Regularização fundiária das terras dos Kalungas em andamento
Regularização fundiária das terras dos Kalungas está em andamento
No dia em que completa sete anos, 29 de maio, a pequena Maisa caminha despretensiosamente pela comunidade Engenho II. Cercada por uma natureza exuberante, prepara-se para dar um mergulho nas águas límpidas do rio que cruza a aldeia onde nasceu.A tranqüilidade de um domingo ensolarado, em plena Chapada dos Veadeiros, e o rosto inocente da aniversariante contrastam com a sofrida história de seu povo, os Kalungas, os mais antigos quilombolas do Brasil.
Fugindo da escravidão do século XVIII, os antepassados da menina escolheram as serras – hoje ao norte do estado de Goiás – como refúgio para a liberdade e a sobrevivência. Embora já freqüente a escola, Maisa desconhece os fatos tristes que moldaram a vida de seus descendentes. Fatos que, ao longo de quase 300 anos, insistem em permanecer.
A escravidão, há muito tempo, não existe mais. O que ainda hoje atormenta os Kalungas são as conseqüências das perseguições sofridas há pouco mais de cem anos, logo após a assinatura da Lei Áurea, quando fazendeiros começaram a invadir e se apoderar das melhores terras da região. É a chamada época dos “revoltosos”.
Emitido pelo governo federal no ano 2000, o Título de Reconhecimento de Domínio estabelece que, por direito, 253,2 mil hectares formam o maior e mais antigo quilombo do País. Na prática, cerca de 100 mil hectares estão sob posse de fazendeiros. Assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, determinou ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a responsabilidade pelo reconhecimento e titulação das terras quilombolas no Brasil, incluindo a que compõe o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.
Para esse povo, atualmente, nada é mais importante do que a regularização fundiária de sua terra. “Era o sonho da minha mãe e agora é também o meu sonho”, diz Deuselinda Francisco Maia de Souza, presidente da Associação Kalunga de Cavalcante. O sonho de Deuselinda virou compromisso de governo. Em março deste ano, dois técnicos do Incra – o auxiliar de topografia Sandro José de Souza, e o assistente técnico Celso Luiz Mottola – começaram o trabalho de reconhecimento e georreferenciamento (visualização espacial de um mapa a partir de dados coletados com um Sistema de Posicionamento Global, GPS) de cerca de 30 comunidades Kalungas, espalhadas pelos municípios de Monte Alegre, Teresina de Goiás e Cavalcante, com uma população estimada em 4 mil pessoas.
Deuselinda conta que a criação da associação surgiu da necessidade dos Kalungas de se organizarem e lutarem por seus direitos. “Vimos que se estivéssemos unidos e organizados seria mais fácil.” Enfática, afirma ser a regularização fundiária o maior objetivo a ser atingido. “É a principal reivindicação. Todas as ações são bem-vindas – energia, água encanada, casa, estrada, tudo – mas a terra em primeiro lugar”, afirma.
Mesmo com um certo receio, algo compreensível para um povo que até a década de 80 viveu em um quase completo isolamento geográfico e cultural, sem nem sequer constar nos censos demográficos ou em mapas do Brasil, Deuselinda demonstra confiança. “A regularização fundiária parece que, agora, de uns meses pra cá, está mais ou menos encaminhada. A gente acha que está demorando, temos tudo para achar que está devagar, mas mais devagar já esteve. Agora parece que a coisa vai andar”.
Ela sabe que as dificuldades são muitas e extrapolam as questões jurídicas e econômicas que envolvem a desapropriação das terras habitadas pelos fazendeiros. “Tem muito comentário de adversários, pessoas contra, que não são Kalunga”, comenta. De qualquer forma, a fé de em breve ter em mãos a posse legal da própria terra se justifica no trabalho que já está sendo feito pelo Incra. Segundo Mottola, responsável pelo georreferenciamento, indicando a localização precisa das aldeias, casas, estradas, trilhas, rios, cachoeiras e construções históricas, a regularização fundiária está em curso. “Em Monte Alegre, identificamos 15 comunidades e já completamos o trabalho em dez. Mas parece que existem mais quatro ainda desconhecidas”, relata o assistente técnico.
Comunidades mapeadas
Conforme Mottola, as cinco comunidades Kalunga de Teresina de Goiás estão 100% mapeadas, enquanto em Cavalcante foi realizado, até o momento, 30% do trabalho em outras cinco aldeias. “É um trabalho exaustivo, mas gratificante”, afirma, lembrando que para efetuá-lo é preciso mergulhar no interior da serra, ficar dias no mato, muitas vezes em locais onde só é possível chegar a pé ou no lombo de mula, em jornadas que chegam a durar um dia inteiro de viagem.
Nas próximas semanas, o trabalho de georreferenciamento será intensificado com a participação dos técnicos da Agência Goiana de Desenvolvimento Rural e Fundiário. Recentemente, o Incra e a agência assinaram um Termo de Cooperação Técnica que visa a agilizar a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, regularização e titulação das áreas remanescentes das comunidades negras.
A presidente da Associação dos Kalungas de Cavalcante diz que, no geral, os quilombolas apóiam o trabalho do Incra. “A comunidade recebe bem porque é a coisa que eles mais querem. Eles encontram dificuldades quando chegam numa localidade sem guia conhecido. Aí os Kalungas estranham, tem um pouco de rejeição. Mas, assim que explicam o que estão fazendo a situação muda.” Para Deuselinda, a rejeição é histórica, resultado de séculos de fuga e perseguição. “As pessoas chegam falando uma coisa e eles sentem medo que não seja verdade. Dependendo do branco, eles têm medo sim, e tem toda a razão de ter.”
Segundo a previsão do superintendente regional do Incra no Distrito Federal e Entorno, Renato Lordello, a etapa de georreferenciamento e geoprocessamento está em fase final, e em pouco tempo a regularização fundiária será concluída com as desapropriação necessárias. Quando isto acontecer, o sonho de Deuselinda, sua mãe, e de todos os Kalungas terá se tornado realidade.
Preservação Cultural x Desenvolvimento
Promover o desenvolvimento social e econômico dos Kalungas sem afetar sua cultura é um dilema, exposto pela presidente da Associação dos Kalungas de Cavalcante, que preocupa os quilombolas. Para Deuselinda, a questão é emblemática. “Muitos falam que temos que preservar a cultura. Eu concordo. Não é porque consegui construir esta casa que vou esquecer que sou Kalunga, que gosto de folia, que gosto de reza, gosto do benzimento. Não é porque estudei, sou técnica em magistério, sou professora há 17 anos, que vou esquecer. Mas para preservar a cultura a gente não precisa viver na miséria”.
Para ela, é importante as comunidades receberem energia elétrica, água encanada e equipamentos para a roça, mas sem deixar de praticar suas rezas, danças e folias, como a Romaria do Vão de Almas, que acontece em agosto, e a Romaria do Vão do Moleque, em setembro. As festividades unem as diferentes comunidades dos três municípios, épocas em que as tradições são mantidas ao promover uma grande recepção com doces, carne e farofa. “Somos um povo que ficou isolado, que ninguém ligava, ninguém queria nem saber. Com isto, a gente ganhou a nossa preservação. Tenho orgulho de estar preservada. Tenho orgulho de ser Kalunga”, afirma com convicção.
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