Incra inicia georreferenciamento de perímetro quilombola
A Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Distrito Federal e Entorno (SR-28) dará início ainda neste semestre às atividades de georreferenciamento do perímetro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga – o de maior área do Brasil, com cerca de 253 mil hectares e localizado no Nordeste do estado de Goiás.
O mapeamento dos limites da área, que se estende pelos municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás será realizado através de parceria do Incra com a Agência Goiana de Desenvolvimento Rural e Fundiário (Agência Rural) e a prefeitura de Cavalcante. A parceria busca definir com exatidão a área do Sítio e, com isso, resolver a questão agrária que preocupa aos pouco menos de cinco mil quilombolas que moram nas cerca de 30 comunidades kalungas que existem na região.
De acordo com o chefe do escritório do Incra em Cavalcante, Antonio Marcos Cunha, cinco equipes compostas por servidores do Incra, da Agência Rural e técnicos contratados pela prefeitura local iniciarão as atividades de georreferenciamento dos limites do Sítio em junho próximo. “Colocaremos marcos topográficos físicos e virtuais (quando for em rios e montanhas de difícil acesso) a cada 500 metros em toda a linha de fronteira do Sítio. Com isso, fazendas e outros imóveis rurais que estiverem dentro da área Kalunga serão desapropriados e o terreno será ocupado pelos remanescentes de quilombos. A definição dos limites do Sítio é esperada tanto por fazendeiros como por kalungas, pois encerra as disputas pela posse da terra na região”, assegura o servidor.
Atualmente, o escritório do Incra em Cavalcante tem em andamento 74 processos de vistoria e identificação para possível desapropriação de imóveis rurais localizados dentro do Sítio Kalunga. O processo inicia com a convocação dos fazendeiros para que se habilitem; em seguida, o Incra faz o levantamento documental e da cadeia dominial do imóvel; a seguir, são feitas as demais etapas da desapropriação.
A posse da terra é, para a comunidade Kalunga, uma prioridade acima de todas as outras. Essa reivindicação é comum tanto para os jovens como idosos, entre os quais Leonilda Fernandes de Castro, de 80 anos, mais conhecida como Dona Lió ou Mãe Preta – pelo fato de ser ela uma das mais atuantes parteiras de todo o Sítio. Dona Lió diz que sempre houve disputas entre fazendeiros e os kalungas. “As fazendas desta região eram tão grandes que pareciam redes estendidas entre uma serra e outra. Havia fazendeiros que até apoiavam os kalungas, pois a presença de pessoas afugentava as onças e cobras que matavam o gado. Hoje, para nós, o mais importante é a garantia da terra, a liberação das fazendas que estão dentro da área Kalunga. O Incra precisa resolver logo este problema, pois nós gostamos desta região porque foi aqui onde nascemos. Pode até ser ruim para os outros, mas nossa força é neste lugar. Temos que resistir é aqui. Já sofremos muito, até ameaças de morte e agüentamos tudo. Já houve agressões e abandonos de casas e fugas. Muitos dos antigos kalungas morreram e não viram a posse da terra, mas com a licença do Pai Eterno eu vou ver”, afirma Dona Lió, a líder e moradora mais idosa da comunidade Ema, no município de Teresina de Goiás.
Faustino Santos Rosa – um kalunga de 58 anos de idade e pai de sete filhos –, conhece desde que nasceu as dificuldades de uma região rica de belezas naturais e minerais, mas injusta para com seus moradores mais ilustres. A geografia acidentada com serras de centenas de metros, os vários rios e córregos fazem da região kalunga uma das de mais difícil acesso do País. Neste cenário, para se chegar aonde Faustino mora, somente em lombo de animal. Isso depois de várias horas percorrendo algumas dezenas de quilômetros de estradas de chão em carro com tração nas quatro rodas e atravessar com barco o rio Paranã.
Faustino mora em uma área da comunidade Vão de Alma, onde tudo é transportado em burro, desde mantimentos até doentes. Sobre definição da área Kalunga, Faustino se mostra um defensor. “Os kalungas não têm para onde ir e têm que morar aqui mesmo. Tem certos pontos da área que os kalungas têm sido até agredidos. As autoridades competentes têm que ver as oposições, pois tem muita região do kalunga que não temos direito de trabalhar por causa de fazendeiros de fora”, garante.
Em outro extremo do Sítio Kalunga está o Vão do Moleque, um extenso vale abaixo da serra do Moleque e distante cerca de 120 quilômetros da cidade de Cavalcante. Nesta região moram centenas de kalungas, entre os quais Juarez Antônio de Aquino, de 46 anos de idade e quatro filhos. Juarez é uma das lideranças na região, onde atua também como agente de saúde há nove anos. Para o líder, a comunidade necessita de muita ajuda. “Depois que o Incra e outros órgãos passaram a atuar na região as coisas têm melhorado, embora gostaríamos que fosse mais rápido esse processo. Inclusive minha atuação como agente de saúde faz parte destas melhorias. Procuramos orientar e ajudar as pessoas no tratamento de doenças”, garante Juarez, acrescentando que sobre as desapropriações de fazendas na área kalunga, muitos fazendeiros já se conscientizaram e são até favoráveis.
Sítio
A definição dos limites da área foi estabelecida por uma lei estadual de 1995 que criou o Sítio Histórico Kalunga. A lei tem como base levantamentos arqueológicos de áreas ocupadas há varias gerações, com início em meados de 1700, por remanescentes de quilombos para lá fugidos da escravidão em fazendas e minas de ouro da região ou libertados com a Lei Áurea, em 1888. Durante o século XX, mais fazendeiros foram ocupando as áreas quilombolas e expulsando os kalungas. Essa lei ganhou força em 2000, quando o Governo Federal imitiu o Título de Reconhecimento e Domínio da área de 253,19 mil hectares em favor do estado de Goiás. A área é tão grande que forma um enorme retângulo de 40 quilômetros por 80 quilômetros, ocupando um espaço equivalente a 253 mil campos de futebol. No entanto, a definição exata da área será feita pelo georreferenciamento dos limites do Sítio kalunga.
Atualmente, o Governo Federal atua na área com 11 ministérios em várias frentes, como fornecimento de energia elétrica, construção de casas e abastecimento de água encanada, escolas, etc. O governo do estado atua na assistência técnica, extensão rural e projetos agropecuários para os quilombolas, construção de estradas, assistência à saúde e vacinação de animais. As ações são em conjunto com os governos municipais.
Mas a efetiva ação governamental depende deste primeiro passo, que é composto pela definição precisa dos limites, desapropriação e retiradas de ocupantes não-quilombolas. Como há fazendeiros nos trechos mais planos e apropriados à agricultura e pecuária, com a retiradas deles, os Kalungas – que hoje ocupam ‘pés de serra’ ou áreas cheias de pedras e solo pouco fértil -, irão para tais locais. Com a retirada dos fazendeiros e a mudança dos Kalungas, as áreas isoladas onde muitas pessoas moram seriam transformadas em santuários ecológicos, não necessitando de estradas, energia elétrica, entre outras obras de infra-estrutura.
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