Quilombolas de Ivaporunduva no Globo Rural
Laços de família
Manter a tradição e, ao mesmo tempo, aprimorar a qualidade dos produtos para ganhar espaço no mercado. Esse é o atual desafio dos agricultores de Ivaporunduva, que você acompanha agora na segunda parte da reportagem sobre os quilombolas.
No meio da floresta, bananas. O Vale do Ribeira é a principal região que mais produz a fruta no Brasil. Quase um milhão de toneladas são colhidas aqui todo ano, o que movimenta mais de R$250 milhões. Em Ivaporunduva não é diferente.
A principal fonte de renda da comunidade é a banana. Daqui saem 600 mil quilos por mês e metade dessa produção é orgânica.”
A escolha da lavoura orgânica é uma tentativa de valorizar o produto dos quilombolas no mercado. Hoje, 35 agricultores estão credenciados pelo IBD, o Instituto Biodinâmico.
Bisneto de escravos, seu Vandir Rodrigues Alves é um dos quilombolas mais entusiasmados com a certificação.
“Tivemos que mudar as coisas aqui na lida com a lavoura para conseguir a certificação orgânica. A queimada, por exemplo, hoje a gente não pode fazer. Queimava o mato para depois plantar. A gente roçava a capoeirinha para depois plantar. Hoje, já tem que plantar sem queimar. Então, a gente roça primeiro o matinho, planta as mudas de novo. Aí, depois que ela nasce a gente começa a roçar. Aí, ela cria na terra sem queimar e deixar que viva com a força da terra”, explica seu Vandir.
Aqui, não existe terra particular. Os quilombolas desenvolveram um esquema próprio de divisão da área.
“Na verdade, cada um tem um lugarzinho para trabalhar, mas a terra não é nossa. A terra é da comunidade. Cada um tem um limite para trabalhar, um lugar para trabalhar. Tenho direito de trabalhar porque meus avós trabalharam aqui desde criança meus avôs, meu bisavôs, trabalharam aqui, então, a gente tem direito na terra”, conta seu Vandir.
Para conseguir bons preços no mercado é preciso, ainda, tomar cuidado para não machucar a banana, como conta o agrônomo Fábio Graf, do ISA – o Instituto Sócio-ambiental.
“Antigamente o pessoal carregava de dois a três cachos de uma vez só. Hoje, o pessoal carrega um só e tem muito mais cuidado na hora de descarregar, na hora de embalar. Quando a banana está verde você não vê nenhum dano nela, mas depois aparecem as manchas e aí que prejudica a qualidade e a comercialização”, diz Graf.
Um varal de bananas, chamado de pendureiro, também ajuda a proteger a fruta.
“Está com um ano e meio, dois anos que eu penduro banana desse jeito. Depois que entrou o trabalho de certificação orgânica a gente começou a fazer esse trabalho aqui porque a banana sai mais limpa, magoa menos. Até para o embalador fica mais fácil, porque ele tira daqui e põe na caixa de lavar. Já fica no jeito”, diz seu Vandir.
A venda de banana na comunidade funciona assim: o comprador, que pode ser feirante, dono de supermercado ou de quitanda, faz um pedido para a Associação dos Quilombolas, que por sua vez estabelece cotas entre os agricultores.
Cada um faz a colheita na sua área e, mais tarde, junta-se tudo numa carga só. No dia combinado, a comunidade se agita para encaixotar a produção.
Apesar das mudanças na condução da lavoura, a comercialização ainda é um gargalo para esses agricultores. É que nem toda a banana orgânica tem mercado garantido.
“Eu tenho aproximadamente noventa caixas para vender hoje. A carga dessa banana que eu estou vendendo hoje É orgânica, mas tá indo como convencional. Nós não estamos tendo um comércio fixo que desse para nós segurar só principalmente só a orgânica. Estamos perdendo dinheiro, mas fazer o quê! Hoje, no Brasil, acontece isso. Nessa banana, praticamente eu tenho um prejuízo de R$300,00. Isso, só eu…”, conta seu Benedito do Rosário Mota, quilombola.
Com a carga pronta, o trator vai embora pelo meio do bananal, pela mata virgem, pelo centro da comunidade. Logo, o trator chega até a balsa. Três mil quilos de banana na travessia do rio.
O caminhão, que levará a carga de hoje para São Paulo, espera do outro lado. Comprado com recursos do Ministério do Meio Ambiente, o caminhão permitiu que os quilombolas se libertassem dos atravessadores.
Enquanto seu Dito continua no serviço de campo, dona Maria cuida da casa. Ela e seu dito têm quatro filhos, mas só Grace Keli mora com eles.
“Eu gosto daqui. Aqui tem tudo. Tem água, tem as coisas que a gente planta, eu sou feliz. Graças a Deus”, relata Maria Elza Mota, mulher do seu dito.
“Eu estudo em Itapeúna, uma cidade aqui perto. Estou na oitava série”, diz Grace Keli, de 14 anos.
“Caso nossos filhos queiram casar com alguém de fora da comunidade, pode. Pode porque coração ninguém se manda. Não tem como mandar no coração porque a gente não sabe. Que nem, eu sou daqui, ela é da divisa da Bahia. Também não precisa ser negro. Vai depender dela. Aqui é tudo negro, mas, é quase tudo, tem alguém que é claro também, mas é descendência de negro. Então, eu acho que não tem problema nenhum não. Já vai havendo uma mistura. Faz um café com leite lá e vai assim mesmo. Segue em frente mesmo”, diz seu Benedito.
Na comunidade de Ivaporunduva, a bananeira também é fonte de outro tipo de renda. A Érica Pedroso está escolhendo um bom tronco de bananeira para servir como material de artesanato. Nesse pé, o cacho já foi colhido. Perto da casa, é um tal de descasca, corta, raspa…
“A gente usa uma tira para fazer o acabamento das bolsas, fazer pulseira, dar o acabamento geral, porque ela é a mais macia que tem, depois de seca ela fica como se fosse uma sedinha, De uma folha de bananeira conseguimos tirar alguns tipos de material, quatro fibras diferentes. A primeira lateral, que a gente chama de seda, a segunda, que a gente chama de barriga, a terceira que fica no meio que chama de renda e a última que é a casca que a gente raspa”, diz Érica, quilombola.
Aos poucos, o tronco da bananeira vai sendo desmontado e é possível perceber melhor algumas diferenças entre as fibras.
“Com a renda eu faço jogo americano, faço porta jóia. Ela é bem furadinha, como se fosse renda mesmo. Com a barriga eu faço bolsa chinelinho, chapeuzinho. E a casca uso pra fazer alça das bolsas, é mais resistente”, continua Érika.
Depois de tudo cortado, as fibras vão para o varal.
“É com o tempo assim ela demora um pouco mais, mas estando um sol bem quente no dia mesmo ela seca”, diz Elvira da Silva Pedroso, quilombola.
Para combater fungos, dona Elvira da Silva pulveriza uma solução de essência de eucalipto, óleo de canola, sabão de coco e água. Dona Elvira aproveita os horários vagos para dar forma a seu artesanato.
“Na hora de chuva a gente faz, aproveita o horário que tá chovendo, aproveita, se faz. O que vai sair daqui, que a senhora tá fazendo. Aqui sai uma bolsa ou um porta papel higiênico, o que a pessoa quiser fazer. Vou decidir depois que tiver pronto”, conta Elvira, coordenadora do grupo de artesanato da comunidade.
Na casa vizinha, Érica também não perde tempo. Daí vai sair uma bolsinha que eu estou terminando. A lateral dela eu fiz com trança, que é a casca que é a quarta fibra. Uma é a renda e outra é a barriga. Vai intercalando uma fibra e outra e dá um tom diferente de cor. Ajuda bastante na renda da família. Eu, por exemplo, que não vou muito a roça, a minha renda vem toda do artesanato.
A Érica e dona Elvira vendem as peças de artesanato para turistas que visitam a comunidade. Dessa vez, alunos de um colégio de alto padrão da cidade de São Paulo. E a Érica vai exibindo seus produtos.
Os objetos de caça são os preferidos dos meninos. Pelo jeito, a visita agradou.
“É muito legal. É uma comunidade totalmente diferente do que a gente pensa”, diz Odir Ferreira Neto, estudante.
“É uma comunidade muito organizada aqui”, diz Júlio Turola Ribeiro, estudante.
“Achei bem diferente porque as plantações não têm cerca, não têm nada. Ninguém invade nada”, diz Ana Teresa Teixeira Magalhães, estudante.
“Cada um tem o seu espaço para cultivar, só que todos ajudam todos”, diz Nara Pavan Lopes, estudante.
“É um bodoque. Um instrumento que eles usavam de caça, que atira uma pedrinha. Eu aprendi a jogar e agora eu vou levar para casa”, diz Odir.
Escola, aqui na comunidade só até o quarto ano. Na sala, alunos de idades e séries diferentes dividem o mesmo espaço e a mesma professora.
“Gosto de estudar, de estudar matemática, e de morar aqui” Luciele dos Santos Silva, estudante.
“Aqui tem rio, tem pássaros”, diz Talia Pedroso de Moraes, de sete anos.
“Aqui eu saio sozinho para brincar”, diz Mateus Ribeiro da Silva, de seis anos.
“Eu gosto de jogar bola”, diz Evanildo Florindo do Santos, de nove anos.
A partir da quinta série, um trajeto diário de barco e ônibus até escolas das cidades de Eldorado ou Iporanga ou Itapeúna. Mesmo com tanta dificuldade, o que pensa essa nova geração sobre o futuro dos quilombolas?
Nós reunimos aqui alguns dos jovens da comunidade para saber que história eles vão querer contar no futuro sobre o povo de Ivaporunduva.
“Eu acho que a comunidade está caminhando nos passos certos”, diz Paulo Silvio Pupo, 25 anos.
“Aqui tem nossa organização, tem a união da comunidade. Todo mundo tá disposto, um ajudar o outro”, diz Ivonete Alves da Silva, 20 anos.
“O jovem acho que tem que se preparar e voltar para a comunidade para ainda melhorar mais o desenvolvimento sustentável dessa comunidade”, diz Zé Rodrigues.
Essa reportagem sobre os quilombolas é a primeira de uma série sobre tradições culturais no campo, que o Globo Rural vai apresentar durante toda a semana. É uma comemoração dos cinco anos da edição diária do nosso programa. Amanhã, a gente conta a história dos Pomeranos do Espírito Santo.
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