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RJ Resposta do antropólogo José M.Arruti à carta de César Maia

CRIME AMBIENTAL E ERRO HISTÓRICO:
Nota sobre a campanha política contra a regularização das terras da comunidade da Ilha da Marambaia e o decreto 4887

A Ilha da Marambaia fica localizada no litoral de Mangaratiba (RJ), em uma área considerada de segurança nacional e controlada por militares. Só se chega a ela por meio de barco da Marinha, com autorização prévia.
Era na Ilha da Marambaia que o “Breves” – senhor do café e do tráfico de escravos no Rio de Janeiro do século XIX – mantinha seus escravos para “engorda” antes de serem vendidos para outras fazendas. Os moradores da ilha contam que, pouco antes de morrer, “Breves” teria deixado toda ilha para os ex-escravos que ainda permaneciam nela, sendo os atuais moradores descendentes diretos destes.
Mas como essa doação foi feita “só de boca”, a família Breves não cumpriu o compromisso assumido pelo antigo proprietário e vendeu as terras da ilha para a União (Companhia Promotora de Indústrias e Melhoramentos). Ainda assim, as famílias negras permaneceram ali em posse pacífica até 1939. Nesse ano, a Escola de Pesca Darcy Vargas instalou-se na ilha, inaugurando um período de grande prosperidade. A partir de 1971, porém, depois de fechada a escola, a ilha passou à administração militar da Marinha e a comunidade começou a viver um período de mudanças drásticas.
Segundo relatos dos moradores, a implantação dos serviços da Marinha na Ilha fez com que eles fossem proibidos de continuar cultivando suas roças de subsistência, de construir casas para os filhos ou mesmo de reformar ou ampliar as já existentes, e perdessem os serviços públicos antes oferecidos, sem nenhum tipo de compensação por tais perdas, além de serem submetidos a uma pressão psicológica constante, como uma forma de expulsão “branca”. A partir de 1998, esse método foi complementado pelas ações judiciais de Reintegração de Posse, que a Marinha move contra os moradores alegando que estes seriam invasores da área. Sem apoio jurídico e, na sua maior parte, não alfabetizados, os condenados foram sendo expulsos.
A Diocese de Itaguaí, por meio da Pastoral Rural, montou um primeiro dossiê sobre a situação daquelas famílias em 1998 e o enviou para várias autoridades. Uma advogada da Fundação Cultural Palmares tentou conhecer a situação pessoalmente, mas foi impedida de ter acesso ao grupo pela Marinha. Rapidamente o assunto voltou ao silêncio e o processo de expulsão dos moradores foi retomado.
Com base em informações técnicas fornecidas por pesquisadores que trabalhavam na Ilha da Marambaia, o Ministério Público Federal – MPF moveu uma Ação Civil Pública contra a Marinha de Guerra e a Fundação Cultural Palmares – FCP, exigindo da primeira a suspensão das ações (físicas e jurídicas) contra os moradores da ilha e da segunda, a realização dos estudos necessários à verificação da aplicabilidade do artigo constitucional 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT à comunidade da Marambaia.
Em decorrência disso, a FCP nos encomendou a realização do laudo antropológico, que foi realizado por uma extensa e qualificada equipe de pesquisadores ligados a diferentes universidades. O laudo (um volume de cerca de 350 folhas, montado em parceria por KOINONIA, pelo Núcleo de Referência Agrária e pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas, ambos da UFF, e com a colaboração do Departamento de História da UFRRJ) foi entregue à Fundação Palmares em dezembro de 2003 e ao Ministério de Desenvolvimento Agrário, INCRA, SEPPIR e MPF (RJ e 6a. Câmara de Brasília) no início de 2004. O relatório produzido levantou claras evidências de que os ilhéus da Marambaia descendem, direta ou indiretamente, de famílias de escravos de duas fazendas da família Breves (e mesmo de fazendas anteriores a estas), tendo estabelecido uma posse plena e pacífica sobre a Ilha logo após a morte do Comendador Breves, em 1889, e do abandono da Ilha por parte de sua família.
Os processos da Marinha, que têm levado à expulsão dos moradores da área, coincidem justamente com o momento de maior popularidade do tema das “comunidades remanescentes de quilombos”, e se acirraram depois das primeiras iniciativas da Diocese de Itaguaí na defesa daquelas famílias, pautada em tal argumentação. De forma coerente, tais processos são cuidadosa e trabalhosamente fragmentados em processos individuais, distribuídos por diferentes varas, como forma de impedir que o caráter coletivo do conflito se manifeste. No entanto, uma leitura em conjunto dos processos aos quais pudemos ter acesso não deixa dúvidas sobre tratar-se de uma ação que incide sobre uma coletividade: o mesmo autor, o mesmo objeto e as mesmas argumentações, tendo por réus pessoas que vivem sob as mesmas condições, fazendo parte de um grupo social estreitamente tecido por relações de parentesco e de memória. Qualquer argumentação jurídica que se sustente em particularidades relativas a um ou outro caso em pauta tem por objetivo, em primeiro lugar, obscurecer a natureza coletiva do conflito instaurado pelas ações práticas e judiciais da Marinha.
Por isso, o artigo Crime ambiental e erro histórico (Jornal O Globo, 25.02. 2005), assinado pelo prefeito César Maia, causa estranheza e grande preocupação, uma vez que constitui uma peça repleta de confusões e omissões. Aproveitamos a oportunidade da publicação desse texto para alertar a população e os movimentos sociais sobre a campanha que tal peça jornalística articula, assim como para oferecer alguns esclarecimentos. A seguir procuraremos comentar cada um dos tópicos que o prefeito do Rio de Janeiro levanta contra a presença dos moradores na Ilha.

Degradação Ambiental
O primeiro argumento do prefeito para a manutenção exclusiva da Marinha na Ilha da Marambaia é o de que a ilha constitui uma importante área de preservação da diversidade biológica e do patrimônio histórico graças à presença das forças armadas, que teriam conseguido um equilíbrio entre treinos militares e preservação ambiental e patrimonial.
Como documenta uma matéria jornalística publicada no mesmo jornal, no dia seguinte à publicação do artigo do prefeito, sob o título “Rajadas e explosões num paraíso preservado” (O Globo, 26.02.2005, p.XX), os treinamentos militares são, na verdade, a maior ameaça ao patrimônio natural da Ilha.
Um efeito importante dos treinamentos militares são as constantes derrubadas de árvores e as queimadas na mata atlântica, para abrir passagens para os tanques de guerra ou em função dos combates simulados. Mas caberia acrescentar que tal ameaça paira não só sobre espécies exóticas, nativas da restinga, mas também sobre o patrimônio histórico e arqueológico, assim como sobre a população residente.
As ruínas das fazendas dos Breves existentes ali, incluindo uma capela do século XIX, que era freqüentada e preservada pelos ilhéus, foram destruídas nesses treinamentos. O mesmo tende a acontecer com as ruínas das senzalas. Uma delas, que a administração militar diz preservar, na realidade foi profundamente modificada, sem qualquer consulta ou autorização do IPHAN, para abrigar um hotel.
Os combates colocam em risco também, ainda que isso pareça menos relevante às autoridades, a vida dos pescadores e a integridade de suas casas. Além de acidentes envolvendo minas terrestres espalhadas pela ilha, há casos de casas atingidas por “balas (de canhão) perdidas” e são numerosos os relatos sobre quintais e roças destruídas pelas topas em treinamento.
Por tudo isso e buscando uma solução negociada, a comunidade definiu sua demanda territorial (por meio do laudo antropológico) reivindicando a posse sobre algo em torno de 40% da Ilha e não os 75% de que fala o prefeito. Sua reivindicação prevê, portanto, a manutenção da Marinha na Ilha, mas restrita às atuais instalações militares e aos trechos já altamente impactados por seus treinamentos. O que lhes importa é a garantia de autonomia sobre as áreas que sempre lhe foram de uso comum e que ainda têm condições ambientais de voltarem a ser. Não são os moradores que degradam e pretendem exclusividade.

Quilombos e auto-atribuição
Outro argumento do prefeito é o de que o decreto presidencial 4887, que desde novembro de 2003 regulamenta a aplicação do artigo 68 das ADCT da Constituição Federal, estaria sustentado em visões equivocadas e distantes da realidade, tanto por atribuir aquelas terras aos ilhéus da Marambaia quanto por privilegiar a auto-atribuição como critério de reconhecimento de indivíduos como remanescentes de quilombos.
Nesse ponto o prefeito confunde debates e manipula a desinformação do público mais amplo sobre o assunto. Ele usa um conceito equivocado de “remanescentes de quilombos”e sobrepõe os debates sobre a Marambaia e sobre o decreto presidencial como se fossem um só.
Os debates travados entre movimento social, parlamentares e acadêmicos desde 1992 chegaram a um consenso, ainda mal conhecido pelo público mais amplo, em torno da ressemantização do termo quilombos, no contexto do artigo constitucional. Se na historiografia o quilombo era a designação atribuída a um grupo de escravos fugidos e se na mitologia criada em torno do tema, isso remete a uma comunidade tipicamente africana, isso não se aplica ao conteúdo do artigo 68. Este artigo lança mão desta figura histórica e ideológica, por meio da expressão “remanescentes de quilombos”, para contemplar aquelas comunidades que, tendo ligaçôes históricas com a população africana escravisada no Brasil, se mantiveram realtivamente distintas dos outros setores da sociedade brasileira por perseverarem uma determinada organização social, sustentata no parentesco, na memória e na posse de um território comum.
Tais comunidades, portanto, não são apenas aquelas formadas por meio da fuga, mas também por meio de outros mecanismos, quase sempre variações da forma de apossamento de uma terra coletiva. Nelas o controle dos recursos básicos se dá através de normas específicas instituídas pelo grupo para além do código legal vigente, e acatadas pelos vários grupos familiares que compõem a unidade social.
É neste sentido – repito, acatado pelo movimento social, pela academia e por instâncias jurídicas como o Ministério Público Federal e a Advogacia Geral da União, além do próprio governo Federal – que a Ilha da Marambaia se enquadra, de forma absolutamente coerente, como está extensamente documentado no laudo antropológico que produzimos sobre o grupo, na caracterização sociológica acerca das chamadas “terras de preto”, que hoje sustenta a interpretação pacífica do conceito de remanescentes de quilombos.

Favelização
Outro argumento levantado pelo prefeito é o de que o reconhecimento do direito dos ilhéus da Marambaia às terras que ocupam há mais de 150 anos daria origem a um sem número de alegações de direitos que abriria espaço para o parcelamento das terras e a transformação da APA em “área residencial precária” e local de economia informal. Como os editoriais de O Globo traduziram, ao reproduzirem como seus tais argumentos, trata-se do alerta contra a “favelização” da ilha.
Neste ponto, além de disseminarem desinformação, tais opiniões revelam um dramático preconceito contra essa população. Está evidente que o medo de favelizar a ilha corresponde a uma decisão direta e indisfarçada de favelizar a sua população, ao expulsá-la das suas terras para qualquer outra “área residencial precária”. Mas o erro fundamental neste ponto, é o de sugerir que a regularização dessas terras daria origem a direitos comerciais sobre elas. Ao contrário, a regularização das terras de remanescentes de quilombos se dá por meio de um título coletivo e indiviso, sobre o qual apenas os atuais moradores e seus descendentes diritos plenos. A regularização como terra quilombola é a maior garantia que tais populações têm de as manterem fora de alcance da especulação imobiliária

Por fim, não parece acidental que o o prefeito tenha feito, como dizíamos, tal confusão entre os debates sobre a Marambaia e sobre o decreto presidencial, sobrepondo-os como se fossem um só. Quando ele aconselha o presidente a não esperar o pronunciamento do STJ sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade que o PFL moveu contra o decreto presidencial, providenciando ele mesmo a anulação do seu decreto, ele fala como homem de partido. Quando confunde esse tema com a questão específica da Marambaia, ele fala como pré-candidato à presidência da República em um movimento de aproximação das Forças Armadas. O patrimônio ambiental não é senão o último argumento, mesmo assim forjado com o custo da falsificação, que o seu discurso, ponto de convergência entre os seus interesses, os interesses da Marinha e do PFL, pode mobilizar contra direitos legítimos e amplamente reconhecidos daquela população.

José Maurício Arruti
Coordenador do Observatório Quilombola

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