Rets entrevista presidente da Associação da Marambaia
Parados no tempo
Luísa Gockel
Em 1850, o Brasil cedeu às pressões da Inglaterra – que estava interessada no potencial do mercado consumidor brasileiro – e aprovou a Lei Eusébio de Queiroz, extinguindo o tráfico negreiro. Foi nessa época que se formou a comunidade quilombola da ilha da Marambaia, hoje parte do município de Mangaratiba (RJ). Os escravos eram pirateados e escondidos lá por Joaquim José de Souza Breves, um dos maiores fazendeiros do país. A comunidade permaneceu no local, sem maiores conflitos, até a década de 1970, quando a administração da ilha foi para as mãos da Marinha.
Membros da comunidade remanescente de quilombo da ilha denunciam que a Marinha estaria, há 30 anos, cerceando seu direito de ir e vir. Segundo eles, os militares estariam ocupando parte das terras para realizar turismo privado com seus familiares, assim como outras atividades indevidas, como a pesca predatória. Em entrevista, a presidente da Associação de Remanescentes de Quilombos da Ilha da Marambaia (Arquimar), Vânia Guerra, denunciou a situação de isolamento imposta à comunidade e acusou a Marinha de estar impondo um regime ditatorial na ilha.
Para tentar mudar esse quadro e acelerar o processo de titulação das terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), organizações da sociedade civil se uniram à comunidade e lançaram a campanha Marambaia Livre!. Entre as ONGs envolvidas estão Fase, Koinonia, Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap) e o Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre). As mobilizações já começaram a surtir efeito. No dia 12 de abril, a ministra da Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, esteve na ilha conversando com os moradores. Vânia Guerra conta, no entanto, que o encontro não foi muito animador. “A ministra disse que a situação é bem difícil e que estamos longe do desfecho desejado”. O ceticismo da ministra não é compartilhado pela presidente da Arqimar: “A Marinha vai tentar fazer alguma coisa para destruir o trabalho feito e ganhar tempo, mas confiamos na Justiça deste país”, diz.
A principal acusação feita contra os militares é a de impedir a entrada de representantes do Incra e de outras autoridades para que a comunidade, que ocupa a ilha há 150 anos, não seja capacitada, nem receba orientações sobre seus direitos. “O mundo evolui e nós continuamos parados. Deixa a gente com o sentimento de que a Marinha é mais forte que tudo”, lamenta.
Procurada pela Rets, a Marinha informou, por meio do seu diretor de Relações Públicas, Paulo Maurício Farias Alves, que “o assunto está sendo conduzido pela Casa Civil da Presidência da República”. A Casa Civil foi contatada, mas até o fechamento desta edição ainda não havia respondido.
Rets – Quando começou o conflito com a Marinha?
Vânia Guerra – O conflito com a Marinha vem da década de 1970. Antes os militares já tinham assumido a ilha, mas não tinham feito nenhum trabalho lá. Na década de 70, a Marinha fundou o Centro de Adestramento, e já nessa época começamos a ter problemas. Fomos proibidos de plantar. Os militares invadiam nossas roças. Eram grandes roças porque as famílias eram muito grandes, mas era uma agricultura de subsistência. Só há pouco tempo o MP interveio e liberou.
Até há bem pouco tempo, podíamos receber até quatro visitantes por fim de semana. Além disso, eles colocam fogo nas matas e põem a culpa nos moradores. Culpam a comunidade por degradar o ambiente.
Rets – Na época, vocês receberam algum tipo de orientação? Vocês tinham idéia dos seus direitos?
Vânia Guerra – O veículo de comunicação, para nós, era o rádio. Ouvimos as coisas da ditadura e achávamos que os militares eram assim mesmo. Achávamos que aquela situação era normal. Aos poucos fomos sendo orientados e começamos a descobrir que tínhamos direitos.
Havíamos nos informado, no continente, de que poderíamos fundar uma associação. Alguns políticos de Mangaratiba nos ajudaram a formar a Associação de Amigos e Moradores da Ilha da Marambaia, mas a Marinha impediu que fosse registrada. Isso foi na década de 90. Só em 2002 o MP foi à ilha, por causa de denúncias. Falaram que tínhamos o direito de nos organizarmos e nos reunirmos em uma associação.
Rets – Com qual estrutura vocês contam dentro da ilha?
Vânia Guerra – Existe uma escola lá dentro e uma igreja que foi tombada pela capelania militar. Existe também um posto de saúde que nos atende quando é emergência. Está sendo realizado um trabalho de prevenção agora, porque o governo instalou um posto daquele programa de saúde familiar. Mas não sabemos até quando vão ficar lá. Eles até tentam capacitar as pessoas para fazer esse trabalho de prevenção, mas para isso é preciso ter Ensino Médio. E das 600 pessoas que estão lá, só cinco ou seis têm Ensino Médio. Fica complicado, porque a escola só vai até a 8ª série. Os professores são todos de fora. Precisamos de embarcações para que os professores não fiquem presos o dia inteiro na ilha.
Só existem duas embarcações: uma que sai às 6h da manhã e outra que sai às 18h. Quem sai às 6h só pode voltar às 18h. Nem sempre os horários são cumpridos. Os estudantes, muitas vezes, chegam em casa à meia-noite, porque existem jovens que moram a duas horas do lugar onde chega a barca.
Rets – Como surgiu a idéia da campanha?
Vânia Guerra – A idéia da campanha surgiu porque a Marinha impedia representantes do Incra e outras autoridades de entrar na ilha. Impediam de entrar para que não fossemos capacitados. O mundo evolui e nós continuamos parados. Deixa a gente com o sentimento de que a nossa justiça é muito frágil e que a Marinha é mais forte que tudo.
A embarcação determina o nosso ir e vir. Lá nós ainda vivemos a ditadura. Eles também não deixam entrar os representantes de ONGs. Qualquer órgão que tenta entrar e que não seja para defender os direitos da Marinha é barrado e eles alegam que é ordem vinda de cima. Eles barram representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra o tempo todo.
Rets – Como está o processo de emissão de posse da terra?
Vânia Guerra – O laudo técnico do Incra está quase preparado e será entregue na próxima segunda, em Brasília. A partir da data que for publicado no Diário Oficial, tem 90 dias para sair. A Marinha vai tentar fazer alguma coisa para destruir o trabalho feito e ganhar tempo, mas confiamos na justiça deste país.
A ilha é muito grande, existem campos de treinamento das três forças e ainda uma vila militar. Só estamos pedindo a área que usamos. Demarcamos uma área da qual depende o nosso desenvolvimento, da pesca de mariscos, pois é de lá que vem a nossa subsistência. Vivemos dos moluscos e peixes, que são muito limpos e têm muita procura no continente. Não podemos deixar que a ilha seja depredada.
Rets – A senhora acha que com a titulação a situação vai mudar?
Vânia Guerra – Com a documentação na mão vamos poder dizer sim ou não. Vamos ter mais força e coragem. Se a terra é nossa, vamos poder procurar os órgãos competentes e exigir apoio. Vamos ter direito ao trabalho social do governo, ter nossa gente capacitada. Nós, da Marambaia, temos muita esperança. O mais importante agora é a terra titulada, para podermos negociar com os órgãos oficiais.
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