Rebeldia camponesa no Brasil
Por Mônica Dias Martins
Os assentamentos Santana (Ceará), Conquista na Fronteira (Santa Catarina), Antonio Conselheiro (Mato Grosso) e as comunidades quilombolas de Oriximiná (Pará) vêm se constituindo, e sendo percebidos, como referências de organização e resistência. Fazendas degradadas, abandonadas, sob o controle de um único proprietário e onde haviam alguns poucos empregados, hoje garantem a sobrevivência de milhares de pessoas. A despeito das precárias condições em que recebem as terras, no momento de sua desapropriação ou demarcação, expandem os cultivos e as criações rapidamente.
A pesquisa Experiências alternativas de reforma agrária no Brasil, uma iniciativa da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos em conjunto com a Via Campesina, teve como objetivo analisar situações concretas de resistência à agricultura capitalista e à reforma agrária de mercado. Sua realização foi assumida por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e da Federação de Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB). A equipe responsável participou de todo o processo de pesquisa: definição de objetivos e conteúdo, elaboração de referencial teórico e procedimentos metodológicos, seleção das áreas de estudo, levantamento e interpretação dos dados, redação do relatório e comunicação dos resultados. (2) O trabalho se desenvolveu junto a comunidades quilombolas no Pará e assentamentos da reforma agrária nos estados do Ceará, Mato Grosso e Santa Catarina.
A partir dos principais resultados desta pesquisa, buscamos sistematizar algumas reflexões de modo a:
Entender como e por que tais comunidades se tornaram referência de organização econômica, política e cultural na disputa com o modelo de agricultura capitalista e os programas fundiários, incentivados pelo Estado brasileiro e pelos organismos internacionais, em particular pelo Banco Mundial;Identificar quais as motivações das pessoas para mudar, já que mudanças de comportamentos e valores guardam vínculos estreitos com transformações estruturais;Realçar que estas experiências ocorrem em uma conjuntura nacional e internacional desfavorável, praticamente sem apoio de políticas públicas;Mostrar que, apesar de bem-sucedidas, elas esbarram nos limites impostos pelo capitalismo: não alteram as relações de poder entre as classes sociais nem a dinâmica da concentração fundiária, que persiste associada a graves problemas nacionais (degradação ambiental, desemprego, fome, pobreza, desigualdade social, dominação política, insegurança etc). Inicialmente, é preciso esclarecer que não se trata de estabelecer critérios para comparar ou classificar experiências, pois cada uma delas é única. Assim, elas são analisadas considerando, por um lado, o seu próprio ritmo de desenvolvimento (como era a vida antes da conquista da terra e como é hoje, depois da organização do assentamento), e, por outro, a relação com o contexto sócio-econômico, político-cultural e ambiental específico em que estão inseridas. Entretanto, todas são experiências bem-sucedidas, isto é, são reconhecidas como tal pelos assentados e pela sociedade. Os assentamentos Santana (Ceará), Conquista na Fronteira (Santa Catarina), Antonio Conselheiro (Mato Grosso) e as comunidades quilombolas de Oriximiná (Pará) vêm se constituindo, e sendo percebidos, como referências de organização e resistência à medida que (a) enfrentam com determinação e vigor as forças contrárias à concretização da reforma agrária, tal como proposta pelos movimentos camponeses, e (b) buscam construir alternativas possíveis às práticas usuais da agricultura capitalista, o propalado agronegócio (também conhecido por latifúndio, empresa rural, agroindústria). Além disso, têm se firmado como exemplo a ser seguido junto às populações de suas respectivas áreas e municípios, sobretudo, porque há aspectos relevantes em cada uma delas que (c) se confrontam com os valores que dão sustentação ao modelo produtivo-tecnológico dominante e, em conseqüência, aos programas de mercado de terras do Banco Mundial: o individualismo, a competição e o produtivismo.
O longo, difícil e nunca concluído aprendizado do coletivo, da igualdade e da participação nasce desta disputa desigual; mas sua consolidação deve-se, particularmente, a decisões das famílias acerca de com que objetivos e como utilizar os diferentes espaços naturais e sociais: a terra, a floresta, o rio, a agrovila, a escola, a cooperativa, o sindicato, o partido político, entre outros. No que pese os empecilhos enfrentados para obter a terra e organizar as famílias, bem como a permanência de conflitos, estas têm empreendido um enorme esforço para resolvê-los, através do desenvolvimento de suas capacidades e habilidades. Fazendas degradadas, abandonadas, sob o controle de um único proprietário e onde haviam alguns poucos empregados, hoje garantem a sobrevivência de milhares de pessoas. A despeito das precárias condições em que recebem as terras, no momento de sua desapropriação ou demarcação, expandem os cultivos e as criações rapidamente, garantindo seu próprio consumo. Demonstram, assim, o quanto a sua força de trabalho estava contida pelas relações de produção estabelecidas pelo patrão, que lhes destinava as piores áreas e, via de regra, proibia o plantio de culturas permanentes e forrageiras, bem como a criação de animais, além de exigir a preferência de compra dos produtos a preços aviltantes. Contrastando com esta situação anterior de descapitalização das famílias, observa-se o crescimento do patrimônio formado por bens individuais e, sobretudo, coletivos.Nesta disputa territorial e ideológica, as comunidades pesquisadas têm se organizado em torno de elementos concretos e que desafiam, a partir da realidade local, a apropriação privada dos meios de produção, as políticas de modernização agrícola e o projeto neoliberal do Estado brasileiro. Desenvolvem uma estratégia eficiente de mobilização de grandes contingentes e de pressão sobre os latifundiários e o governo: as ocupações massivas e constantes de terra. Apresentam resultados positivos em termos de melhoria da qualidade de vida, comparada com suas condições anteriores e a situação atual de outros segmentos da classe trabalhadora, em especial os assalariados rurais. Realizam um intenso e permanente processo de discussão e ação política visando denunciar o neoliberalismo como um dos principais responsáveis pelos problemas que afligem a maioria da população brasileira. A cooperação agrícola, as práticas agroecológicas, a diversificação de atividades produtivas, o trabalho fundamentado em princípios coletivos e na posse e uso de bens indivisíveis (terra, máquinas, animais etc), bem como as reivindicações por condições materiais objetivas para apoiar a produção e por equipamentos de infra-estrutura social comunitária, a exemplo de sistemas de saneamento básico, escolas, creches, postos de saúde, constituem procedimentos rotineiros de crianças e velhos, jovens e adultos, homens e mulheres que, agrupados em núcleos e setores de entidades associativas, vivenciam estas experiências de reforma agrária. São igualmente apontados, pela maioria das 110 pessoas entrevistadas, como aspectos relevantes o crescimento da auto-estima dos assentados, a afirmação da identidade de Sem Terra e a valorização das mulheres, dos negros e dos jovens.Contudo, suas lideranças não costumam alimentar (costumeiras) ilusões de que a participação em conselhos para gestão de serviços públicos ou a criação de cooperativas de produção, por si só, seriam evidências de um processo de socialização ou da possibilidade de experimentos socialistas nos marcos do sistema capitalista. O novo parece residir na dinâmica de relações sociais estabelecidas entre as famílias assentadas, e destas com a natureza e a sociedade. No sentido de apreender os rumos desta mudança foram identificados traços característicos presentes, com variações, nos quatro casos estudados:Respeito ao meio-ambiente e preservação da biodiversidade;Gestão coletiva da terra, do trabalho e da produção;Clareza de objetivos, unidade política e visibilidade de ações;Direção democrática responsável pelo planejamento, execução e avaliação de atividades estratégicas;Diversificação econômica e adoção de novas tecnologias para produzir alimentos e gerar renda;Acesso à educação como fator imprescindível para o conhecimento dos direitos, o exercício da cidadania e o engajamento político;Estimulo à produção cultural e sua divulgação nas escolas e em veículos alternativos de comunicação;Formação de quadros para atuar nos assentamentos e nas várias instâncias da vida social, mediante capacitação técnica e política, mesclando teoria e prática;Incentivo à integração dos jovens e afirmação da igualdade étnica e de gênero;Estabelecimento de alianças com sindicatos, movimentos urbanos, igrejas e partidos políticos;Contribuição econômica e política no âmbito municipal, estadual e nacional;Visão de mundo baseada em valores de solidariedade e cooperação.
Mas isto ainda não parece o bastante para entender como e por que estas comunidades tornaram-se uma referência de organização e resistência em seu meio, no município, junto aos movimentos populares e às entidades sindicais, nas instâncias políticas, nos grupos religiosos, nas universidades, nos ambientes artísticos e até mesmo, em determinadas circunstâncias, com certo reconhecimento nos círculos empresariais e governamentais. Talvez o elemento-chave para compreender a abrangência e o significado das transformações em curso nas áreas pesquisadas esteja na definição (embora nem sempre claramente explicitada) do seu objetivo estratégico: a primazia do trabalho sobre o capital. Segundo os que defendem esta concepção de sociedade é o trabalho que assegura direitos sobre a propriedade dos meios de produção e os bens produzidos. Portanto, os donos da terra são os trabalhadores e não quem detém um título legal. Argumentam que a propriedade é primordialmente um bem comum, pois a produção de bens resulta da cooperação entre os produtores diretos e dela participam uma pluralidade de atores sociais. A proposta de que a propriedade fundiária fique sob o controle do conjunto dos trabalhadores, não necessariamente sob a forma exclusiva da coletivização, afeta um dos esteios do capitalismo, ou seja, a apropriação privada pelo capital dos resultados do trabalho.As experiências relatadas, apesar de seus resultados concretos, são afetadas por uma conjuntura nacional e internacional desfavorável, conforme inúmeros estudiosos do tema têm revelado em suas análises sobre os fundamentos e as conseqüências do projeto neoliberal para a agricultura. Desde o plano de estabilização imposto pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional aos governos para garantir o pagamento dos encargos da dívida externa e os acordos com a Organização Mundial do Comércio para liberalização dos mercados, a situação da agricultura tem gradativamente se alterado; cresce a ofensiva capitalista no meio rural. No Brasil, como é sabido, o modelo de desenvolvimento econômico adotado em meados dos anos 1980 exigiu uma nova forma de agir do Estado, modificando o padrão agrícola, através de várias medidas, dentre elas: a abertura unilateral para o mercado internacional, com importação de alimentos e exportação de produtos agrícolas não-tradicionais, e a reorganização da cadeia produtiva e seu controle pelas agroindústrias. Tais medidas trouxeram constrangimentos para os que vivem da atividade rural e colocaram em risco a sobrevivência das pequenas unidades produtoras ou projetos públicos, a exemplo dos perímetros irrigados e assentamentos da reforma agrária, que passaram a ser tratados, sobretudo, com políticas compensatórias. O Novo Mundo Rural ilustra o paradigma de intervenção governamental que se delineou para modernizar, uma vez mais, o campo brasileiro: introdução de novas tecnologias, formação de um mercado de terras e apoio às grandes empresas. Concluo estas reflexões apresentando um breve retrato de cada experiência estudada. O estudo reflete a realidade de muitas outras comunidades camponesas no Brasil.NORTE: comunidades quilombolas de Arancuan de Baixo, Bacabal e Varre Vento, município de Oriximiná, ParáArancuan de Baixo, Bacabal e Varre Vento, com um total de 94 famílias, localizam-se no alto do Rio Trombetas, na região amazônica. Juntamente com as demais comunidades negras, lutaram pela demarcação de suas terras e, com o incentivo da Igreja Católica e o apoio da Comissão Pró-índio, formaram a Associação dos Remanescentes dos Quilombos de Oriximiná (ARQMO). O título coletivo foi entregue em 1997 e corresponde a uma área comum de 80.877 hectares. As principais atividades são: o extrativismo da castanha-do-pará, a pesca, o cultivo e beneficiamento da mandioca. Além de inspirar o surgimento de outras entidades semelhantes, a Associação trouxe benefícios materiais e sociais, como embarcações, caminhões, armazéns e escolas. A forma participativa do processo de demarcação e titulação coletiva da terra, a posse de bens comunitários, a formação intelectual de crianças, jovens e adultos, a relação respeitosa com a natureza, o crescimento da auto-estima e a consciência da negritude, e a melhoria da qualidade de vida com base em projetos próprios da região são alguns dos motivos pelos quais a experiência é tida como bem-sucedida. Face ao desenvolvimentismo e à privatização, tais conquistas encontram-se ameaçadas. Em um espaço de grandes projetos hidrelétricos, empresas madeireiras, mineradoras e produtoras de soja, a experiência das comunidades quilombolas se destaca pela forma criativa de organização e de relacionamento com o meio ambiente, tendo adquirido o respeito da população do município.NORDESTE: assentamento Santana, município de Monsenhor Tabosa, CearáSantana, com uma área de 3.213 hectares e 76 famílias, localiza-se no sertão dos Inhamúns, no semi-árido cearense. Fruto da mobilização de seus moradores e jovens das comunidades próximas, bem como do apoio da CPT e do Sindicato de Trabalhadores Rurais, em 1986, a fazenda teve a desapropriação decretada. As principais atividades são: pecuária leiteira, apicultura, consórcio de milho e feijão. Em 1990, foi criada a Cooperativa de Produção Agropecuária (COPAGUIA). O assentamento está estruturado em forma de agrovila e dispõe de açudes, estábulos, fábrica de queijo, casa do mel, armazém, bodega comunitária, escola, creche, posto de saúde, estação de tratamento de água, aterro sanitário. Hoje, é um exemplo de luta e organização para outras áreas de reforma agrária, sobretudo no que diz respeito à gestão coletiva da terra e à divisão eqüitativa dos frutos do trabalho. Para construir uma vida digna no campo, o caminho trilhado pelas famílias foi a formação política, a construção da identidade do sem terra, a educação e a cooperação agrícola. As conquistas dos assentados beneficiam o conjunto dos camponeses do município. Dentre as contribuições, cabe destacar: as escolas de ensino fundamental e médio; o posto de saúde; a produção de mel e feijão para o mercado; a presença das mulheres em eventos diversos; a ação sindical e política; a formação política da juventude; a representação direta na coordenação do MST e da CPT; a participação nas lutas, mobilizações, ocupações e marchas. Em um espaço no qual predomina o latifúndio, a seca e o analfabetismo, o assentamento Santana constitui um pólo irradiador de novas relações sociais, exercendo um papel relevante na vida do município e na formação de quadros para os movimentos populares do Ceará. CENTRO-OESTE: assentamento Antonio Conselheiro, município de Tangará da Serra, Mato GrossoAntonio Conselheiro, com um área de 37.258 hectares e 998 famílias, localiza-se em uma região de fronteira agrícola, no sudoeste do Mato Grosso, entre os municípios de Tangará da Serra, Nova Olímpia e Barra do Bugres. A desapropriação da fazenda Tapirapuã ocorreu em 1997, após um ano de sua ocupação pelo MST. A terra foi distribuída em lotes familiares, que variam de 25 a 38 hectares. O plantio de banana e arroz, a criação de bovinos de leite e de corte, o cultivo de milho, feijão, mandioca, verduras são as principais atividades produtivas. As famílias assentadas dispõem de luz, água, transporte, assistência técnica e três escolas, sendo que uma delas possui o 2º grau completo. O assentamento está construindo um novo espaço sócio-ambiental, através de práticas como capacitação em agroecologia, conservação de reservas florestais e recursos hídricos, formação de grupos coletivos e agrovilas, produção para a subsistência e para os mercados locais e regionais. A educação, em conjunto com a mística, a formação política e técnica, também são fatores que têm contribuído para a melhoria de vida das famílias. Em uma área predominantemente de monocultura de soja e de cana-de-açúcar, o assentamento Antonio Conselheiro se destaca por sua organização em núcleos de famílias, agricultura diversificada, adoção de práticas agro-ecológicas, comercialização coletiva e contribuição para o abastecimento de gêneros alimentícios das cidades vizinhas. SUL: assentamento Conquista na Fronteira, município de Dionísio Cerqueira, Santa CatarinaConquista na Fronteira, com uma área de 1.198 hectares e 60 famílias, localiza-se nas proximidades da fronteira do Brasil com a Argentina. A fazenda Tracutinga foi desapropriada em 1988, por pressão de famílias acampadas e organizadas pelo MST. A Cooperativa de Produção Agropecuária do Oeste (COOPERUNIÃO) possibilitou o surgimento de novas alternativas econômicas. Como atividades estratégicas destacam-se o leite, a avicultura, a piscicultura, a erva-mate, o reflorestamento e a lavoura de grãos. A organização do assentamento transformou o latifúndio em terra produtiva, incentivando a preservação da biodiversidade, a produção de alimentos, a igualdade de gênero e a geração de renda. Mulheres e jovens participam da produção em condições de igualdade com os homens. A escola é organizada como uma cooperativa-mirim. Ainda assim, são visíveis os desafios para superar vícios e contradições. Conquista na Fronteira é uma área planejada com base no respeito à natureza, na produção para o consumo interno e na geração de excedentes para os mercados regionais. A propriedade e o uso da terra de forma coletiva propiciaram às pessoas pensar conjuntamente o rumo de suas vidas, mudando o jeito de ser e de trabalhar das famílias assentadas, o que envolve condições materiais, novos valores e relações dignas. Em um espaço dominado pela agroindústria de carnes e empresas fumageiras voltadas para a exportação, o assentamento Conquista na Fronteira desponta como referência de organização e luta tanto por seu projeto baseado em princípios coletivos, como pela contribuição econômica e política no âmbito municipal, estadual e nacional. – Mônica Dias Martins é professora da UECE (Universidade Estadual do Ceará) e coordenadora do Observatório das Nacionalidades(1) Integraram a equipe de pesquisa: Aparecido Luiz de Souza (CPT, Pará), Justina Cima e Zenaide Collet (MMC, Santa Catarina), Mariel Camargo e Wilker Souza Melo (FEAB, Mato Grosso), Silvana Lúcia da Silva Lima, Cleide Luz e Celina Moreira Lima (MST, Ceará), e Mônica Dias Martins (coordenadora, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos).
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