BA – Quilombolas expõem seus problemas
Representantes de 200 comunidades conhecem estratégias de ação do governo para melhoria das condições de vida
Letícia Belém
Na tentativa de recuperar uma dívida histórica com descendentes de várias nações de negros trazidos da África para o Brasil, pela primeira vez o governo federal tomou a iniciativa de identificar e dar posse de terra a comunidades remanescentes de quilombos. Buscou ainda ouvir seus problemas e apresentar políticas públicas voltadas para os afrodescendentes no 1º Encontro das Comunidades Quilombolas, que se encerra hoje no Clube Camponar, em Piatã.
Quando se rebelaram e fugiram das senzalas por não aceitar ser escravizados, vários negros formaram comunidades quilombolas isoladas das cidades, onde ainda tentam preservar sua história, cultura, religião e modo de vida. Mas, apesar desta página escrita na história, a pobreza e a falta de perspectivas os perseguem há décadas.
Representantes de 220 comunidades quilombolas da Bahia compareceram, se conheceram, trocaram informações e se reuniram em oficinas para tratar dos seus problemas mais urgentes. No encontro, foi apresentado às comunidades o Programa Brasil Quilombola, com as estratégias de ação que o governo federal pretende fazer para resgatar a dignidade destas comunidades, em parceria com a Secretaria de Combate à Pobreza, do governo do Estado. Ao final do evento, relatórios com as demandas serão encaminhados para uma agenda de prioridade do governo.
Atualmente, existem cerca de cinco milhões de descendentes de escravos espalhados pelo País, divididos em 1.883 comunidades quilombolas, que, por medo e instinto de sobrevivência, acabaram se isolando do convívio com outras pessoas e permaneceram em situação de total exclusão social. Na Bahia, são mais de 500 comunidades identificadas pela Fundação Cultural Palmares, com cerca de 300 mil quilombolas.
Vilas, fazendas, povoados no meio da mata que possuem marcos históricos como ruínas de engenhos, pontos de castigo, cemitérios de escravos, escombros de senzalas são locais onde vivem famílias de quilombolas isoladas, com pouco contato com as cidades.
A maioria das comunidades vive sem energia elétrica, água encanada, saneamento básico, postos de saúde, escolas, acesso a estradas e qualquer benefício da sociedade. Sobrevivem da agricultura e da pesca artesanal e mal conseguem vender o que produzem. Mas nem por isso querem sair da terra de origem por ali existir a forte memória dos seus ancestrais, referências e riqueza cultural.
Segundo o coordenador de articulação e mobilização comunitária da Secretaria de Combate à Pobreza, Luís Antônio Araújo, a primeira ação será resolver o problema principal das comunidades, que é o reconhecimento, a demarcação e a regulamentação das terras onde gerações tradicionais de quilombolas vivem sem um documento que comprove a propriedade. Sem qualquer registro das terras, são constantemente ameaçados de expulsão por fazendeiros e usineiros.
Depois da regularização fundiária feita pelo Incra, serão implementadas as propostas que promovam o autodesenvolvimento das comunidades, como políticas de saúde, saneamento básico, educação, habitação e valorização da cultura afrodescendente, além do resgate das etnias com a proteção dos bens imateriais (religiosidade, mitologia e cultura) e projetos de geração de trabalho e renda. “Este é um pagamento de uma dívida histórica e um resgate do respeito e dos direitos dos remanescentes de escravos. Eles não agüentam mais viver com este sofrimento”, analisou Araújo.
Preço baixo pela produção
Para Raimundo Bujão, da Comissão de Reparação Social da Assembléia Legislativa, a sociedade precisa reduzir a dívida social com a história deste povo. “Como um povo que construiu este país de graça, com suor e sangue, ainda vive desta forma? A estratégia de nos apagar da história não vingou. A Bahia foi o centro de distribuição da escravidão no país e agora tem que dar o exemplo”, enfatizou.
Wilson Pinto de Oliveira, 42 anos, mora no Quilombo do Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa, onde vivem sete comunidades com 600 famílias e cerca de três mil pessoas, entre crianças, adultos e jovens que dormem em casas de taipa. Apesar de o quilombo ter adquirido a posse da terra depois de 17 anos de luta contra os fazendeiros, eles enfrentam os mesmos problemas das outras comunidades, como extrema pobreza, falta de energia elétrica, água tratada, saneamento básico, escolas e postos de saúde.
A comunidade fica a 60 km da cidade e também sobrevive da pesca e da agricultura. Ele reclama que a produção não tem valor. “A gente vive porque não tem jeito, porque falta quase tudo. Tem que se preparar três meses para comprar um sapato para o filho ir para a escola. O que nos ajudaria é a roça, mas a produção não tem nenhum valor e não compensa produzir para vender. Uma saca de feijão que é vendida na cidade pelos atravessadores por R$ 120 nos é comprada pelos comerciantes por R$ 30. O preconceito com os pobres é geral”.
Está prevista, a princípio, a distribuição de cestas básicas e bolsas-família para resolver a situação emergencial, e depois, a demarcação e titulação das terras dos quilombolas. Situações de risco de saúde serão resolvidas com equipes do Programa Saúde da Família e política de habitação, com recursos para construção de casas, postos de saúde e escolas.
Isolamento dificulta acesso
A 110 km de Salvador, Ananias Viana, de 41 anos, nasceu e vive na comunidade Car Onge, na Bacia do Iguape, em Cachoeira. Lá, existem nove comunidades com 311 famílias que se mobilizaram para se auto-reconhecerem como quilombolas. Ananias conta que as crianças têm que andar 5 km para chegar até uma escola primária, 10 km para chegar até uma escola de ensino fundamental e 7 km para chegar até um médico na cidade.
“Não temos saneamento básico, nem estrada e nem energia elétrica. A água encanada de uma nascente de dentro da mata chega a algumas comunidades. Ninguém gosta de viver deste jeito, mas a própria história fez as comunidades ficarem abandonadas. Queremos permanecer onde estiveram nossos bisavós, tataravós, pais e mães e toda a nossa história, desde a época da escravatura, mas de maneira digna. Espero que este encontro seja uma solução para preservarmos nossa história cultural que está dentro das comunidades”, comentou. Ele tem consciência de que não está pedindo um favor ao governo, e sim exigindo um direito que lhes foi negado ao longo dos anos.
Para ele, um dos principais problemas é não conseguir vender o que produz na terra, porque os atravessadores pagam muito pouco pela produção. “Precisamos de autonomia para fugir dos intermediários. Durante muitos anos, recursos foram enviados aos municípios em nome dos quilombolas que nunca chegaram até nós. A gente quer andar com as próprias pernas”, declarou.
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