• (21) 3042-6445
  • comunica@koinonia.org.br
  • Rua Santo Amaro, 129 - RJ

Encontro em Lídice reúne três comunidades quilombolas do estado

por José Maurício Arruti e Rosa Peralta

Cerca de 100 quilombolas se reuniram nos dias 17 e 18 de dezembro em Lídice, distrito de Rio Claro, região sul do Estado do Rio de Janeiro. Os participantes eram das comunidades de Preto Forro (Cabo Frio), Ilha da Marambaia (Mangaratiba) e Alto da Serra (Rio Claro).

O encontro foi uma das atividades do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, desenvolvido por meio de um convênio entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Programa Egbé – Territórios Negros, de KOINONIA. O objetivo do projeto é consolidar e fortalecer as associações das três comunidades quilombolas e melhorar a qualidade de vida de seus moradores, por meio da capacitação de sua população para a auto-gestão e para o desenvolvimento social, ambiental e culturalmente sustentável.

No primeiro dia, os participantes de Preto Forro e Marambaia chegaram já para a feijoada, com o tempero incomparável de Dona Terezinha e suas assistentes. Após o almoço, foi o momento de um dos supervisores do projeto e Isaías, presidente da Associação Nós da Roça, de Alto da Serra, darem as boas-vindas e apresentarem a programação do encontro.

As três situações

A comunidade de Preto Forro, localizada na área rural de Cabo Frio, é constituída de dez famílias descendentes de antigos escravos que trabalhavam em duas fazendas vizinhas e, que, por sua vez, foram antecedidas pela grande fazenda Campos Novos, sesmaria jesuítica datada do século XVIII. O nome Preto Forro teria sido dado àquelas terras e aos seus antigos habitantes, segundo contam alguns moradores, para diferenciá-los como um território livre em meio ao contexto de escravidão.

Mesmo diante do avanço das propriedades e da intensa grilagem que dominou a região a partir dos anos de 1960, as terras dos Pretos Forros tiveram seus limites parcialmente respeitados e o seu atual desenho foi sendo constituído justamente pelo reconhecimento dos proprietários confrontantes. Quatro gerações da mesma família têm permanecido pacificamente desde o final do século XIX nos vinte e quatro hectares de terra ocupados sob a forma de uso comum utilizados para moradia e produção agrícola.

Há cerca de vinte anos e, com maior violência, nos últimos dez anos, porém, essa relativa paz foi rompida. A partir do arrendamento de parte da terra para pasto, concedida por seus moradores em função das dificuldades com o pagamento dos impostos territoriais, um grileiro da região vem derrubando toda a mata remanescente da Mata Atlântica que a forma de exploração equilibrada do grupo permitiu sobreviver até início dos anos de 1990. Moto contínuo, o grileiro passou a intimidar os moradores, impedindo-os de continuarem construindo casas para os seus filhos e obrigando-os a cercarem as posses familiares, dentro do que até então era uma terra de uso comum. Diante desse avanço do grileiro, da destruição de suas plantações pelo gado e das proibições de retirarem os frutos dos pequenos trechos de mata que ainda restam, os moradores tomaram a iniciativa de finalmente buscar a defesa jurídica de suas terras.

Mesmo aí, no entanto, foram acompanhados por um profissional que, além de desconsiderar as razões e formas de percepção do direito construído pelo grupo, montou uma ação eivada de erros conceptuais e processuais que, de certa forma agravaram a situação do grupo.

Foi uma Ação Civil pública que mudou o curso dos acontecimentos. No início de 2003, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF/RJ) encaminhou uma ação em defesa de comunidade, citando o fazendeiro e exigindo da Fundação Cultural Palmares (FCP) um parecer técnico sobre a pertinência ou não da aplicação do artigo 68 à comunidade. Paralelamente à intensa disputa judicial entre a comunidade e o fazendeiro, o laudo foi finalizado pela FCP no início julho deste ano.

A comunidade negra rural de Alto da Serra fica situada ao sul do Estado do Rio de Janeiro, no município de Rio Claro, e é composta de 30 famílias, todas descendentes de um mesmo ancestral. Sua origem está ligada ao período de abertura de estradas de ferro, que atraíram trabalhadores de diferentes locais para o trabalho na extração de carvão para sustentar as ferrovias e as siderúrgicas no final do século XIX. Alguns membros da comunidade são descendentes dos trabalhadores que integravam tropas de carvoeiros no início do século XX e que vieram para este local acompanhando a extração do carvão.

A primeira família chegou na região por volta da década de 40 para trabalhar na extração de carvão que era realizada no Sertão do Sinfrônio, uma área próxima utilizada para este fim. Segundo os mais antigos “o sertão do Sinfronio não era um bom local para se viver com a família”, por isso, as famílias ocuparam a área denominada Alto da Serra, que foi utilizada para agricultura de subsistência e para venda da produção excedente.

A população desta comunidade vive quase exclusivamente da produção agrícola. Sua principal produção são banana e mandioca, ambos destinados ao mercado externo. Além do trabalho agrícola, algumas mulheres da comunidade produzem doces caseiros, queijos, pães e biscoitos para serem comercializados nas zonas urbanas do distrito de Lídice e em Angra dos Reis, onde também é vendida a produção agrícola da comunidade. Originalmente, o território da comunidade era de aproximadamente 440 alqueires (sem confirmação técnica), formado de nascentes e mata nativa, ocupados pela família Leite há pouco mais de sessenta anos.

A partir de fins dos anos de 1990, a comunidade toma conhecimento que parte das terras que ocupa teriam sido vendidas em um leilão do Banco do Brasil.

A Ilha da Marambaia fica localizada no litoral de Mangaratiba (RJ), em uma ilha que ao longo do século XIX serviu de entreposto ao tráfico de escravos. Antes de morrer, o potentoso proprietário e traficante, também político influente no Império, conhecido como “Breves”, teria deixado toda ilha para os ex-escravos que ainda permaneciam nela, atribuindo a cada família uma praia. A doação foi “só de boca”, como contam, mas apesar da família Breves não ter cumprido o compromisso assumido pelo antigo proprietário de transferir a propriedade da Ilha, as famílias negras permaneceram ali em posse pacífica até 1939.

Entre as décadas de 1930 e 1960 foi ocupada pela Escola de Pesca do governo Federal e, a partir de 1971 passou a ser considerada Área de Segurança Nacional, passando a estar sob o controle do Centro de Adestramento da Marinha (CADIM). A partir desta data seus antigos moradores, cuja genealogia remete a uma ocupação da ilha de mais de 150 anos, passaram a ser classificados como “invasores” e progressivamente expulsos, primeiro por meio de uma crescente lista de proibições (várias delas ferindo direitos individuais, civis e políticos) e por processos administrativos e, a partir de 1998, por meio de processos judiciais de “reintegração de posse” movidos pela Marinha, várias vezes sem que os moradores processados soubessem da ação ou se fizessem representar por advogado ou defensor público.

A situação começou a ganhar visibilidade ainda no ano de 1999 e, em 2001, foi novamente uma Ação civil Pública interromperia o processo de expulsão dos moradores e obrigaria a União a produzir um laudo antropológico sobre o grupo e seu território. Finalmente, no ano de 2003, depois de algumas outras tentativas frustradas, as cerca de 120 famílias de ilhéus da Marambaia conseguiriam organizar uma associação, a ARQUIMAR (Associação dos Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia) e seriam oficialmente reconhecidos em seu direito à terra. Mas o processo de regularização não se iniciaria imediatamente por parte do INCRA, o que só ocorreu este ano, com a mudança na Superintendência estadual do Órgão.

O projeto

O projeto Etnodesenvolvimento Quilombola foi concebido como um processo-piloto de capacitação para a auto-gestão e para o desenvolvimento social, ambiental e culturalmente sustentável nestas três comunidades. Seu objetivo imediato é formar um grupo de gestores locais, capazes de formular e implementar projetos que lancem mão dos potenciais de cada comunidade e seus territórios, mas também das políticas governamentais voltadas ao seguimento quilombola, de forma a fortalecer as associações dessas comunidades e melhorar sua qualidade de vida.

No contato com comunidades negras rurais localizadas em diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro, o Projeto Egbé Territórios Negros de Koinonia diagnosticou alguns problemas recorrentes que justificavam um projeto com esse teor. Em primeiro lugar, a maioria dessas comunidades não tem documentação de suas terras e encontra-se em situação de litígio com grileiros, o que gera dificuldades adicionais de acesso ao crédito ou assistência técnica oficial e mesmo à continuidade de suas atividades econômicas tradicionais. Além disso, tais comunidades, sejam as que se encontram em processo de reconhecimento ou mesmo as que já foram oficialmente reconhecidas como remanescentes de quilombos, não se encontram plenamente informadas sobre as implicações jurídicas e organizativas da aplicação do artigo 68 (ADCT da CF1988), assim como suas implicações, tais como a exigência de titulação coletiva e de uma associação organizada segundo um estatuto especial.

Acrescente-se a esses problemas, o fato da maioria dessas comunidades não possuir uma associação consolidada ou, quando já as possuem, não operarem plenamente, em função da falta de capacitação dos seus associados na dinâmica política, administrativa e jurídica desse tipo de organização. Isso acontece porque a grande maioria dessas comunidades não possui relação com movimentos sociais, seja de classe ou de raça, estando fora do alcance de qualquer forma de processo formativo e informativo relacionado à demanda por direitos, ao acesso às políticas públicas e à formação política de uma forma mais ampla.

Finalmente, nos levantamentos socio-econômicos que Koinonia vem realizando entre essas comunidades desde o ano de 2000, detectou-se, nessas comunidades rendas familiares baixíssimas, alto déficit educacional, intensificação do fluxo migratório para as cidades, além de alto grau de degradação ambiental, percebendo entre esses fatores fortes vínculos de implicação sistêmica.

Tendo em vista este diagnóstico e os objetivos propostos pelo projeto, estão sendo desenvolvidas oficinas de capacitação dos moradores daquelas comunidades em temas fundamentais ao seu etnodesenvolvimento, como o direito à terra dos quilombos, as formas de associativismo, a gestão ambiental dos territórios, as formas de produção sustentáveis e as políticas públicas às quais podem ter acesso. Simultaneamente a tais oficinas está sendo desenvolvido também um processo de autodiagnóstico de cada uma das comunidades, tendo em vista a sua capacidade produtiva (já desenvolvidas ou potenciais) para que, em um momento seguinte, cada uma dessas comunidades possa formular um ou mais projetos de desenvolvimento local e encaminhá-lo às agências competentes, com a assessoria técnica de Koinonia.

Este projeto prevê também três momentos dedicados à troca de experiências e avaliação coletiva do andamento dos trabalhos previstos. Tendo em vista a organização dessas comunidades para sua emancipação política e econômica, consideramos fundamental fomentar não apenas uma rede externa de apoio a elas, por meio da opinião pública e da sociedade civil, mas também uma rede entre elas.

Assim, o encontro de 17 e 18 de dezembro passado foi um dos encontros previstos entre essas três comunidades, cabendo aos seus moradores a tarefa de se organizarem para receberem os moradores das outras. O seu principal objetivo não foi dar conta de qualquer pauta de trabalho, mas de abrir um espaço para a troca de experiências entre os moradores destas três comunidades, fundamental para a criação de uma rede de solidariedade e de articulação política entre elas.

Troca de experiências

Apesar do cansaço da viagem e da moleza que acompanha uma boa feijoada, os quilombolas de Preto Forro e Marambaia não pouparam esforços e foram logo fazer o reconhecimento da área de Alto da Serra, repleta de riachos e cachoeiras. “Aqui é muito lindo e gostei também das plantações que eles fazem aqui”, exclamou uma das representantes da Ilha da Marambaia.

À noite, todos se reuniram em círculo para um momento dedicado à de troca de experiências: “Para quebrar o clima que geralmente envolve os encontros da equipe de KOINONIA com as comunidades – discutir trabalho, atividades ou falar dos embates enfrentados pelo movimento –, achamos por bem promover este momento de apresentação dos participantes e de suas experiências. Isso vai permitir que possamos nos conhecer melhor, comparar as realidades e fortalecer os laços”, conta André, um dos supervisores do projeto.

Depois das apresentações individuais, um representante de cada comunidade falou um pouco do lugar onde vive, bem como da situação atual que enfrentam.

A primeira a falar foi Eliane, de Preto Forro: “Sabemos que a luta não acabou, mas o nosso momento de agora está sendo o melhor. De um ano e meio para cá, sentimos que muita coisa mudou, que o processo (de titulação) está andando.” Em seguida, Osmar, da Ilha da Marambaia expôs qual o maior objetivo da comunidade: “Queremos a propriedade de nossas terras, para podermos construir nossas casas”. Vânia Guerra, presidente da Associação da Ilha, completou: “Ainda não temos liberdade, o direito de ir e vir, diferente dos outros aqui, mas sabemos que os irmãos têm outros problemas e por isso é importante estarmos reunidos para nos conhecer.” Depois foi a vez de Isaías, presidente da Associação de Alto da Serra: “Há 50 anos estamos aqui, mas com a chegada dos grileiros, alguns saíram. Quase demos o caso por perdido, mas foi então que conhecemos um e depois cinco que tinham conhecimento. Hoje colocamos quase 100 pessoas com o mesmo problema juntas. Está na hora de reverter esse quadro que está aí para todos nós que lutamos pelo direito à terra. O direito esta aí, mas também cabe a nós buscar outros direitos, pois existem órgãos para resolver cada necessidade que temos. Então, é importante falar com outras pessoas, para procurar saber sobre nossos direitos. É o momento de pensar, trabalhar mais unidos, com coragem, com um objetivo definido. Só assim conseguiremos ter o acesso à justiça.”

Joeci, mais conhecida como Jô, disse que na Ilha da Marambaia eles não podem ter plantações como em Alto da Serra. Aloísio, outro morador da Ilha, acrescentou que há também dificuldades de acesso a água e de falta de luz elétrica. Os ilhéus falaram do conflito e das proibições impostas pela Marinha. “Para recebermos visitantes, agora somos obrigados a preencher um novo formulário, em que a pessoa convidada tem que colocar se é de organização governamental ou não-governamental. Isso porque eles não querem que a ajuda de outras pessoas chegue a nós”, explicou Jô.

A solidariedade foi instantânea e espontânea. Eliane, de Preto Forro, pediu a palavra: “Essas dificuldades com a Marinha são inacreditáveis e inaceitáveis.” Elias, outro líder de Preto Forro, completou: “Nossas terras são muito pequenas em relação às daqui, mas estamos vendo que as outras comunidades têm problemas muito sérios.”Seu Tião, de Alto da Serra, disse estar muito preocupado com a situação dos ilhéus e propôs que todas as comunidades do Estado do Rio de Janeiro escrevessem uma carta ao governo exigindo o fim da opressão aos moradores da Marambaia. “Se cada comunidade correr atrás para registrar sua associação, poderemos mandar uma carta oficial de todas as comunidades do estado. Essa situação que eles vivem é como se a sentíssemos na própria carne.”

Seu Dito, patriarca de Alto da Serra, finalizou dizendo que estava muito contente por receber todos em sua comunidade: “Agora temos a família reunida, com os de Preto Forro e Marambaia, um conhecendo o outro.”

Depois das falas, todos foram convidados a comer uma canja e a seguir a um churrasco com forró. No dia seguinte, antes mesmo do café da manhã, muitos quilombolas da Ilha da Marambaia e Preto Forro, e não só os mais jovens, foram fazer novas e longas caminhadas. Estava previsto para as 10 horas um mini-campeonato de futebol entre as comunidades. O clima era de descontração total, com a numerosa e barulhenta torcida feminina de Preto Forro. Aliás, elas formam um time na comunidade, mas que na ocasião do encontro estava desfalcado: “A goleira não veio e a nossa melhor jogadora está grávida”, afirmaram.

Depois do campeonato, todos se encaminharam para tomar banho de rio e para o almoço. Na hora da despedida, ninguém diria que aquelas pessoas não se conheciam de antes. Todos estão ansiosos para novos encontros, que devem se dar, primeiro em abril do próximo ano, na Marambaia e depois, em agosto, em Preto Forro.

O primeiro será dedicado ao monitoramento do processo de capacitação, quando então se reunirão em torno de uma pauta de trabalho, os técnicos de Koinonia, os moradores das três comunidades e convidados. O terceiro será dedicado ao encerramento e avaliação do processo, como o mesmo público somado à presença de avaliadores externos.

Um dos grandes desafios enfrentados agora, para além da realização do projeto em si, está na viabilização do segundo encontro na Marambaia. A Marinha de Guerra acaba de intensificar as proibições de entrada de convidados dos moradores na ilha, visando explicitamente impedir a entrada de técnicos governamentais e não governamentais envolvidos com a defesa dos direitos dos quilombolas. Uma estratégia que visa isolar e invisibilizar os ilhéus, que buscamos combater com ações de solidariedade e articulação como esta.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo