Quilombolas enfretam fome e miséria
Comunidade quilombola Filus, em Santana do Mundaú, é a mais recente
Uma estrada de barro é a única via de acesso à comunidade. De carro, saindo da AL-205, o percurso dura quase uma hora e meia de subida entre serras e pastagens.
No verão, a poeira e o calor tornam ainda mais difícil a subida até o topo da serra. No inverno, chegar ao local só mesmo a cavalo. Filus, no município de Santana do Mundaú, na Zona da Mata, é a mais recente comunidade quilombola identificada em Alagoas. Com ela, são agora 39 povos remanescentes dos quilombos no Estado.
A identificação ocorreu este mês e deve ajudar a tirar da pobreza quase absoluta as 25 famílias que habitam o lugar, onde os moradores vivem praticamente isolados.
Não há posto de saúde, água encanada, nem trabalho. O único poço que abastece as 20 casas de taipa é sujo e sua água está poluída.
Faltam escolas
As duas únicas escolas públicas estão em localidades distantes e os alunos têm de andar quilômetros para estudar. Energia elétrica chegou a Filus, mas tem pouca serventia, já que não há eletrodomésticos e um simples aparelho de televisão nunca esteve ao alcance dos moradores.
Por causa de uma praga e da falta de recursos para investir na terra, a pequena plantação de mandioca, feijão, banana e laranja foi quase toda destruída e os moradores perderam a única fonte de renda que ainda possuíam.
Neste mês dedicado a Consciência Negra, a Gazeta de Alagoas esteve no povoado para mostrar a situação dos remanescentes do líder negro Zumbi em Alagoas. A reportagem também foi ao mais popular quilombo do Estado, o Muquém, em União dos Palmares, e mostra, nesta reportagem, como vivem aqueles que ajudaram a construir uma história de luta contra a opressão racial; nas mãos de quem estão as terras que, por lei, deveriam ser deles e o que está sendo feito para reverter esse quadro de abandono.
Comunidade ainda sonha com progresso
As 25 famílias que habitam o povoado de Filus têm a mesma descendência, ou seja, são todos parentes: irmãos, primos, tios, avós e netos. A distância e o isolamento fazem com que se casem entre si, como acontece em muitas das comunidades quilombolas. Sem apoio do poder público, sobrevivem em condições precárias, situação que se agravou nos últimos anos, segundo confessam. Isso porque a terra está “cansada”, como eles acreditam, e já não dá mais o fruto que alimentava as famílias.
Os homens abandonaram o trabalho na roça e foram cortar cana. Viraram bóias-frias. No período de entressafra, quando as usinas param de moer, ficam sem nenhuma fonte
de renda. O artesanato, que tem ajudado outras comunidades remanescentes a gerar renda, também não chegou ao povoado.
Nem mesmo a casa de farinha funciona. Sem a principal matéria-prima, a mandioca, devastada por uma praga que ataca a lavoura, não há como produzir o alimento.
Atravessadores
Para agravar ainda mais a situação, os atravessadores “descobriram” no povoado uma forma fácil de ganhar dinheiro. Quando a comunidade ainda conseguia produzir laranja
e banana para comercialização, os atravessadores compravam a saca com mil frutas por R$ 10, quando o valor de mercado, segundo o Sindicato dos Agricultores de Santana
do Mundaú, custa entre R$ 25 e R$ 30.
No inverno, a situação se complica. Como a estrada fica intransitável, eles perdem toda a safra. Manoel José da Silva, 62, pai de 12 filhos, a exemplo dos demais, nasceu e se criou no Filus. Diz que nunca viu situação como esta. “A vida ta apertada; falta recurso e o jeito é trabalhar na cana e ganhar R$ 10 por dia; assim mermo quando acha. Quando num tem, a gente vai atrás de um cercado pra bater (consertar). Tá todo mundo passando necessidade, mas mermo assim só saio daqui quando morrer”, garante.
Parentesco gera mistura entre negros
O tempo praticamente apagou da memória dos moradores de Filus a história de seus antepassados. É assim, também, em outros povoados remanescentes de quilombolas, onde as vagas lembranças sobre a origem dos quilombos estão presentes apenas na memória dos mais velhos.
Eles contam que o nome do povoado vem de um dos primeiros habitantes do lugar, mas pouco sabem sobre os negros fugitivos que deram origem às comunidades.
Mas, quem chega ao povoado de Filus pela primeira vez depara-se com uma situação um tanto quanto inusitada. No meio dos negros, surgem vários albinos, crianças e adultos que mal conseguem ficar com os olhos abertos no sol do meio-dia. São filhos de negros que nasceram “branquelos”, como são carinhosamente chamados.
Eluzinete da Silva, 41, é uma das 11 irmãs de Terezinha Isabel, 50. São filhas de negros, mas ela e uma outra irmã nasceram albinas. Terezinha, que se diz “morena”, tem quatro filhos, três dos quais também nasceram “claros”, como se autodefinem. “Acho que comeram muita abóbora”, deduz Terezinha às gargalhadas. “Penso que era porque meus pais eram família”.
Apesar da alegria, Eluzinete sofre com a pele extremamente branca. Tem câncer de pele e bolhas no braço. Mãe de oito filhos, ela reclama de dores de cabeça, nos braços e mãos.
O diretor do Laboratório de DNA Forense da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Luiz Antônio Ferreira, explica que o albinismo é o resultado de uma mutação genética.
Segundo ele, a substância melanina define a cor da pele. Quanto mais a pele é branca, menos melanina acumula-se nas células.
“As pessoas que recebem mutação genética do pai e da mãe durante sua formação, não conseguem produzir melanina, provocando o que chamamos de albinismo”, revela.
Com o grau de parentesco entre os casados, diz o geneticista, essa probabilidade aumenta.
Artesanato garante renda a quilombolas
O artesanato em barro tem sido a principal fonte de renda das famílias que habitam o Muquém, no município de União dos Palmares. Tradição passada ao longo das gerações, a arte de transformar barro em panelas, bonecas, jarros e outros objetos de decoração se perpetua graças à dedicação dos mais velhos. Com dificuldade para cultivar a terra, os antigos agricultores encontraram no artesanato uma fonte de renda que foi além das fronteiras da comunidade e hoje sonham em conquistar mercado externo.
Antônio Nunes, 68, nasceu e se criou no Muquém. Ex-trabalhador de usina, ele aprendeu com pai a “bater tijolo”. Depois que se aposentou e casou pela segunda vez, aprendeu com a mulher, Irinéia Nunes da Silva, a trabalhar com o barro e hoje é um exímio artesão. Tanto é que este ano esteve em Brasília, na II Feira Nacional de Agricultura Familiar e Reforma Agrária, para onde levou a arte do Muquém.
“Só não foi melhor porque não sabia do valor do dinheiro deles (o dólar); daí apanhei muito porque nunca tinha visto esse negócio de dólar, mas valeu a pena”, diz.
Orgulhoso de suas origens, “seu” Nunes lembra que os pais dele contavam a história de uns negros que “fugiam por aqui e ficavam debaixo de um pé de manga no Zimbô” (o rio que corta o Muquém onde, segundo os habitantes do lugar, existem duas pegadas, de Zumbi e de outro negro fugitivo).
A esposa, uma liderança na comunidade, Irinéia Nunes, 58, trabalha dia e noite na produção das peças artesanais e já tem até ajudante, a cunhada, Maria Benedita Nunes, que recebe R$ 15 por dia pelo trabalho.
Este ano, três técnicos do Ministério da Cultura estiveram no Muquém para ensinar os artesãos a aperfeiçoar a técnica.
No Muquém vivem 110 famílias. Os quilombolas criaram uma associação e estão aguardando a construção de um galpão para produzirem as peças artesanais em maior quantidade.
A vice-tesoureira da associação, Albertina Nunes da Silva, diz que aos poucos a comunidade está se organizando. Garantiu a construção de posto de saúde, escola e de 45 casas de alvenaria em substituição as de taipa, além de energia e água encanada. Mas eles lamentam não ter um posto dos Correios na comunidade. Um dos quilombolas passou no concurso do Estado e acabou perdendo o direito de tomar posse porque não recebeu o telegrama do Estado comunicando a data. “Aqui, quem quer alguma correspondência, tem de ir buscar em União”, dizem.
A antropóloga Elis Lopes, gerente de Programas Quilombolas na Secretaria Especializada de Defesa e Proteção das Minorias em Alagoas, diz que a instituição tem acompanhado
permanentemente as comunidades e dado apoio técnico para garantir o processo de reconhecimento e benefícios sociais. Na visão dela, essas comunidades “não querem assistencialismo, mas projetos que possam garantir a sobrevivência utilizando os potenciais que possuem e que os ajudem a viver de forma digna”.
Para ela, só agora, 400 anos após o início da história de luta, esses povos estão conseguindo garantir projetos de inclusão social, graças à organização dos movimentos
negros no País.
Organização
“Em Alagoas foi criada a Coordenação Estadual dos Quilombolas (Corpoal), cujo presidente é o líder do Quilombo de Santa Luzia do Norte, José Petrúcio dos Santos. Com a organização, os quilombolas aos poucos estão conseguindo viabilizar a pauta de reivindicações das comunidades.
Nas comunidades quilombolas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo Elis Lopes, foi implantado o Programa Fome Zero, que distribuirá cestas básicas, com 20 quilos de alimentos, até maio de 2006. Cinco comunidades em Alagoas
foram contempladas, quatro em Poço das Trincheiras e uma em Batalha. O povoado Filus, em Santana do Mundaú, acabou beneficiado, por estar em situação de emergência.
Projetos nas áreas agrícolas, de capacitação para o artesanato e de qualificação profissional também têm sido incentivados. No Filus, a Secretaria de Agricultura do Município, em parceria com o Estado, fará o peixamento do açude, lançando alevinos (filhotes de tilápia).
A secretaria também está buscando parceria com a Embrapa para recuperar a terra e possibilitar o replantio.
No último dia 15, equipes do Programa Saúde da Família (PSF) estiveram no povoado para levar atendimento básico de saúde, aplicação de flúor, escovação e acompanhamento às gestantes. Os moradores ganharam corte de cabelo, lanche e um dia de muito lazer.
Titulação
A diretora de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, Bernadete Lopes, diz que, ao contrário do que parece, não há um atraso das comunidades em Alagoas, do ponto de vista de desenvolvimento, em relação a outros estados. O apoio para a capacitação dessas comunidades e geração de renda tem, segundo ela, garantido o resgate da auto-estima desses povos, que começam a se organizar em associações.
A fundação, que tem como um dos objetivos interceder junto ao governo para garantir políticas públicas a essas comunidades, enfrenta, como maior entrave, na opinião da diretora, a luta pela titulação da terra, concedida pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). É o que ocorre na comunidade de Tabacari, em Palmeira dos Índios, onde os quilombolas ocuparam a terra que pertence a seus antepassados e agora enfrentam ameaças dos posseiros.
Para tentar uma saída sem maiores conflitos, Bernadete Lopes diz que já esteve no local três vezes este ano. “Os fazendeiros começaram a reagir e houve, inclusive, ameaças de morte, diz a diretora, acreditando que a situação será resolvida pacificamente.
Serra da Barriga: santuário abandonado
Na terra onde Zumbi fundou o maior quilombo da história do Brasil, União dos Palmares, os descendentes do líder negro também enfrentam dificuldades para sobreviver e preservar a história de seus antepassados. No dia 20 de novembro de 2003,
quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve em Alagoas e visitou a Serra, comprometeu-se em manter o sítio histórico preservado e criar no local um centro de estudos afro-brasileiros, o que até hoje não passou do discurso.
O presidente lançou, ainda, a Política Nacional de Igualdade Racial, visando à inclusão social e à agilização do processo de regularização das terras remanescentes de quilombos no País, por meio do Decreto 4.887.
Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional em 1985, a Serra da Barriga guarda pouco do que ali os quilombolas deixaram.
História
Os quilombolas, que na língua banto significa “povoação”, funcionavam como núcleos habitacionais e comerciais, além de local de resistência à escravidão (séculos XVII e XVIII). Neles se abrigavam escravos fugitivos de fazendas. Eram locais no meio da mata, onde os negros conseguiam manter sua cultura africana, plantar e produzir em comunidade.
No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram identificadas 743 comunidades descendentes dos quilombos, mas só 36 foram
tituladas pelo governo federal.
Estima-se que 2 milhões de pessoas vivam nessas terras. Em Alagoas, das 38 comunidades identificadas, segundo a antropóloga Elis Lopes, 11 foram reconhecidas e apenas duas estão em processo de titulação das terras: Cajá dos Negros, no município de Batalha, no Sertão, e Tabacari, em Palmeira dos Índios, no Agreste.
A expectativa é de que até o final de 2006 a titulação seja concedida. “A titulação é dada pelo governo federal, por meio do Incra, no nome da comunidade, ou seja, é coletiva. Não se pode vender e o cultivo é feito por todos os seus habitantes”, explica Elisa Lopes, ressaltando que esse processo é demorado.
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