Reportagem sobre costumesde comunidades quilombolas do Estado
Conheça comunidades onde os descendentes dos escravos preservam muitos costumes
Da culinária às festas populares.
O Rio Paracatu, afluente do São Francisco, foi um dos caminhos para o povoamento da região.
Nas margens, entre árvores nativas, fica a comunidade Porto Pontal. O lugar já foi um quilombo. Assim eram chamadas as comunidades de escravos fugidos que viviam escondidos em terras abandonadas. Ou núcleos que ser formavam após a alforria. As casinhas de adobe são cobertas com palha de buriti.
– Buriti é uma palmeira que tem muito aqui na região, na vereda. Então, a gente vai lá no mês de maio, tira a palha. É muito fresquinho, e dura, em média, 20 anos para trocar uma palha dessa, comenta Gilberto de Carvalho, diretor da Federação dos Quilombolas.
E em casas pequenas, como essa, viviam famílias inteiras. Como a de seu Julião. Aqui, moravam pai, mãe e mais 13 filhos.
– (Como que cabia todo mundo aqui?) Cabia sim. E ainda vinham alguns parentes para visitar. Então, acomodava todo mundo, responde seu Julião.
Mas a distância da cidade e a falta de emprego levaram muita gente embora. A família de Dona Ana Francisca resiste. Com 50 anos, ela faz as tarefas da roça e ajuda os filhos no preparo da pescaria. A única fonte de renda.
– Olha a rede, olha o anzol, depois vai tecer ou remendar as redes. E é assim o dia inteiro, conta Ana Francisca, dona de casa.
Um dia inteiro de trabalho e à noite Dona Ana ainda tem ânimo para fazer paçoca.
– (Então, como é?) Frita a carne, soca, coloca farinha e soca bastante. E aí está prontinha, quer provar?, ri Dona Ana Francisca.
É a última refeição do dia.
Na cidade, a batida forte do atabaque vem dos centros de umbanda. Lembram tempos em que os escravos faziam rituais religiosos às escondidas.
– Era muito chicoteado, muito apanhado. E eles então pediam para Deus que libertasse eles. Até que chegou a hora que Deus permitiu que eles fossem libertados. Então, por isso, hoje eles estão no mundo espiritual, com a capacidade de ajudar todos nós porque padeceram, conta Antônio Saldanha, aposentado.
Hoje, duas vezes por semana, um grupo se reúne aqui. Seu Saldanha cuida do altar, onde os objetos são símbolos de uma raça.
– Essa guia é o verde de Oxossi, que é São Sebastião. Na ubamda, nós falamos Oxossi. Mas, o nome dele é São Sebastião. E essa guia de contas de lágrimas de Nossa Senhora é que os preto velho usavam.
Tanto para poder benzer as pessoas quanto para fazer remédio da folha, mostra o aposentado.
A comunidade de São Domingos é mais uma remanescente de quilombo.
– Hoje, a gente é livre, graças a Deus. Somos livres e esse é o desejo da gente, que a gente seja cada dia mais independente, que a gente tenha os próprios negócios, não precisar ficar dependendo de terceiros, observa Dona Cristina.
Os moradores são quase todos da mesma família. Cultivam fruta nos quintais e criam galinha caipira para vender na cidade. Outra fonte de renda é a plantação de açafrão. A raiz é colocada para secar.
– Quando você põe ele no sol, tira ele quentinho de lá do sol, bem sequinho, é rapidinho. (E agora?) Daqui a pouco já está bom de peneirar ele, responde Dona Cristina.
O açafrão é um corante natural muito usado na culinária. No frango, no arroz, na carne e até para remédio.
– Até para remédio, dor de garganta. Ele é muito bom. Usa para tudo. E tem um cheirinho muito bom, não é? (Então, quem chega sabe que está fazendo comida com açafrão?) Sabe. (Aí vão logo ficando para o almoço…) É, ri Dona Cristina.
O açafrão deixa a comida com uma cor dourada. Assim vai o dia, entre uma tarefa de casa ou uma boa conversa. Se é época de festa, irmãs, primas, vizinhas se reúnem em mutirão. Fazem as roupas e montam os cestos para a dança da noite. O tecido é a chita.
– É um tecido muito bonito, alegre e a gente tem alegria. Então, a gente compra roupa alegre, resume Romilda de Fátima Silva, dona de casa.
– Tem que estar bonita, bem bonita mesmo. Quem tem algumas que arrumam namorado nessa festa, diz uma das participantes.
Só as mulheres participam da dança do balaio. Em frente à igreja, festejam em homenagem a São João.
– Essa dança é a dança do algodão. A gente fala dança do balaio, mas é a dança do algodão. Porque quando iam os escravos catar algodão para tecer, ia com balaio, responde outra mulher.
– Com essa dança, é uma maneira da gente mostrar um pouco a cultura da gente, chamar todos os remanescentes para o mesmo caminho e todos juntos lutar por uma comunidade melhor, explica outra dançarina.
O bairro do Paracatuzinho é o endereço de uma família que vive nesta região desde o século XVIII. A família Amaro. Esta é a casa do seu Benedito, que passa o dia trabalhando no quintal.
Desde que veio para cidade, seu Benedito sempre trabalhou com artesanato. Esculpe madeira, pinta, mas o que gosta mesmo de fazer é aproveitar tudo o que encontra pela rua. A casa construída por ele é toda revestida com pedaços de azulejos e cerâmica. É uma marca registrada dos Amaros em Paracatu.
É tudo obra do seu Benedito. Ele junta uma porção de coisas e vai montando as casas.
– Isso daqui é geladeira velha. Eu compro geladeira velha, cortei e fiz isso daqui, mostra Benedito Guimarães, artesão.
Na rua ao lado, mora o mais velho dos irmãos. Com 75, anos seu Honório explica a origem da família que começou com o escravo Amaro.
– Ele trabalhou bastante e vai até chegar o tempo de ter alforria, conta Honório Guimarães, aposentado.
Seu Honório foi garimpeiro durante muitos anos. Mostra orgulhoso os dentes revestidos com o ouro que ele mesmo achou.
– Teve dia de eu tirar dez gramas de ouro sozinho, se orgulha o aposentado.
Hoje, o garimpo é proibido na cidade. Seu Honório vive da aposentadoria. E cuida de preservar velhos costumes da família. Dona Benedita ajeita a roupa do marido para a dança da caretada.
– Nós `dança para Nossa Senhora do Rosário, para São Pedro, São Paulo. Mas o chefe deles é São João Batista, diz o aposentado.
A máscara é fundamental.
– A dona dos escravos não queria ver nós dançar. Os escravos, que eu nunca fui escravo, graças a Deus. Mas então punha a máscara para poder ela não nos conhecer. E nós, mesmo aqui, depois que nós veste, nós não reconhece um o outro, não, garante seu Honório.
A caretada é o folclore mais conhecido em Paracatu. Em frente à igreja dos negros, dançam para agradecer. A encenação, às vezes, lembra uma quadrilha. Outras vezes parece uma luta. Ou só uma brincadeira.
É o compromisso que passa pelas gerações. Herança dos Amaros. Tradição de Paracatu.
Reportagem: Fernanda Lília
Imagens: Rafael Camargos
Auxiliar: Rubens Carvalho
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