Jornal conta história dos quilombolas da Região de Gorutuba
Quilombolas lutam por cidadania
Depois de escapar dos grilhões e dos troncos das fazendas e minas de uma sociedade escravocrata, no século XVIII, fugindo para bem longe, cerrado adentro, onde a malária impedia o branco de chegar. De formar uma sociedade composta por 27 povoados, e de novamente serem vítimas dos brancos, na década de 1950, que tomaram grande parte das suas terras, mais uma vez os povos quilombolas, da Região de Gorutuba, no Norte de Minas, batalham por sua sobrevivência. São 6.500 descendentes de escravos fugidos ou libertos, que, até cinco anos atrás, mal faziam idéia de sua ascendência. Povo amável, sorridente, calmo, de modos simples, jeito ingênuo e paciente, de sotaque peculiar, que se organizou, foi reconhecido pelo Governo e outras 17 entidades, e agora permeia programas e incentivos do Estado e de parceiros para sobreviver, preservar sua cultura e resgatar as terras ancestrais.
A recuperação da história, cultura e retomada das propriedades começou há seis anos, com o trabalho científico do antropólogo Aderval Costa Filho, que percebeu as similaridades entre os habitantes das vilas, seus costumes e histórias, e de um homem simples, brincalhão, de fala mansa e sorriso fácil, o lavrador Nicolau Quaresma Franco, 68. Foi com a ajuda dele que os gorutubanos, desconfiados dos brancos, permitiram uma abertura. Achei sentido no que ele dizia. Que a gente era parecido e que era quilombola.
Fizemos quatro visitas com estudos em cada casa da comunidade, até conseguir um documento do Governo reconhecendo a gente como quilombola. O que queremos agora é nossa terra de volta, afirma.
Antes, os gorutubas formavam uma grande área comum de aldeias, de Francisco Sá ao Sul da Bahia, a 60 quilômetros da cidade mais próxima, que é Porteirinha. Deste tempo, o lavrador Marciano Fernandes de Souza, 86 anos, um dos mais antigos da comunidade, ainda tem saudades. «Na minha época, tinha mais liberdade. Criava cabra, ovelha, boi, porco e galinha, sem cercas. Respeitando a frente da casa e o quintal da pessoa, qualquer um podia plantar uma roça de milho, uma rua de feijão, melancia. Hoje, quem não tiver comprado uma terrinha, não tem vaca para tirar leite nem cercado para plantar», conta.
A atuação de grileiros e de fazendeiros no passado isolou as comunidades entre 127 grandes fazendas e propriedades menores. Muitos acabaram indo embora, deixando saudades na busca por sobrevivência. Os que ficaram, vivem dispersos, em casas de adobe, de varas ou de pau, chão de terra batida, com telhados de palha, lona ou telhas de cerâmica artesanal, e pouco mais de um quintal para cultivar. A água, muitas vezes, tinha de ser conseguida longe, até seis quilômetros de distância, no calor implacável do serrado, em córregos ou no Rio Gorutuba, que chegou a secar com a construção de barragens particulares. Situação que se agravou ao ponto de ser necessário a escavação de poço no seu leito seco para chegar até a água.
Mudanças que o lavrador Marciano acompanhou e viveu. «A fartura aqui antes era muita. As mulheres trançavam a linha na trama para fazer rede e jogar no Rio Gorutuba. Uma vez, pescaram dois surubins deste tamanho (mostra os braços abertos), que precisaram de três homens para tirar da rede. O couro do bicho, esticado na mesa, parecia o de um novilho. Agora não tem mais peixe, lembra. Dos fazendeiros e grileiros, mágoa pelos que tiveram de deixar suas terras.
Eles tinham jagunços, vestidos com gibão de couro, canela de couro e andavam com paus, facões e armas. Ameaçaram, bateram e até mataram quem não queria ir embora da terra. Eu mesmo não consegui agüentar. Colocaram fogo no meu pastinho», lamenta.
Tradições começam a ser resgatadas
Debaixo do pé de juazeiro, do lado da casa de quatro cômodos, construída com tijolos artesanais de barro e de adobe, chão de terra e telhado de telhas feitas da lama do próprio quintal, o lavrador Nicolau Quaresma Franco, 68 anos, morador da comunidade de Taperinha, tem todo um aparato rústico para fazer farinha de mandioca torrada, alimento típico dos quilombolas do Vale do Gorutuba. Por cima de sua casa, cabos energéticos do programa federal Luz para Todos, alimentam um rádio. Água não precisa mais ser buscada longe, a um quilômetro e de balde na cabeça. Vem agora encanada de um poço comunitário furado pela Associação dos Quilombolas. Nicolau mostra com alegria a terra de onde tira o sustento para ele, dois filhos e uma neta. «Nós plantamos o milho, feijão gorutuba e mandioca. É com isso que sustento minha família», afirma. Com auxílio desses programas, o senhor Nicolau se diz pronto para seguir com o grande sonho de ser alfabetizado, juntamente com outras 403 pessoas da comunidade, no projeto-piloto de Alfabetização Quilombola BB Educar, da Fundação Banco do Brasil.
Ele é um exemplo dos beneficiados da formação de uma entidade, a Associação dos Quilombolas do Vale do Gorutuba, que traçou prioridades e procurou parceiros. Seriam três as principais, de acordo com o presidente da Associação, Dernerval Fernandes Oliveira: terra, água e educação. Tínhamos um laudo antropológico e o reconhecimento do governo de que somos quilombolas. Então, escrevemos um calhamaço com todas nossas necessidades e enviamos para Brasília, prefeituras, Governo do estado», conta.
De acordo com ele, assentamentos saíram do papel, alojando parte da comunidade que vivia de favor ou em invasões. Ainda está longe do ideal. Precisamos de terra para plantar e sobreviver, e não tem isso em todos os assentamentos. Conseguimos trazer luz elétrica para algumas comunidades, abastecemos de água 85% do nosso povo e conseguimos uma escola de 1ª à 8ª série e ainda um projeto de alfabetização de adultos. Agora, queremos incentivos à produção de farinha, galinhas, e outros alimentos, além de partilhar nossa cultura com a comunidade, diz.
Um dos exemplos é a integração das crianças à capoeira e das mulheres à aula de bordado na sede da Associação na Comunidade da Taperinha. Apesar de manter tradições culturais de artesanato, dança e música, com tambor e palmas, e dos festejos de datas santas, os gorutubanos haviam perdido a história de sua origem. Artes comuns a outras comunidades negras, como a capoeira e a marambaia (tipo de crochê) são agora resgatadas.
Driblando a saudade dos que partiram
A miséria em que ainda vive parte do povo quilombola do Vale do Rio Gorutuba, entre sete municípios do Norte de Minas, é muito distante da situação de seus antepassados na mesma região. A sistemática grilagem das terras, aos poucos dissipou a cultura, trouxe a pobreza onde antes havia fartura e levou a emigração, que separa mãe de filho, avô de neto, irmão de irmã.
Na comunidade de Jacaré Grande, onde seis casebres de tijolos de barro e madeira, e uma pequena venda se dispõem em volta da pequena Capela de Nossa Senhora dos Remédios, a principal fonte de renda vem da festa organizada para a santa, entre 30 de agosto e sete de setembro, quando parte dos quintais e dos terrenos são alugados para barraquinhas e a gente da aldeia pode trabalhar.
É neste cenário de desolação que a dona de casa e responsável por cuidar da igreja, Maria Pereira de Araújo, 56 anos, mãe de oito filhos, e seu marido, Severino Guimarães, 55, doente de parkinson, tentam sobreviver. Antigamente meu avô tinha muita terra. A gente vivia e trabalhava solto, cuidando do gado. Hoje, está uma dificuldade. Não tem terra para trabalhar, só na fazenda dos outros. Veio gente de fora e fez meu avô assinar uma escritura e ele não sabia de escrita. Perdeu o que tinha», lamenta Severino.
O desespero de sua esposa é aplacado com determinação e esperança. Com o marido doente e duas filhas sumidas, tento tocar para frente. Aramos e plantamos a terra de um fazendeiro, aqui perto, junto com os vizinhos, para ver se conseguíamos salvar 11 litros de milho. Com ele, dá para fazer mingau, cuscuz, milho verde cozido, angu e fubá, além de poder dar para as galinhas que a gente cria solta. Só que a seca foi muita e não salvou quase nada. Agora, para não morrer de fome, aproveitei o canteiro da igreja para plantar quatro ruas de feijão de catador», disse.
A casa onde vivem, de tijolos de adobe, foi emprestada por amigos da comunidade, que se mudaram para assentamentos, há 11 anos. O interior é repleto de rachaduras, que rasgam as paredes de cima até o chão de terra batida. Barro e lama são adicionados às fissuras para tentar conter sua expansão. Os esteios do teto também estão podres e ameaçam ruir. No quintal da casa escura, sem lâmpadas elétricas, passado o fogão à lenha, uma pequena cabana vazia de bambu e de palha, estraga solitária cercada pelo mato que cresce. «Esta era a casa da minha filha, Ivanilde Pereira de Araújo, que hoje tem 21. Fiz a casa para ver se ela ficava aqui, mas acabou indo embora para Jaíba com o marido vaqueiro, que não conseguia emprego. Ela e a outra, a Maria Jiava Ferreira, de 27, que foi para Patos de Minas, levaram meus netos. Tem mais de três anos que não vejo elas. Mas deixo o barracão lá, pro caso de uma voltar, suspira a mãe emocionada.
Para forçar a criação de mais assentamentos, um grupo de quilombolas invadiu e montou acampamento em uma propriedade, com dívida de mais de R$ 2 milhões, rebatizada Novo Palmares. Lá, além das pessoas morarem em barracos apertados de varas de madeira, lona e palha, como o do lavrador Alexandro Antunes Quaresma, 47, onde sua esposa e três filhos se apertam em duas camas, funciona uma escola estadual, a única da região, onde os quilombolas aprendem o ensino fundamental.
Crianças pequenas, que enfrentam a noite, sozinhas, a escuridão e mais de três quilômetros de caminhada pelas estradas de terra cercadas de mato. Sofrimento que pode acabar, de acordo com o presidente da Associação dos Quilombolas de Gorutuba, Dernerval Fernandes Oliveira. Um juiz emitiu mandado de reintegração de posse dessa fazenda, que está em território quilombola reconhecido, completamente endividada, improdutiva há mais de dez anos, e onde funciona a única escola de ensino de 1ª à 8ª série da região, afirma, indignado.
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