Livro – Vozes Quilombolas
Uma poética quilombola
“Forjado não mais para guerrear com armas bélicas, o quilombo contemporâneo e urbano cumpre a função de, a partir de referênciais históricos, promover um debate permanente no seio da sociedade (…)”.
Jônatas Conceição da Silva, no seu livro Vozes Quilombolas. Uma poética brasileira faz história e literatura, numa perfeita simbiose de reflexão e paixão. Reflexão, ao buscar estabelecer um novo conhecimento frente às vigências intelectuais. Paixão, ao aliar a sua vivência, suas utopias e sentimentos, à perspectiva de construção de uma nova forma de ver a sociedade brasileira. Projeto de uma vida, de lutas e sofrimento, por muitos hoje incorporado, presente na “faca afiada” e bem elaborada das “vozes” do seu escrever.
Inicia o seu estudo mostrando a importância do quilombo, tendo Palmares como paradigma, na constituição da história e vida dos afro-brasileiros.
O quilombo de Palmares foi objeto de destaque de cronistas coloniais desde os finais do século XVII e, a partir da década de 30 do século passado, mereceu reflexões sistemáticas da historiografia e antropologia brasileiras.
Porém, o que Jônatas Conceição da Silva pretende não é efetivar uma revisão historiográfica do grande momento do povo negro no Brasil, mas sim, demonstrar a sua importância como marco da resistência e rebeldia frente à opressão escravista.
Contido em um passado distante, ele é seletivamente recordado e atualizado, devido ao manancial de fontes da ciência oficial, mas sobremodo pelo sentido comunitário, coletivo, de ruptura e conquista de espaço, bem como pela emergência de lideranças, sobretudo Zumbi dos Palmares, consagrado hoje como herói nacional.
Alçado à condição de símbolo maior de resistência, de luta pela liberdade, o autor demonstra como Palmares foi utilizado em momentos significativos da nossa história contemporânea, pela Frente Negra, pelo Teatro Experimental do Negro e o Quilombismo de Abdias Nascimento, pelo bloco afro Ilê Aiyê e pelo Movimento Negro Unificado.
Começa o segundo capítulo com o belo poema de José Carlos Limeira, que diz “Se Palmares não vive mais/Faremos Palmares de novo”: é a “porta de entrada” para mostrar a história do quilombo contemporâneo, urbano, “o quilombo dos negros de luz”, o bloco afro Ilê Aiyê. Com uma breve retrospectiva da presença do “carnaval negro” na Bahia e das suas conexões com o presente, o autor esboça, pautando-se inclusive na sua vivência, a história do grupo de jovens negros que, em 1974, em plena ditadura militar, criou uma organização cultural para protestar contra a supremacia branca no Carnaval e sociedade baianas. E seria a partir do Ilê Aiyê que a cultura, tendo como eixo central o candomblé – mas não só – se tornaria ideologia e política na construção da identidade social do negro em Salvador.
Instituíam-se práticas e um contradiscurso em relação ao racismo e gritantes desigualdades raciais, onde através da “brincadeira”, da “força do tambor”, do prazer, reivindicava-se um específico padrão estético e de valorização do corpo negro; reagia-se ao machismo, predominante inclusive entre os negros, atribuindo-se papel capital à mulher negra; preconizava-se uma nova história, destacando as lutas do passado e se concedia realce às nossas relações com a “mãe África” e desmistificava-se o “paraíso da democracia racial”. Revelaram-se instrumentistas, cantores e compositores, criando uma nova geração de artistas-militantes, gerando uma nova musicalidade – apropriada em muitos aspectos pela indústria cultural branca – e uma específica narrativa centrada na vivência e história do povo negro.
A partir do Ilê Aiyê surgiram outros grupos, com outras versões da mesma perspectiva política, e a consciência de negritude espraiou-se pelo corpo social, com os indivíduos já não precisando “afastar-se” de sua cor na vida social, criando os seus “territórios”, admitindo a possibilidade do exercício da cidadania como negros. Porém, cedo o Ilê iria perceber a necessidade de intervenção em um outro plano: a educação. Cônscios da perspectiva monocultural em que se pautava a educação brasileira e da situação desigual, em todos os níveis, dos negros no sistema educacional, criaram uma proposta pedagógica alternativa: o Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê. Criado em 1995, tornou-se um projeto de melhoria da qualidade da educação, visando reduzir a evasão e a repetência, com uma proposta pedagógica definida de gerar a auto-estima nos negros, dando-lhes a “consciência de pertencimento a uma sociedade diferenciada” no Brasil.
Ganhou ainda maior substância o projeto, com a elaboração dos Cadernos de Educação, material didático e de apoio aos professores, para encorajá-los a utilizar conteúdos complementares adaptados à realidade multi-étnica do país. E será a partir do terceiro volume da série dos Cadernos de Educação, Zumbi-300 anos, que, segundo o autor, se desenvolverá, através da livre expressão dos alunos, a associação entre a história de Palmares e a história de resistência do Ilê Aiyê.
No terceiro capítulo, esboça-se a principal intenção do autor: demonstrar a existência de uma literatura negra no Brasil, ou seja, a “poética quilombola brasileira”. Utilizando-se de textos literários, em especial das músicas produzidas pelos compositores do Ilê Aiyê, para Jônatas Conceição da Silva, eles representam as “vozes das margens” e apontam para a construção de um discurso de identidade afro-brasileira. Inicia com o samba-enredo da Acadêmicos do Salgueiros – Quilombo dos Palmares – passa por Jorge Ben Jor Zumbi – e chega aos compositores do Ilê, com Sonho dos Palmares, em 1976 e, Negros de Luz, em 1989.
O autor passa, em seguida, às canções do ano 2000, onde o Ilê apresentava-se no Carnaval com o tema “Terra de Quilombo”, externando a sua preocupação com a reforma agrária e a questão da terra, mas sob a ótica do negro. E as letras das canções irão referendar a luta quilombola e suas variadas feições, na luta pela conquista e preservação de um território negro. Conclui o capítulo com uma discussão sobre a literatura negra no Brasil, para a partir daí analisar o livro do gaúcho Oliveira Silveira, Poema sobre Palmares. Com uma breve retrospectiva da história da literatura negra no Brasil, será através de Oswaldo Camargo que teremos uma definição de literatura negra: “Quando o negro pega suas experiências particulares e traz, sobretudo o eu”, a persona negra, com suas vivências, que um branco pode imitar mas não pode ter, o nome que damos a isso é literatura negra” ( p.114).
O Poema sobre Palmares, de feição épica, produzido em 15 anos (1972 a 1987), narra em dez partes a saga dos palmarinos, da chegada de um ex-escravizado até a questão do legado transmitido aos negros contemporaneamente. E, o autor, apesar de todo racismo e repressão diante da proposta de um projeto político plural e democrático no Brasil, conclui o livro com otimismo, com a “felicidade guerreira” que nele se traduz, acreditando que “irmanados temos mais força, possibilitando poder, prazer e alegria de construir um país sem desigualdades raciais e com mananciais para saciar a nossa sede de justiça”.
O livro Vozes Quilombolas ganha ainda maior realce pelas constatações e questionamentos que provoca, assim como pelo alento que confere a futuras pesquisas. O autor é um militante, mas sendo o seu livro resultante de uma dissertação de mestrado na pós-graduação em Letras revela também a sua inserção na academia. Espero que já seja uma promessa da reformulação de currículos e programas visando a construção de um espaço para a literatura negra na Universidade Federal da Bahia. Por outro lado, as relações entre a militância negra e a academia sempre foram tensas em todas as partes do mundo, entretanto, cada local guarda as suas singularidades, estando a merecer, sobretudo na Bahia, específico estudo.
No livro, o autor caracteriza o negro sob uma perspectiva étnica, ou seja, como afro-descendente, o que em muito supera a identificação pela cor da pele. Esta postura, hoje em grande parte incorporada pela militância, ganha continuidade na luta contra a classificação – ainda vigente – do senso comum e dos defensores da democracia racial brasileira do “continuum das cores”, sobremodo na incorporação de pardos e pretos na categoria negro. É possível a combinação de tais pressupostos com um essencialismo biológico – pautado na raça (cor) – estabelecido na prática de grupos (como o Ilê) ou membros da militância? Diante do conservadorismo e racismo ainda imperantes na Bahia, acredito que a resposta é sim, pois a forma de luta contra o racismo, depende, como afirma Stuart Hall, de posição e contexto.
A concepção mítica e romantizada sobre a África – pautada no período pré-colonial nos contatos primeiros com os europeus –, por um lado, tem sido de grande valia para a valorização do nosso passado africano e para a construção da auto-estima do povo negro, mas, por outro, qual a sua contribuição para a compreensão da realidade atual do continente africano? A historiografia oficial no passado transformou os homens e mulheres negras em um ente coletivo, anônimo, o escravizado e, hoje, como uma “desforra da historiografia”, parodiando Bourdieu, verifica-se a reapropriação do coletivo, como forma de resistência, mas com a designação dos protagonistas e demais atores, antes marginalizados ou incógnitos, que compõem o elenco da nova historiografia.
Enfim, como disse Augusto Boal, mais do que nunca aplicável ao povo negro: “Nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis”. Inegável é a contribuição renovadora dos autores negros, entretanto, lamentavelmente são os mesmos marginalizados pela academia e sem espaço no mundo editorial. Por sua objetividade, didatismo e propriedade de abordagem, o livro de Jônatas Conceição da Silva torna-se leitura obrigatória para todos os que vislumbram a possibilidade de um Brasil plural, marcado pela diferença e, quem sabe, mais igual.