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Decisão de manutenção de posse em favor da Família Silva

Abaixo, cópia da decisão de manutenção de posse nº 20057100020104-4, em trâmite na Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual

PROCESSO 05201044 – DESPACHO
1. RELATÓRIO. Trata-se de ação de manutenção de posse ajuizada por FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES e INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA contra JOSÉ ANTÔNIO MAZZA LEITE, EMÍLIO ROTHFUCHS NETO e MARÍLIA COELHO DE SOUZA ROTHFUCHS, na defesa da Comunidade Urbana Quilombola Família Silva, localizada no Bairro Três Figueiras, em Porto Alegre (RS). A parte autora pediu deferimento da liminar de manutenção de posse do art. 928 do CPC (item B de fls. 21). A petição inicial foi apresentada em plantão, tendo o Juiz-Plantonista determinado a distribuição para essa Vara Ambiental (fls. 02). A parte autora juntou documentos (fls. 252-257). Determinou-se a intimação da parte autora para emendar a petição inicial e juntar documentos que o Juízo tinha por relevantes para recebimento da inicial e exame da liminar (fls. 258). Feita a intimação da parte autora (fls. 263-264), o autor INCRA veio aos autos com a petição de fls. 266-271 e os documentos de fls. 272-657. Vieram conclusos. É o relatório. Decido.
2. FUNDAMENTAÇÃO. Sobre a situação fática pretérita e atual (fatos novos depois do trânsito em julgado), a documentação juntada pela parte autora dá conta da situação fática que existe quanto ao imóvel discutido na ação. Temos uma ação reivindicatória (processo estadual nº 01198180786) ajuizada pelos réus da presente manutenção de posse (proprietários do imóvel) contra diversas pessoas físicas integrantes da Comunidade Quilombola Família Silva (fls. 272-278). Essa ação reivindicatória tramitou na Justiça Estadual e foi julgada procedente em 10/08/99 em razão da revelia dos demandados (fls. 281-283). A sentença estadual transitou em julgado em 14/09/99 (fls. 283) e estava sendo executada pelos réus-proprietários, buscando a retomada do imóvel e a retirada dos respectivos ocupantes. Encontra-se atualmente suspensa por força de decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em agravo de instrumento (fls. 254-256). Nesta ação reivindicatória, parece que não foi discutida a natureza do imóvel nem houve qualquer intervenção ou participação dos autores dessa ação possessória (não são partes), o que parece só ter ocorrido posteriormente ao trânsito em julgado. Ainda não está esclarecido nos autos o motivo pelo qual os proprietários não conseguiram executar a sentença da reivindicatória nem tiveram ainda a posse do imóvel. Mas é certo que, mesmo depois do trânsito em julgado, ainda não tiveram a posse do imóvel, que se encontra ainda em poder dos demandados daquela ação. Mas, depois do trânsito em julgado da sentença da Justiça Estadual (em 14/09/99) e antes que os proprietários tivessem posse do imóvel, ocorreram fatos novos, que não parece ainda terem sido considerados pelo Juízo Estadual, até porque afetos à competência da Justiça Federal. Tais fatos supervenientes e relevantes são os seguintes: (a) em 30/04/04 a Fundação Cultural Palmares passou certidão de auto-reconhecimento em favor da Comunidade da Família Silva, reconhecendo que a mesma é e ocupa área remanescente de comunidades de quilombos (fls. 23); (b) em 03/06/05 o INCRA reconheceu a posse da Associação Comunitária Kilombo da Família Silva sobre o imóvel localizado no bairro Três Figueiras, em Porto Alegre (fls. 24), discutido nessa ação, sendo esse reconhecimento de posse publicado no Diário Oficial da União de 14/06/05 (fls. 645); (c) em 17/06/05 o INCRA expediu a Portaria 19/05 (fls. 656-657), em que aprova as conclusões do “Relatório Técnico de Identificação, Delimitação e Levantamento Ocupacional e Cartorial, elaborada pela Comissão nomeada, para afinal reconhecer e delimitar as terras dos remanescentes da comunidade de quilombo – Associação Comunitária Kilombo da Família Silva”, determina a publicação no Diário Oficial e notifica os presumíveis detentores de título de domínio, ocupantes, confiantes e demais interessados na área objeto do reconhecimento, para os fins que especifica (fls. 656-567). A documentação juntada pela parte autora torna perfeitamente plausível e verossímil a afirmação de que providenciará, “cumpridos todos os trâmites burocráticos, emitir o Título Definitivo de Propriedade para a Associação Comunitária Kilombo da Família Silva, no bojo do Programa Brasil Quilombola” (fls. 270), o que deveria acontecer em breve, apenas se aguardando o cumprimento de “todos os trâmites burocráticos”, tudo para os fins do art. 68 do ADCT/88. Daí a conclusão desse Juízo de que é essa a situação fática atual, com fatos novos e supervenientes à sentença estadual transitada em julgado em 1999, e de que esses fatos estão suficientemente provados nos autos pelos documentos que foram trazidos.
3. Sobre o recebimento da petição inicial de ação possessória, diante desse quadro fático e considerando a existência anterior de ação reivindicatória transitada em julgado na Justiça Estadual, cabe a esse Juízo Federal examinar se essa ação de manutenção de posse se mostra viável para os fins e na forma proposta. Ora, não há dúvida que os autores detêm legitimação ativa para ingressarem com essa medida judicial, uma vez que não foram partes na ação reivindicatória que tramitou na Justiça Estadual, uma vez que existem fatos novos ocorridos depois do trânsito em julgado daquela ação reivindicatória e uma vez que a própria Constituição Federal ordena ao Poder Público que proteja e defenda o patrimônio cultural brasileiro “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (art. 215-§ 1º da CF/88, grifou-se), expressamente prevendo que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (art. 215-§ 5º da CF/88) e que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (art. 68 do ADCT/88). O “Poder Público” de que trata o art. 215 da CF/88 aqui é representado pelos autores Fundação Cultural Palmares e pelo INCRA, que ocupam o pólo ativo dessa ação e que não foram partes na ação reivindicatória que tramitou e transitou em julgado na Justiça Estadual. Estando ameaçada a posse exercida há muitos anos pelos integrantes daquela Comunidade Quilombola (em razão da pretensão reivindicatória dos réus dessa ação), existindo reconhecimento da natureza pública daquela área como remanescente de quilombo (fatos novos antes referidos) e não tendo isso sido discutido na ação reivindicatória que tramitou na Justiça Estadual sem a participação do INCRA ou da Fundação Cultural Palmares (porque os fatos são novos e supervenientes, não existindo ainda na forma atual na época em que transitou em julgado a sentença estadual), é certo que a presente medida judicial se mostra apropriada e viável para a finalidade de defender a posse exercida pela Associação Comunitária Kilombo Família Silva, ao menos até a emissão definitiva do título de que trata o art. 68 do ADCT/88. Descaberia aqui cogitar se os autores deveriam ajuizar ação cautelar preparatória de ação expropriatória ou embargos de terceiro contra o ato de imissão na posse ordenado pelo Juiz de Direito, porque a ação de manutenção de posse pode perfeitamente desempenhar a função postulada nessa ação: defesa de posse velha em razão de fatos novos e supervenientes, ordenando aos réus dessa ação – se for o caso – que se abstenham de tomar medidas contra os integrantes da Comunidade Quilombola ou de obstar o exercício da respectiva posse, enquanto vigente a determinação judicial. Daí a conclusão desse Juízo de que se mostra cabível e admissível a presente ação de manutenção de posse, na forma em que recebida nesse despacho.
4. Sobre o alcance dessa ação possessória e das decisões desse Juízo Federal, considerando que existe anterior sentença da Justiça Estadual (fls. 281-283), transitada em julgado em 14/09/99 (fls. 283) e ainda não executada, é conveniente examinar se disso não decorre coisa julgada que vinculasse esse Juízo e as partes dessa ação de manutenção de posse, ou então examinar se essa sentença não tornou a posse dos integrantes da Comunidade Quilombola ilegítima e ilícita, o que justificaria a rejeição da presente demanda possessória. Por entender necessário o exame do alcance do que havia sido decidido anteriormente na ação que tramitou na Justiça Estadual, esse Juízo Federal determinou que os autores emendassem a petição inicial e trouxessem comprovação dos atos processuais e judiciais praticados na Justiça Estadual (fls. 258), o que foi atendido pela parte autora. Vindo aos autos esses elementos documentais, esse Juízo conheceu e pode examinar os limites da sentença transitada em julgado na Justiça Estadual, concluindo agora que pode conhecer, processar e julgar a ação de manutenção de posse ora proposta sem que isso viole a decisão estadual nem alcance questões que tenham sido objeto de coisa julgada naquela ação reivindicatória.
5. É certo que a sentença estadual, tendo transitado em julgado, é lei entre as partes, produz coisa julgada e somente poderá ser rescindida mediante a competente ação de rescisão. Mas isso não obsta a que esse Juízo Federal conheça e eventualmente defira a tutela possessória postulada na ação de manutenção ora proposta pela Fundação Cultural Palmares e pelo INCRA, pelos motivos a seguir declinados:
6. Primeiro, porque não há identidade entre causas de pedir e pedidos nas duas demandas. Na ação reivindicatória, partes privadas discutiam propriedade. Os autores daquela ação reivindicatória (réus nessa ação possessória) pediam o reconhecimento da propriedade sobre o imóvel e a conseqüente imissão de posse. Isso foi reconhecido por sentença que transitou em julgado em 1999. Mas a presente ação possessória não discute propriedade. Limita-se a discutir a permanência dos integrantes da comunidade remanescente de quilombo naquela área, enquanto se ultimam os procedimentos de titulação definitiva do art. 68 do ADCT/88 (fatos novos e supervenientes ao trânsito em julgado da ação reivindicatória). Os pedidos são distintos, os fundamentos são distintos, as lides são distintas. Uma não interfere na outra, uma não obsta a outra.
7. Segundo, porque a Fundação Cultural Palmares e o INCRA não foram partes na ação reivindicatória que transitou em julgado na Justiça Estadual em 1999. Mesmo que se alegasse que o direito reconhecido pela Constituição Federal (art. 215 da CF/88 e art. 68 do ADCT/88) é anterior ao trânsito em julgado da sentença da ação reivindicatória, ainda assim aquela sentença da Justiça Estadual somente vincularia e produziria efeitos em relação ao INCRA e à Fundação Cultural Palmares se eles tivessem participado da respectiva relação processual, o que não ocorreu. Se não foram partes da ação reivindicatória, não ficam vinculados ao que lá foi decidido, nem estão impedidos de reconhecer a posse da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre a área discutida ou então até mesmo desapropriá-la. O art. 472 do CPC não deixa dúvidas: “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros” (grifou-se). Ora, o INCRA e a Fundação Cultural Palmares não foram citados para a ação reivindicatória, não foram partes na ação reivindicatória, não são alcançados pela coisa julgada que de lá deriva. Então, não estão impedidos de ajuizar a presente ação de manutenção de posse na defesa do patrimônio cultural brasileiro, como lhes impõe o art. 215 da CF/88. Apenas para ilustrar como ambos ficam excluídos da coisa julgada decorrente da sentença da ação reivindicatória, pode-se recorrer à analogia com a sentença proferida pela Justiça do Trabalho em relação ao INSS: um empregado ajuíza uma reclamatória trabalhista contra o empregador, para reconhecer determinado vínculo de emprego. O empregador deixa de contestar a ação e, revel, é condenado, declarando o Juiz do Trabalho que existiu durante aquele período a relação de emprego e o vínculo trabalhista. Pois bem, isso não é imediatamente oponível ao INSS para fins previdenciários. O INSS, que não foi parte naquela demanda trabalhista, não está obrigado a computar aquele tempo de serviço reconhecido pelo Juiz do Trabalho pela singela razão de que não foi parte naquela relação processual. A coisa julgada ali produzida não lhe alcança porque não foi parte no processo. O mesmo acontece em relação aos autores dessa ação quanto à sentença da ação reivindicatória que tramitou na Justiça Estadual: a sentença, mesmo que transitada em julgado, não é oponível contra INCRA e Fundação Cultural Palmares, que não foram partes nem participaram daquela relação processual.
8. Terceiro, porque posse e propriedade não são relações estáticas no tempo, que se consumam num único momento, que sejam exauridas ou cristalizadas no exato instante em que reconhecidas. São relações continuativas, que dependem do tempo, que produzem efeitos no tempo, dia após dia, instante após instante. São influenciadas pela passagem do tempo e pelo que acontece no mundo fático e no mundo jurídico, tanto que o Código Civil prevê situações em que a propriedade e a posse são adquiridas (arts. 1204-1209 e 1238-1274 do CC) ou perdidas (arts. 1223-1224 e 1275-1276 do CC), evidenciando que são relações dinâmicas, que se sucedem e produzem efeitos no tempo. Basta imaginar, por exemplo, que o fato de alguém ter sido vitorioso numa ação de reivindicação contra outrem não lhe garante propriedade absoluta, eterna ou permanente sobre a coisa, que pode vir a ser desapropriada pelo Poder Público nas hipóteses legais, havendo então um fato novo e superveniente que provoca a perda da propriedade (art. 1275-V do CC). A própria tutela possessória prevista na legislação processual é garantida mediante tutelas fungíveis entre si (art. 920 do CPC), evidenciando que o direito reconhece e trata a posse como algo essencialmente dinâmico e mutável, que não fica cristalizado no tempo nem se exaure num único instante. Então, o fato de uma sentença estadual ter reconhecido em 1999 o direito dos então autores-proprietários se imitirem na posse do imóvel de sua propriedade não impede que posteriormente, ainda não cumprida aquela determinação judicial, esses mesmos autores-proprietários sejam impedidos de terem a posse do mesmo imóvel por força de fatos supervenientes e novos, que naquela época ainda não estavam concretizados de forma inequívoca, como acontece no caso dos autos. Como já foi dito anteriormente, a sentença estadual da ação reivindicatória transitou em julgado em 14/09/99 (fls. 283). Mas, como ainda não foi executada, ainda não houve a perda da posse pelos ocupantes do imóvel discutido, tendo havido fatos novos e supervenientes em 30/04/04 (conforme fls. 23, quando a Fundação Cultural Palmares passou certidão de auto-reconhecimento em favor da Comunidade da Família Silva, reconhecendo que a mesma é e ocupa área remanescente de quilombo), em 03/06/05 (conforme fls. 24, quando o INCRA reconheceu a posse da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre o imóvel discutido nessa ação), em 14/06/05 (conforme fls. 645, quando esse reconhecimento pelo INCRA foi publicado no Diário Oficial da União e tornado público), e em 17/06/05 (conforme fls. 656-657, quando o INCRA expediu a Portaria 19/05, aprovando as conclusões do “Relatório Técnico de Identificação, Delimitação e Levantamento Ocupacional e Cartorial, elaborada pela Comissão nomeada, para afinal reconhecer e delimitar as terras dos remanescentes da comunidade de quilombo – Associação Comunitária Kilombo da Família Silva”). Tudo isso ocorreu muito depois do trânsito em julgado da sentença da ação reivindicatória, versando sobre questões que não foram ventiladas nem tinham porque serem ventiladas na ação reivindicatória, que envolvia apenas partes privadas e uma pretensão de natureza civil sobre a área. Mas esses fatos supervenientes alteraram as relações dos réus em relação à área discutida, assegurando o reconhecimento estatal de que o imóvel discutido se enquadra naquilo que prevêem os arts. 215 da CF/88 e 68 do ADCT/88, com as conseqüências jurídicas daí decorrentes, que se encontram na iminência de serem praticadas pelo INCRA nos próximos dias. Portanto, como fatos novos e supervenientes, eles provocam alteração direta na situação fática e indireta na situação jurídica relativamente à posse da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre a área discutida nessa ação possessória e naquela ação reivindicatória da Justiça Estadual.
9. Quarto, porque o art. 471-I do CPC estabelece que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativamente à mesma lide, salvo (…) se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença (…)”. Ora, não é propriamente disso que se trata nos autos, porque não cabe aqui decidir questões já decididas (nada foi decidido a respeito do art. 68 do ADCT/88 ou do art. 215 da CF/88 na sentença da ação reivindicatória), não se trata de revisão da mesma lide (a lide é diversa) e não são as mesmas as partes (o INCRA e a Fundação Cultural Palmares não foram partes na ação reivindicatória). Mesmo assim, é possível a utilização do princípio processual posto no art. 471-I do CPC para permitir que as questões novas e supervenientes ocorridas em relação ao imóvel discutido nessa ação fossem conhecidas e apreciadas pelo Juízo competente, que no caso é o Juízo Federal (art. 109-I da CF/88), sem que isso significasse violação à coisa julgada decorrente da ação reivindicatória. Como dito, posse e propriedade são relações continuativas, que perduram no tempo, que não se esgotam num instante. Mesmo que passada em julgado sentença de mérito em ação reivindicatória, as novas e supervenientes questões surgidas quanto às relações de posse e propriedade poderão ser apreciadas em nova sentença, o que é o caso dos autos.
10. Em conclusão, nessa ação possessória ajuizada pelo INCRA e pela Fundação Cultural Palmares não se discute a propriedade que os réus (autores da ação reivindicatória) tinham anteriormente sobre o imóvel, nem se discute a rescisão da sentença proferida pela Justiça Estadual na ação reivindicatória. Não é disso que trata a presente ação possessória. Nada se desconstitui nessa possessória, nada se ordena ao Juiz de Direito. Sua competência jurisdicional não é invadida por esse Juízo, que se limita a examinar a proteção possessória pedida pela parte autora para a situação atual e contemporânea. A atuação jurisdicional desse Juiz Federal da Vara Ambiental de Porto Alegre se volta tão-somente contra os réus da presente ação (mesmo que sejam eles os mesmos que foram autores-proprietários da ação reivindicatória). É contra eles que a parte autora se volta, é contra eles que eventualmente se volta decisão desse Juízo Federal. Apenas será determinado, se for o caso, que os mesmos se abstenham de turbar ou esbulhar a posse que a parte autora reconheceu em favor da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre o imóvel discutido nessa ação, ordenando aos réus dessa ação possessória que se abstenham de adotar quaisquer providências, judiciais ou extrajudiciais, que possam provocar, limitar ou afetar a posse sobre a área reconhecida pela parte autora em favor da Associação Comunitária Kilombo Família Silva, tudo até ulterior julgamento da presente ação de manutenção de posse ou à ultimação da titulação definitiva de que trata o art. 68 do ADCT/88. Daí a conclusão desse Juízo Federal que esses são os limites e o alcance da presente ação possessória, que não invade competência do Juiz de Direito da ação reivindicatória anteriormente transitada em julgado.
11. Sobre a liminar possessória, a parte autora comprova documentalmente nos autos, de forma inequívoca, a posse legítima e constitucionalmente reconhecida da Associação Comunitária Kilombo Família Silva. Entende esse Juízo que essa posse está comprovada principalmente a partir dos seguintes documentos que constam dos autos: (a) o minucioso, detalhado e bem-lançado laudo antropológico e histórico de reconhecimento da comunidade remanescente de quilombo Família Silva, denominado “Família Silva: Rresistência Negra no bairro Três Figueiras”, elaborado por Ana Paula Comin de Carvalho e Rodrigo de Azevedo Weimer, de fls. 40-235 dos autos, dando conta de como se formou aquela comunidade remanescente de quilombo, bem como a forma pela qual ela se enquadra na previsão constitucional do art. 68 do ADCT/88, ao que agora me reporto; (b) a certidão de auto-reconhecimento em favor da Comunidade da Família Silva, passada pela Fundação Cultural Palmares, em 30/04/04, de fls. 23, onde foi oficialmente reconhecido pelo Poder Público que a área ocupada é remanescente de quilombo e assim goza da proteção constitucional; (c) o termo de reconhecimento de posse feito pelo INCRA em favor da Associação Comunitária Kilombo Família Silva, em 13/06/05, concluindo aquele reconhecimento, conforme fls. 24 (publicado no DOU de 14/06/05, conforme fls. 645); (d) a Portaria 19/05, do INCRA, de 17/06/05, conforme fls. 656-657, quando o INCRA aprovou as conclusões do “Relatório Técnico de Identificação, Delimitação e Levantamento Ocupacional e Cartorial, elaborada pela Comissão nomeada, para afinal reconhecer e delimitar as terras dos remanescentes da comunidade de quilombo – Associação Comunitária Kilombo da Família Silva” e determinou as providências necessárias à ultimação dos procedimentos de titulação definitiva da área, na forma do art. 68 do ADCT/88. Esses são documentos idôneos que constam dos autos, aptos ao reconhecimento pelo Poder Público de que a Associação Comunitária Kilombo Família Silva preenche os requisitos constitucionais do art. 68 do ADCT/88 e, portanto, tem direito àquela proteção constitucionalmente prevista.
12. É óbvio que a regularização da situação não ocorre de forma instantânea, existindo procedimentos burocráticos e administrativos que devem ser adotados, inclusive para prevenir e resguardar eventuais direitos de terceiros, como talvez seja o caso dos réus da presente ação, que talvez tenham direito a alguma espécie de compensação pela titulação definitiva do art. 68 do ADCT/88, se for o caso e como se decidirá na instância administrativa e judicial apropriada. Mas isso não pode impedir que os integrantes da Associação Comunitária Kilombo Família Silva continuem usando e gozando da posse sobre a área discutida, como parece vem sendo feito pelos seus antepassados há mais de 60 anos, nos termos do laudo antropológico e histórico antes referido. Seria absurdo permitir esse Juízo, diante de tão-flagrantes provas e evidências, que os integrantes da Comunidade Quilombola fossem desapossados e retirados da área, para que então fossem feitos os procedimentos administrativos do art. 68 do ADCT/88 e então eles pudessem retornar apenas quando tivessem um titulo definitivo. Se durante mais de 60 anos os remanescentes da comunidade permaneceram e lutaram pela posse da área, ali exercendo suas atividades, dali extraindo sua subsistência, ali existindo, vivendo, morando, trabalhando, sofrendo, lutando, resistindo, sempre à margem da ordem vigente e muitas vezes contra a própria ordem vigente, seria verdadeira heresia jurídica que esse Juízo, a título de cumprimento do art. 68 do ADCT/88, permitisse que os mesmos fossem dali retirados para que então fosse reconhecido o título definitivo à posse. A cidade que cresceu à volta da comunidade quilombola durante 60 anos não pode agora esmagá-los. Se durante 60 anos não conseguiu esmagá-los, não pode agora fazê-lo às vésperas do reconhecimento do seu título definitivo do art. 68 do ADCT/88. A Constituição Federal atribui dever de proteção e preservação do patrimônio cultural ao Poder Público (art. 216-§ 1º da CF/88), incluindo-se no termo “Poder Público” não apenas o INCRA e a Fundação Cultural Palmares, mas também o próprio Poder Judiciário, a quem cabe a prestação de jurisdição de forma a fazer valer a legalidade e também de tornar eficiente e adequada a proteção aos bens e aos interesses discutidos em juízo, inclusive o patrimônio cultural brasileiro.
13. Dessa forma, ocupando a área há mais de 60 anos e estando isso agora devidamente reconhecido pelo Poder Público e em vias de titulação definitiva, a Comunidade Quilombola parece ter inequívoco direito ao que postula, sendo cabível o deferimento da proteção possessória agora postulada, como forma de: (a) garantir o exercício do seu direito constitucional do art. 68 do ADCT/88; (b) acautelar, proteger e preservar o patrimônio cultural brasileiro (art. 216-§ 1º da CF/88); (c) assegurar um resultado útil e eficiente (art. 37-caput da CF/88) aos procedimentos administrativos adotados no âmbito da Fundação Cultural Palmares e do INCRA para titulação definitiva da área (art. 68 do ADCT/88); (d) assegurar proteção àqueles que há tanto tempo resistem e lutam pela própria sobrevivência, mesmo que às margens da ordem vigente e ao custo da própria sobrevivência, sem nunca terem perdido sua dignidade ou deixado de lutarem por ela.
14. DECISÃO. Por isso, defiro a liminar requerida (item B de fls. 21 e art. 928 do CPC) para: (a) reconhecer e assegurar provisoriamente a posse da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre a área discutida na presente ação, nos termos em que reconhecido pela Fundação Cultural Palmares e pelo INCRA; (b) determinar aos réus JOSÉ ANTÔNIO MAZZA LEITE, EMÍLIO ROTHFUCHS NETO e MARÍLIA COELHO DE SOUZA ROTHFUCHS que se abstenham de reivindicar, turbar ou esbulhar a posse que a parte autora reconheceu em favor da Associação Comunitária Kilombo Família Silva sobre o imóvel discutido nessa ação; (c) ordenar a esses réus JOSÉ ANTÔNIO MAZZA LEITE, EMÍLIO ROTHFUCHS NETO e MARÍLIA COELHO DE SOUZA ROTHFUCHS que se abstenham de adotar quaisquer providências, judiciais ou extrajudiciais (inclusive aquelas já em curso, que deverão imediatamente sustar), que possam provocar, limitar ou afetar aquela posse sobre a área reconhecida pela parte autora em favor da Associação Comunitária Kilombo Família Silva, tudo até ulterior julgamento da presente ação de manutenção de posse ou à ultimação da titulação definitiva de que trata o art. 68 do ADCT/88; (d) fixar multa diária de R$ 10.000,00, por dia, para cada réu que descumprir os termos da presente decisão ou deixar de adotar as providências necessárias para efetivação da presente ordem judicial, com fundamento nos arts. 273 e 461 do CPC, e sem prejuízo das sanções cabíveis pelo descumprimento, tudo nos termos da fundamentação.
15. Expeça-se mandado de intimação e citação dos réus (JOSÉ ANTÔNIO MAZZA LEITE, EMÍLIO ROTHFUCHS NETO e MARÍLIA COELHO DE SOUZA ROTHFUCHS) para que fiquem cientes e dêem imediato cumprimento à presente liminar, bem como para que respondam ou contestem no prazo legal, sob pena de revelia.
16. Expeça-se mandado de intimação para o autor INCRA, para que fique ciente da presente decisão.
17. Comunique-se por meio célere (item 3 de fls. 258) o autor FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, para que fique ciente da presente decisão.
18. Expeça-se mandado de intimação (com cópia da petição inicial e do presente despacho) para que a Associação Comunitária Kilombo Família Silva (fls. 29 e 32-39), na condição de terceiro interessado, fique ciente do ajuizamento da ação e do despacho.
19. Oficie-se ao Juiz de Direito do processo 01198180786 (fls. 272-273), remetendo cópia da petição inicial e da presente decisão, tão-somente para lhe dar ciência do ajuizamento da ação para as providências que e se entender cabíveis.
20. Após, feitas as comunicações e decorrido o prazo de resposta dos réus, remetam-se ao MPF para manifestar-se sobre seu interesse em intervir no feito, em cinco dias.
21. Após, certifique-se sobre a resposta dos réus e venham conclusos para determinar: (a) réplica; (b) especificação de provas; (c) examinar o que foi requerido quanto à intervenção do MPF e de terceiros interessados.
Em 11/7/2005.

Cândido Alfredo Silva Leal Júnior,
Juiz Federal da Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual.
[05201044a]

RECEBIMENTO
Nesta data recebi estes autos
Do Juiz Federal da Vara Ambiental, etc.
Em 11/7/05.
Diretora de Secretaria

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