Convênio entre UFSC e Incrapara regularização fundiária de territórios quilombolas
Pesquisas do NUER indicam territórios a serem titulados como quilombos no sul do Brasil
As perícias antropológicas do projeto Quilombos do Sul do Brasil – estudos antropológicos com vistas à aplicação do Decreto 4.887 foram concluídas no último dia 30 de janeiro. O Decreto 4887, publicado em 20 de novembro de 2003, prevê o reconhecimento, a demarcação e a titulação de terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.
O convênio assinado em dezembro de 2004 entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o INCRA teve a duração de 1 ano e previa a elaboração de estudos, pareceres, relatórios e laudos antropológicos sobre os territórios de Casca, no Rio Grande do Sul, e nas regiões catarinenses, envolvendo São Roque e Invernada dos Negros, ambas localizadas em Santa Catarina. Os relatórios sócio-antropológicos foram anexados ao procedimento administrativo, integrando o Relatório Técnico de Identificação (RTI), em conformidade com a Instrução Normativa nº 20 do Ministério de Desenvolvimento Agrário.
Esses laudos produzidos pelo Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER/UFSC) – núcleo pioneiro em pesquisas sobre territorialidade – são os resultados das perícias antropológicas realizadas, e consistem em estudos e pesquisas sobre a trajetória de constituição histórico-cultural dos grupos em questão, procurando orientar os procedimentos administrativos, através de uma visão focada nos próprios sujeitos do direito.
Para a coordenadora do NUER, Ilka Boaventura Leite, a visão antropológica também contribui para a interpretação dos cenários onde diferentes interesses estão em jogo, sobretudo os conflitos fundiários e o processo de expropriação das terras vivido pela maioria desses grupos negros no Brasil.
“O olhar antropológico procura seu foco principal na compreensão das noções de direito elaboradas pelos afrodescendentes, noções quase sempre não vistas, pouco apreendidas e que nem sempre alcançam à etapa do reconhecimento oficial.
A abordagem antropológica busca compreender o processo de constituição do grupo em sua trajetória de resistência e busca de um reconhecimento de sua ancestralidade africana e das relações territoriais próprias. Há que considerar o território, não somente como base física, o habitat, para o grupo, mas como o depositário de formas de vida e concepções de mundo que conformam uma identidade singular, uma condição de existência, que está inequivocamente na manutenção de uma terra para viver e plantar.”
As perícias realizadas pelo NUER também relacionam as ações de titulação às políticas públicas a serem implantadas nas áreas quilombolas, segundo reivindicações históricas dos grupos.
Alexandra Alencar, bolsista do NUER
Saiba mais sobre o projeto:
Quilombos no Sul do Brasil: estudos antropológicos com vistas à aplicação do Decreto 4.887
Convênio NUER/UFSC e INCRA/MDA
Coordenação Geral: Dra. Ilka Boaventura Leite
Objetivo Geral:
– Elaborar estudos, pareceres, relatórios e laudos antropológicos que possam fornecer parâmetros para a implementação do Decreto 4.887 que prevê o reconhecimento, a demarcação e a titulação de terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.
Objetivos específicos
– Acompanhar os processos de identificação, reconhecimento e titulação das terras das comunidades de Invernada dos Negros (SC), São Roque (SC) e Casca (RS);
– Realizar pesquisa documental (mapas, contratos, certidões , processos jurídicos) contextualizando-os em relação ao referidos processos de titulação.
– Propiciar a interlocução entre os diferentes profissionais e saberes (antropólogos, geógrafos, historiadores, e técnicos do Incra) envolvidos no processo de titulação das terras, sistematizando esses conhecimentos em forma de pareceres e relatórios sócio-antropológicos.
– Identificar e analisar as situações de conflitos fundiários e seus desdobramentos ao longo do processo de demarcação e titulação
Situando o Plano de Trabalho Proposto
A Universidade Federal de Santa Catarina, através do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER), vem realizando, nos últimos 15 anos, pesquisas centradas nos processos de territorialização das populações afrodescendentes no conjunto das identidades étnicas da região sul do Brasil. As pesquisas produzidas, especialmente as realizadas a partir do projeto de pesquisa “O acesso à terra e à cidadania: expropriação e violência nos limites do direito”, tem apontado para a complexidade e singularidade dos processos de apropriação da terra pelos grupos negros e a sua expropriação, que se inicia sobretudo na década de sessenta do século XIX com a expansão da fronteira agrícola, novos fluxos migratórios e a agroindústria.
Através deste projeto , foram produzidos três relatórios sócio-antropológicos, sendo que um deles constituiu-se de perícia antropológica para instruir o Inquérito Civil Público, aberto pela Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, para averiguação da procedência das terras da Comunidade de Casca.
A Casca foi a primeira a receber o titulo de reconhecimento oficial na região sul, seguindo-se outras, dentre as quais, a Invernada dos Negros em Santa Catarina. O NUER solicitou também a abertura de Inquérito sobre a Invernada dos Negros em Campos Novos (SC) e o Paiol de Telha, em Guarapuava (PR). O Inquérito de Invernada foi aberto em 27 de março de 2004 e o de Paiol foi solicitado o seu arquivamento pela Procuradoria de Guarapauava.
Através de publicações de livros, relatórios e pareceres, o NUER vem, desde 1994, participando e contribuindo com o processo de reconhecimento dos direitos dos afrodescendentes que vivem como agricultores no Sul do Brasil. Vem também participando dos debates realizados pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia). Tem tido como principais interlocutores o Ministério Público (6A Câmara de Coordenação e Revisão – Índios e Minorias), a FCP (Fundação Cultural Palmares) o MNU (Movimento Negro Unificado) e as Associações Comunitárias representantes dos afrodescendentes que reivindicam a aplicação do Artigo 68 da CF (Constituição Federal) de 1988.
Este processo iniciou-s, de um modo geral,e com a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe em seu bojo, diversos dispositivos que apontam para a necessidade de resguardar a pluralidade étnica e a diversidade cultural da população brasileira, incluindo os artigos 215 e 216. Também existe a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, quando aponta para o “direito ao retorno” e à diversidade cultural. Mais recentemente o decreto 4887 de 20 de novembro de 2003 veio regulamentar o Artigo 68. Este decreto descreve os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do ADCT.
Até novembro de 2003, o reconhecimento e titulação era atribuição da Fundação Cultural Palmares; Desde então, o novo Decreto passa esta atribuição ao INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária). A Instrução Normativa, n. 16, de 24 de março de 2004, regulamenta os procedimentos relativos ao Artigo 68. e prevê convênios para a realização de pesquisas e estudos que possam orientar o processo de demarcação e titulação das terras.
A perícia antropológica, objeto deste convênio entre o INCRA e a UFSC, objetiva a compreensão da trajetória histórica e de constituição dos grupos em questão, procura dotar os procedimentos administrativos de uma visão focada nos próprios sujeitos do direito. A visão antropológica contribui também com a interpretação do cenário no qual diferentes interesses estão em jogo, procurando entender e discernir os diferentes discursos de legitimação que orientam os procedimentos de apropriação e expropriação das terras, permitindo uma percepção mais acurada dos processos de desconstituição dos direitos daqueles que, sem acesso a escolaridade e o entendimento da cultura jurídica tornaram-se hoje prioridade nas políticas públicas. O olhar antropológico procura seu foco principal na compreensão das noções de direito elaboradas pelos afrodescendentes, noções quase sempre, não vistas, pouco apreendidas e que nunca alcançam a etapa do reconhecimento oficial. A abordagem antropológica possibilita uma visão global do processo de constituição do grupo situando a demanda no plano das noções de direito elaboradas pelo grupo em sua trajetória de resistência, cujo marco da escravidão se faz presente no reconhecimento de uma ancestralidade africana e em relações territoriais próprias. Há que considerar a territorialidade, não somente como a base física, o habitat, para o grupo mas como o depositário de formas de vida e concepções de mundo que conformam uma identidade singular, cuja condição de existência, portanto, está inequivocamente na manutenção de uma terra para viver e plantar.
As pesquisas do NUER reúnem uma experiência ímpar nesta área. Os relatórios produzidos até o presente momento foram apresentados no Ministério Público Federal e estão sendo peças fundamentais nos inquéritos instaurados para atender as solicitações dos grupos que se auto-reconhecem como sujeitos dos direitos inscritos na Constituição Federal.
Em Santa Catarina o NUER já tem articulado alguns convênios e parcerias com o INCRA/SC, no sentido de viabilizar algumas demandas de movimentos sociais e das comunidades quilombolas, por exemplo o curso Extensão “Quilombos: territorialidade e cidadania”, ministrado durante o ano de 2003.
No sul do Brasil, até esta data, nenhuma comunidade negra recebeu o título das suas terras. A parceria entre o INCRA/NUER possibilitará resguardar, em todas as etapas, o cuidado aos itens mencionados no Decreto 4.887, sobretudo aqueles que se referem à especificidade do grupo em sua formação histórico-cultural e os aspectos relativos à distintividade étnica. Além disto, várias comunidades negras do estado catarinense têm manifestado interesse pela aplicação imediata da legislação pertinente ao reconhecimento, demarcação e titulação de suas terras. Numa segunda etapa, o Convenio poderá incluir a realização de um diagnóstico socioeconômico e antropológico das comunidades negras possibilitando também, além da titulação, uma maior visibilidade das áreas onde serão implementadas as políticas públicas voltadas para o seu desenvolvimento e sua singularidade cultural. Considerando-se, especialmente, que tais políticas estejam identificadas com as suas práticas sociais, tradicionais e comunitárias, contribuindo para o pleno desenvolvimento destas localidades.
Neste contexto, reafirma-se o compromisso e o papel da Universidade de viabilizar e disponibilizar um conhecimento especifico sobre o social, de fornecer parâmetros para as ações em políticas públicas, garantindo um olhar capaz de aprofundar o conhecimento sobre os grupos historicamente excluídos e invisibilizados pelo preconceito racial.
O convênio abrange, portanto, estudos em três áreas, executadas por três equipes de profissionais das áreas de antropologia, história e geografia e coordenados por: Ilka Boaventura Leite, Ricardo Cid Fernandes e Raquel Mombelli.
Perícias em andamento:
– Invernada dos Negros
– Comunidade de São Roque
– Comunidade de Casca (RS)
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