Nova lei de regulamentação paraquilombolas
Quilombolas se fortalecem com nova lei de regulamentação
Por Daniela Klebis
As comunidades remanescentes de quilombos ganharam força com a mudança constitucional no processo de regulamentação de suas terras, sancionada em 2003. Os resultados da nova lei começaram a ser vistos no ano passado, quando mais de 250 processos de legitimação de terras foram abertos, o maior número de toda a história nacional. Um pequeno passo, entretanto, diante das mais de 2 mil comunidades estimadas – muitas ainda desconhecidas – existentes no país, que resistem às perdas crescentes de seus territórios.
Apoiados na nova conjuntura política, eles reivindicam a devolução de suas terras e o fim de monoculturas que desgastam o meio ambiente em que vivem. No Espírito Santo, os quilombolas exigem o direito a cerca de 50 mil hectares, ocupados por empresas como a Aracruz Celulose, com plantios de eucalipto, a Destilaria Itaúnas S/A (Disa) e a Alcon, com cultivos de cana-de-açúcar. Quase 85% do território do norte do estado está coberto por monoculturas de eucalipto e, em menores proporções, de cana. As comunidades acusam a Aracruz, a maior empresa de celulose do mundo e responsável pela movimentação econômica do estado, de maus tratos, perseguição, e protestam contra as ações movidas pela empresa contra elas.
Uma pesquisa solicitada pelo Incra à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) mostra que os negros que viviam nas áreas do antigo Território de Sapê do Norte, ES, formado pelos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, foram forçados a sair região. De acordo com o estudo, cerca 1,2 mil famílias atualmente resistem entre os eucaliptais, de onde se extrai a celulose, canaviais e pastos da região. Um numero dez vezes menor que na década de 70, época em que a Aracruz Celulose se instalou na região. “Mas, por serem cerca de 1.200 famílias organizadas e conscientes, a mobilização desses grupos está conseguindo avanços”, aponta o antropólogo e historiador José Maurício Arruti.
Um grande avanço que está para acontecer é em Conceição da Barra, onde tramita um projeto de lei que proíbe o cultivo do eucalipto em 20% dos arredores dos quilombolas. Lá, 76% do território é ocupado pelo eucalipto e 15% pela cana. “Se conseguirmos essa diminuição, ainda que pequena, seria muito bom. Existem pessoas que têm eucalipto plantado praticamente dentro de casa”, diz Kátia Santos Penha, 25, membro da Comissão Quilombola (criada em 2005 com o objetivo de integrar as comunidades da região). Ela conta que, no momento, cinco comunidades estão em processo de regulamentação na região. “A nossa maior conquista é a luta. É chegar em uma comunidade e ouvir as pessoas dizerem ’eu sou quilombola’, ’eu vou lutar pela terra que foi do meu pai, do meu avô’. Cada território regulamentado é uma grande conquista, porque fortalece mais ainda as comunidades”.
Assim como seus pais e avós, Kátia nasceu e cresceu na comunidade quilombola de Vila Espírito Santo, no município de São Mateus. Segundo ela, atualmente 15 quilombolas estão sofrendo alguma ação judicial ou já foram processadas pela Aracruz. “Eles (a Aracruz) se dizem bons vizinhos, mas nós não temos essa integração com eles. Somos perseguidos a todo momento”, afirma.
Alacir Bernadete Denadai, técnica da ONG Fase, que assessora os movimentos quilombolas, comenta que, no Espírito Santo, 32 comunidades vivem oprimidas pela Aracruz e a monocultura do eucalipto, isoladas de qualquer apoio governamental. “Eles vivem em pequenos fragmentos da terra, uma terra que não produz mais nada. A muitas famílias, o que resta é recolher os resíduos do eucalipto para fabricar o carvão. Aqui ainda acontecem coisas absurdas”.
Em nota oficial, enviada por e-mail à reportagem da ComCiência, a Aracruz argumenta que até o presente não há um diagnóstico consolidado nem comprovação científica sobre a ocupação de territórios quilombolas. A empresa teria adquirido as terras diretamente dos seus “legítimos proprietários ou possuidores, segundo documentação idônea comprobatória da cadeia fundiária”. A empresa de celulose ressalta que “respeita as comunidades remanescentes dos quilombos, reconhecidas como uma de suas partes interessadas” e menciona uma série de programas sociais em andamento.
Regulamentações
Desde 1988, o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (que determina que o Estado deve emitir o título das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos) assegura os títulos de posse às comunidades oriundas de antigos quilombos (formados por escravos fugidos) que ocupam essas terras desde a abolição da escravidão. Mas até o decreto de 2003, o artigo abria brechas para contestações porque não determinava um procedimento padrão.
Arruti conta que em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso baixou um decreto para corrigir as falhas no artigo.Em sua opinião “um decreto retrógrado ao extremo, que inviabilizava a regulamentação dessas comunidades”. No texto de FHC, as famílias dessas comunidades deveriam comprovar descendência linear e a posse da terra por mais de 100 anos, o que impossibilitou a abertura de qualquer processo. Em 2003, o Presidente Lula regulamentou o decreto e extinguiu a necessidade de registros em cartórios ou laudos antropológicos sobre a linhagem da população pertencente àquela terra.
O processo, agora, se inicia com uma declaração da própria comunidade de que eles são remanescentes de quilombos. Com isso, essas comunidades conquistaram representatividade e sua palavra não está mais submetida ao “crivo da Ciência”. O conhecimento científico no processo passou a ser solicitado apenas na segunda fase do processo, quando é feito um relatório técnico de delimitação e demarcação da terra.
Esse relatório, antes responsabilidade da Fundação Cultural Palmares, passou a ser elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com a colaboração de antropólogos. “O antropólogo é importante nesse estágio do processo para argumentar sobre a natureza cultural terra”, defende Arruti. Depois de pronto, o relatório é publicado no Diário Oficial e passa por um período de contestação de 90 dias. Se ninguém protestar, as terras são tituladas e indenizadas.
Arruti argumenta ainda que o novo procedimento favoreceu os quilombolas porque a maioria deles não possui, nem nunca possuiu, o título da terra, nem acesso à documentação. “Se isso for adiante, será uma das maiores conquistas nessa área no Brasil”.
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