MA – Entre quilombos e foguetes
Entre quilombos e foguetes
Alcântara, no Maranhão, ficou pequena demais para os descendentes de escravos e o Programa Nacional de Atividades Espaciais
Douglas McMillan
ALCÂNTARA, MA – Raimundo Vieira não é quilombola apenas por herança e sangue, mas também por escolha. Cinco anos atrás, juntou uns poucos pertences numa sacola e deixou o Maranhão em direção ao Rio de Janeiro. Trabalhou por algum tempo – um ano, dois, não tem conta certa – fazendo bicos, a maioria como ajudante de pedreiro. Morava na Vila do João. Ouviu funk, pegou algumas gírias locais, mas não agüentou: voltou para Samucangáua, um dos quilombos vizinhos do Centro de Lançamento de Alcântara, a poucas dezenas de quilômetros da capital maranhense, São Luís.
– Não dá pra ficar vivendo sem controle da vida. Isso não faço. Na Vila do João você obedece a quem manda ou se manda, como eu fiz – explica, sorrindo da frase bem talhada.
O que Raimundo não sabia é que, ao voltar para a terra onde seus antepassados fundaram um quilombo há mais de um século e meio, estaria encontrando outra confusão.
Alcântara parece pequena demais para abrigar o centro de lançamento e as terras de quilombo. De acordo com o Programa Nacional de Atividades Espaciais do governo, até o fim de 2007 deve ser completada mais uma expansão do CLA para receber novas instalações e começar a fazer lançamentos comerciais. E essa expansão pressupõe a retirada de quase 400 famílias de seus territórios originais, que hoje já se encontram dentro da área da base. Mas grande parte do problema não é a simples disputa por terra – é principalmente a luta por permanecer perto do mar.
– O que a gente tem medo é que eles nos mandem para um lugar que a gente não conhece. A gente está acostumado, é nascido e criado aqui, já temos o jeito. Não estamos acostumados no mato, a viver só de roçar, e talvez eles ponham a gente longe da maré – conta Raimundo, comendo ostras cruas enquanto sua canoa aderna na vazante do mangue.
O tio do quilombola, que todos chamam de Zé Preto e tira peixes da rede atravessada num dos canais, completa o coro:
– Se eu for pra longe do mar? Aí eu já não vou fazer nada. Vou passar fome. No dia que não tiver, não como, e no dia que tiver, é uma mãozadinha só.
Os temores dos que estão lotados para a possível remoção – a Agência Espacial Brasileira não dá datas nem certeza de que isso vai acontecer, embora seu presidente, Eduardo Gaudenzi, diga que ninguém sai na marra – não rodam no vazio.
Quando a base foi criada, nos anos 80, mais de 300 famílias foram retiradas sem muita conversa, indenizadas, pagas por benfeitorias e assentadas nas chamadas agrovilas. Nessas vilas encontra-se muito do que falta nos quilombos: poço artesiano, casa de alvenaria, luz, orelhão – e reclamações. Apesar do relativo conforto desses vilarejos, poucos quilombolas gostam de morar aí.
– Lembro eu pequeno, os pescadores no igarapé e a gente em casa, eles gritavam de lá mesmo pra atiçar o fogo, os peixinhos chegavam pulando. E hoje não, não tem mais dessa. A mordomia acabou. O peixe chega já podre, moído que a gente chama. Tem vez que dá pra a gente aproveitar. Tem vez que vai pro porco – explica João da Silva, que vive em Espera, uma agrovila.
Hoje João e os quilombolas desse não-quilombo têm de se programar para passar três dias fora quando vão para o mar, senão a jornada não compensa.
– É isso ou comprar do cara do gelo – conta ele, se referindo aos homens que passam em caminhonetes vendendo peixe aos pescadores.
A indefinição causada pelo impacto da base acabou embaralhando as coisas aqui. Antigamente, receber gente para pescar na sua praia era uma honra. Os hóspedes sempre deixavam algum peixe para a vila ou trocavam por farinha de mandioca feita ali mesmo. Agora o dinheiro faz cada vez mais parte da equação e, com a perspectiva de mais gente sobrevivendo dos mesmos mangues e praias, um senso de posse sobre o que antes era comunal começa a se formar.
No forno de farinha instalado à esquerda da casa de Manoel de Jesus Amorim, os moradores de Itapuáua discutem o futuro enquanto alguém bate no rodo a pasta de mandioca espalhada para secar sobre um grande tacho. A base assusta, embora todos estejam relativamente longe dela e a salvo de qualquer relocação.
– Não é que a gente não queira que ninguém venha aqui para buscar comida. Mas fico preocupado quando olho pra esse mar aí em frente e penso se ele dá conta de dar peixe pra todo mundo. Não sei se dá, não – diz ele.
É essa incerteza que tem caracterizado as coisas em Alcântara. Quilombolas que não moram mais em quilombos. Pescadores comprando peixe. Gente ameaçada de despejo que não sabe quando e se isso acontece. E, primeira e última das dúvidas, para quê, afinal, se manda foguetes lá pro alto de vez em quando.
– Pra trazer peixe aqui pra baixo é que não é – diz Raimundo, rindo com seus companheiros de pesca, sem saber direito do quê.