MT – Documento relata
Documento relata ofensiva contra excluídos no Mato Grosso
Relatoria nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente da ONU conclui documento sobre os efeitos da expansão da agropecuária extensiva em quilombolas, indígenas e sem-terra no Mato Grosso.
Verena Glass
São Paulo – A Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente da ONU, ligada à Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (DhESC), acaba de concluir – e deve publicar nos próximos dias – um documento pungente sobre a situação de quilombolas, índios xavantes e agricultores sem-terra no estado de Mato Grosso.
Coordenada pelo pesquisador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e relator nacional para o Direito Humano ao Ambiente, Jean-Pierre Leroy, a missão que resultou no documento ocorreu entre 15 e 24 de agosto de 2004, e visitou o quilombo de Mata Cavalo, no município de Nossa Senhora de Livramento, os índios Xavantes de Maraiwatsedé, em Alto Boa Vista e as famílias do Assentamento Liberdade, no município de Canabrava do Norte, além de atingidos pela Usina Hidrelétrica de Manso, no município de Chapada dos Guimarães.
De um modo geral, aponta o relatório, o alto índice de degradação ambiental e de violações dos direitos humanos dos grupos visitados tem uma relação direta com a expansão da agricultura e da pecuária extensivas no Mato Grosso. Segundo o documento, o estado, que, em 2002, registrou o maior aumento do PIB regional (com um crescimento de 17,7% no desempenho do setor agropecuário), foi apontado em 2003 como responsável por 44% dos desmatamentos da floresta amazônica, e recordista em despejos de famílias rurais – mais de 6,5 mil, o equivalente a cerca de 6% da sua população rural.
Segundo Leroy, a situação de conflitos endêmicos, causada pela ofensiva de agropecuaristas sobre territórios de populações tradicionais e áreas públicas destinadas à reforma agrária, motivou o Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD) a solicitar a visita da Relatoria, afim de possibilitar, através do levantamento dos fatos, ações de pressão sobre as instituições governamentais competentes.
“O Relatório que preparamos será enviado não apenas para os Ministérios Público Federal e Estadual, a Funai e os Ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Justiça, mas também para a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Esperamos que este último seja capaz de criar um constrangimento para o Governo Federal, afim de que assuma a responsabilidade pela solução dos problemas”, explica o relator.
Racismo e impunidade
Segundo relatos de populares colhidos pela missão, um dos aspectos comuns à situação de quilombolas, indígenas e sem-terra é o desrespeito deliberado, por parte dos fazendeiros, dos direitos territoriais das comunidades e do ordenamento fundiário definido pelos órgãos públicos. Por outro lado, em muitos casos de expulsão de comunitários e invasão de suas terras, aponta o documento, há não apenas conivência como participação do poder e das polícias locais.
Esta situação foi constatada, por exemplo, durante a visita ao Quilombo Mata Cavalo, área de cerca de 14 mil hectares reconhecida pelo Incra e pela Fundação Palmares e ocupada por descendentes de escravos desde 1883.
Em uma das ações dos fazendeiros, relata Odete Nunes do Amaral, moradora da comunidade do Capim Verde, “quarenta famílias tiveram seus barracos derrubados. Foi entupido o poço de onde tirávamos água. A gente fez o poço com sacrifício e eles entupiram o poço e carregaram a madeira da casa. Aí a gente saiu de lá. Depois era pra tornar voltar. Aí voltei, comprei um rolo de arame, cerquei. Foram lá e cortaram o arame, as mudas de banana que eu tinha plantado o gado comeu tudo, a mandioca, comeu tudo… Aí eu fiquei sem planta nem lar, em parte nenhuma, que o gado destruiu tudo o que eu tinha plantado. É difícil, que a gente faz tudo com sacrifício, não tem dinheiro pra ficar investindo, e chega na hora e tudo é destruído”.
O casal Aparecido e Lúcia Maria de Arruda também relata uma ação idêntica “do [fazendeiro] Carlos Campos (…), junto com a Polícia Federal e ainda junto com a Polícia Civil no carro dele, junto com ele, na porta da minha casa. Até o fogão meu que estava aceso, fazendo comida, a Polícia Federal jogou água e apagou. Nem as panelas que estavam cozinhando comida ele deixou. Foi o nosso despejo”.
Segundo o relatório, a participação ou, no mínimo, conivência das autoridades reforça o caráter racista das ações dos agressores. “Vários boletins de ocorrência por crimes de racismo foram registrados na delegacia de Nossa Senhora do Livramento, segundo os moradores, mas não são investigados porque na delegacia ouvem do Escrivão de Polícia que ‘os fazendeiros são gente boa’”, diz o documento.
Fato consumado
Desrespeito a demarcação da FUNAI das áreas dos índios xavante também levaram a sérios conflitos no mês de agosto de 2004, caso amplamente divulgado pela imprensa mas que, até agora, continua sem solução definitiva.
Expulsos de suas terras por um complexo agropecuário (Agropecuária Suiá-Missu que, com seus cerca de 1,5 milhões de hectares, ficou conhecida como o maior latifúndio da América Latina) na década de 1960, após um difícil processo de negociação os xavantes foram beneficiados por um decreto do Ministério da Justiça, que reconheceu uma área de 168.000 hectares como de ocupação tradicional dos xavante. A portaria foi publicada em outubro de 1993 e homologada por decreto presidencial em 1998.
Com o anúncio que a área da fazenda Suiá-Missu seria devolvida aos índios, afirma o relatório, “políticos e fazendeiros da região estimularam a sua invasão para impedir o retorno dos xavante a Marãiwatsede.(…) Quando, em 2004, os indígenas voltaram a ocupar seu território, a área estava, segundo a CPT Araguaia-Tocantins, tomada por diversos tipos de intrusos”, entre pequenos posseiros e grandes fazendeiros.
“Ainda que a Terra Indígena Marãiwatsede já estivesse demarcada e homologada, decisões do Tribunal Regional Federal da 1ª Região impediam o regresso dos xavante. Em novembro de 2003, os indígenas decidiram reocupá-la. Cerca de 280 famílias ficaram acampadas em condições precárias, na beira da BR 158, durante dez meses. As péssimas condições do acampamento, poeira da estrada que não é pavimentada, água insalubre, alimentação irregular e o frio, causaram no mês de agosto de 2004, a morte de três crianças xavante e a internação de outras 14 com sintomas de pneumonia e desnutrição”, aponta o documento, que ainda denuncia o assassinato de dois adolescentes indígenas na área.
No dia 10 de agosto de 2004, uma decisão da segunda turma do Supremo Tribunal Federal autorizou o retorno dos índios a Marãiwatsede, mesmo com a presença dos posseiros em parte da área. Atualmente ocupando uma pequena parte das suas terras, porém, os xavante continuam recebendo constantes ameaças dos fazendeiros e vivem em situação de extrema miséria.
“O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) chegou a mandar técnicos para fazer um levantamento dos posseiros que ocupam as terras indígenas, mas eles foram expulsos pelo prefeito do município e não voltaram mais”, afirma Leroy. “O sentimento de impunidade e a manipulação dos políticos locais agravaram a situação, já que os invasores, mesmo conhecedores de que a área já era uma Terra Indígena, não acreditavam que a Justiça realmente determinaria, um dia, o retorno dos índios à terra que lhes é de direito”.
Escorados no governo estadual
Um dos fatores que vem dificultando o cumprimento das decisões dos órgãos públicos federais (INCRA, FUNAI e Ministério Público), aponta o relatório, é a conivência da justiça local com a ação dos fazendeiros e a proximidade do próprio governador Blairo Maggi (maior sojicultor do país) com o setor.
“Quando estivemos visitando os trabalhadores rurais sem-terra do Projeto de Assentamento (PA) Liberdade, para onde devem ser encaminhadas cerca de 75 famílias retiradas da terra indígena de Urubu Branco, no município de Confresa, um dos fazendeiros chegou a afirmar que os acampados deveriam procurar outro local para viver, pois enquanto Blairo Maggi for governador ele não sairá dali”, relata Leroy. O PA Liberdade é uma área de 38.000 mil hectares, arrecadada pelo INCRA em 1985 nos Municípios de Canabrava do Norte e Porto Alegre do Norte para assentar 700 famílias de trabalhadores rurais. Simultaneamente, porém, parte da área foi negociada e registrada por fazendeiros nos cartórios da região.
Após um complicado processo de realocação para várias áreas provisórias, as famílias de Urubu Branco decidiram ocupar parte das terras do PA, mas receberam imediatamente uma liminar de despejo, expedida pela justiça estadual da comarca de Porto Alegre do Norte, diz o relatório.
“Quando o INCRA informou ao juiz que as terras em litígio pertencem à União, ele declinou sua competência em favor da esfera federal, mas negou o pedido de suspensão da ordem de despejo das famílias”. A reintegração foi realizado pela Polícia Militar de forma violenta, por ordens do governador Blairo Maggi, relata o documento.
Pressão
Segundo o relator Jean Pierre Leroy, o trabalho da missão da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente incluiu, além de reuniões com os Ministérios Públicos Federal e Estadual, uma série de entrevistas com pesquisadores e especialistas nas diversas áreas visitadas.
“Acredito que este trabalho possa ajudar os órgãos públicos a realizar seu trabalho e solucionar os conflitos. Durante o Fórum Social Mundial em janeiro deste ano, também estivemos reunidos com membros do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, afim de reforçar os mecanismos de pressão sobre as autoridades brasileiras. De resto, espero que este levantamento também sirva como base para as ONGs mato-grossenses que atuam na área ambiental e de direitos humanos”, conclui Leroy.