (o Dossiê Marambaia), apresentou uma Ação Civil Pública para impedir a continuidade das demolições pela Marinha. Em dezembro de 2003, o Programa Egbé entrega à Fundação cultural Palmares o laudo antropológico reconhecendo a comunidade como Remanescente de Quilombo. Até o momento, porém, não há qualquer ação para a regularização fundiária daquelas famílias.A presença dos afro-descendentes na democracia brasileira não acompanha a sua importância demográfica. Inseridos inicialmente de maneira forçosa, eles já foram, segundo o IBGE, mais de 80% de nossa população, e hoje somam 52%. A questão fundiária dos quilombos é uma entre tantas mal-resolvidas para o negro brasileiro. Porém talvez seja a mais representativa, por estar diretamente relacionada à (má) formação do país como um todo. Ainda em 1964 – antes de ser exilada pela Ditadura Militar – Viotti da Costa escreveu o seguinte na introdução da primeira edição de seu livro. A conduta e a mentalidade dos negros e mestiços, seus valores dominantes, seu comportamento social, só podem ser entendidos hoje, quando se tenha em conta o fenômeno escravidão-abolição. (…) A súbita equiparação legal entre negros e brancos, em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de valores que se elaborara durante todo o período colonial. Econômica, social e psicologicamente, os ajustamentos foram lentos. O negro permaneceu na situação de dependência econômica e as atitudes e representações sociais que regulavam as relações entre as raças, só muito vagarosamente, foram modificadas. Cláudio Braga complementa: A luta pela titulação da terra vale a pena, mas não basta. O futuro do quilombola é adquirir a cidadania plena como brasileiro..Quilombolas do Rio de Janeiro buscam reconhecimento Campinho da Independência, Município de Paraty: Terra titulada.Ilha de Marambaia, Município de Mangaratiba: Terra pública ocupada pela Comunidade Remanescente de Quilombo e pela Marinha do Brasil. As negociações para a titulação estão em andamento.São José da Serra, Município de Valença: Terra particular. Há bem pouco tempo havia concordância do proprietário em aceitar a desapropriação da parte da Fazenda ocupada pela comunidade, equivalente e 280 hectares. O processo está no levantamento das cadeias dominial e topográfica.Fazenda da Caveira, Município de São Pedro d Aldeia: Terra pública ocupada. O processo está na publicação do Relatório Técnico. São 30 famílias numa área de 720 ha.Santana, Município de Quatis: Terra pública ocupada. Dezenove famílias; 828 ha. O processo está no levantamento da cadeia dominial. A fazenda foi doada pelo proprietário Barão de Cajurú aos seus escravos, mas as escrituras foram destruídas em 1950, por causa de um incêndio ocorrido no cartório de registro de imóvel do Município de Barra Mansa.Rasa, Município de Búzios: Terra pública ocupada. Cento e oitenta famílias divididas numa área total com cerca de 60 ha.Santa Rita de Bracuhy, Município de Angra dos Reis: Terra pública ocupada. Quarenta famílias; 512 ha. Alto da Serra, Município de Rio Claro: Terra pública ocupada. Trinta famílias; 44 ha.Preto Forro, Município de Cabo Frio: Terra pública ocupada. Dez famílias; sem dados oficiais sobre a delimitação.
Barão de Vassouras, Município de Vassouras: Lotes familiares adquiridos através de um documento de compra e venda. Sem dados oficiais sobre o número de famílias ou a delimitação.Machadinha, Município de Quissamã: Sob posse das famílias originárias e de proprietários particulares. Sessenta e nove famílias; sem dados oficiais sobre a delimitação.Fazenda do Espírito Santo, Município de Cabo Frio: Terra pública ocupada. Treze famílias; 22 ha.Sítio dos Elias, Município de Cabo Frio: Terra pública ocupada. Vinte e sete famílias; 15 ha.Sítio Denon, Município de Vassouras: Sob posse das famílias originárias, sem registro oficial. Dezessete famílias; sem dados oficiais sobre a delimitação.
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