RJ – Texto de Célia Ravera em resposta a César Maia
Texto de Célia Ravera, Presidente do ITERJ, sobre os erros contidos no artigo do César Maia
COMUNIDADE NEGRA DA ILHA DA MARAMBAIA: ERROS
CONCEITUAIS COMO INSTRUMENTOS DE EXCLUSÃO
Em artigo assinado por César Maia, Prefeito do Rio, sob o título” Crime Ambiental é erro histórico”, publicado pelo Jornal O GLOBO, em sua edição de 25 de fevereiro deste ano, questiona-se o direito ao reconhecimento de domínio à população negra residente na ilha da Marambaia no litoral de Mangaratiba em uma área considerada de segurança nacional e controlada por militares. Como registra o artigo, era neste local que o “Breves” – senhor do café e do tráfico de escravos no Rio de Janeiro do século XIX, mantInha seus escravos para “engorda” antes de serem vendidos para outras fazendas.
O Prefeito questiona o Decreto Federal 4.887 de 20 de novembro de 2003, que define as condições dos territórios para serem caracterizados como áreas quilombolas, contestando, deste modo, o direito sobre o território das comunidades negras que residem em Marambaia há mais de 100 anos.
A primeira objeção a este Decreto refere-se ao auto reconhecimento por parte da comunidade de sua condição de quilombolas, qualificando como ingênuo esta atribuição porque “… quem se disser descendentes de hipotéticos quilombos terá imediatamente direito às terras que teriam pertencido aos seus ancestrais”.
Sem entrar em considerações sobre o direito ao auto reconhecimento, cabe registrar que o Prefeito ignora a existência de um Laudo antropológico sobre a comunidade de Marambaia, de cerca de 350 páginas, elaborado em parceria pelo Núcleo de Referência Agrária, Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas, ambos da UFF e a ONG Koinonia, com a colaboração do departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Segundo este laudo, os atuais moradores contam que, pouco antes de morrer, o “Breves” teria deixado toda a ilha para os ex-escravos que ainda permaneciam nela. Não existem documentos que comprovem esta doação, mais esta atitude do “Breves” encontra correspondência com uma prática documentada historicamente em todo o território fluminense do século XIX, em que os fazendeiros doavam terras a ex-escravos, pouco antes e depois da abolição da escravatura. Assim fez o irmão do Comendador, que sacramentou em seu inventário a doação das fazendas das famílias aos ancestrais dos atuais moradores da comunidade de Bracuhy, em Angra dos Reis, também em processo de reconhecimento como remanescentes de quilombos, e Santana em Quatis.
A pesquisa histórico-documental efetuada permite caracterizar a comunidade pela forma de apropriação coletiva da terra, pela homogeneidade de traços culturais e ideológicos, consolidados historicamente pela existência de dois blocos de parentesco, a estruturação sócio-política dos qrupos, que respondiam a um chefe
por núcleo que a sua vez, reunidos em uma espécie de conselho, integrado pelos representantes dos grupos, deviam responder a autoridade de alguns comissários, que representavam os moradores das ilhas frente às autoridades do continente. O relatório antropológico também aponta evidências sobre como os ilhéus de Marambaia descendem, direta ou indiretamente, de famílias de escravos de duas
fazendas da família Breves (e mesmo de fazendas anteriores a estas), tendo estabelecido uma posse plena e pacífica sobre a Ilha logo após a morte do Comendador Breves, em 1889, e do abandono da Ilha por parte de sua família.
Desta forma, a comunidade da ilha de Marambaia se enquadra na caracterização sociológica apresentada por Almeida (1989),* “terras de preto”: regime próprio de uso do território, autonomia econômica pela pesca artesanal, normas específicas instituídas e acatadas de maneira consensual pelos grupos familiares que compõem uma unidade social.
Para o espírito da legislação sobre quilombos também à “terra de pretos” é outorgado o direito à legitimação do território ocupado. Para o Senhor Prefeito, entretanto, a comunidade da Marambaia não teria direito ao reconhecimento da
legitimidade da ocupação do território que ocupa, porque a “arriscada proximidade impediriam que as fugas produzissem quilombos”.
Esta afirmação envolve outro notório equívoco, já que desconhece o direito de reconhecimento das comunidades que consolidaram durante várias gerações o “…esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de
desfazimento”, como observa o saudoso Darcy Ribeiro.
No triste período da política escravista os africanos foram impedidos de agruparem-se segundo suas etnias e grupos lingüísticos de origem, e dispersos por plantações, por engenhos e por minas, as famílias perderam a possibilidade
de comunicar-se entre si. A forma solidária de vida social e produtiva protagonizada por estas comunidades negras, como os ocupantes da Ilha da
Marambaia, participa historicamente do chamado de liberdade proclamado pelos quilombos: é uma luta de preservação cultural e dignificação do homem que ganha a grandeza de rebeldia legítima.
È preciso, também, registrar que a área que a comunidade reivindica resulta em uma proposta que contempla a permanência da Marinha na Ilha, havendo selecionado – e assim consta no Laudo Antropológico – o território vital à sua sobrevivência e segurança.
Voltando ao artigo do Prefeito César Maia: o crime ambiental a que se refere o título da matéria é premonição de que a legalização das terras quilombolas provocará o crescimento da ocupação desordenada com a conseqüente agressão
ao meio ambiente, hoje protegido pela presença das Forças Armadas.
É fato que, como diz o Prefeito estamos considerando uma Área de Proteção Ambiental (APA) com complexo de praias, ilhas e montes de inusitada beleza, aos que se chega só por barco. O poder do Estado para coibir atividades que a lei condena e a situação geográfica do local – acesso exclusivo por via marítima – permite afirmar que é possível manter a preservação ambiental mediante termos de ajuste de condutas e normas específicas para regulamentar o acesso a área, sem comprometer a livre circulação dos moradores. Lembramos, neste sentido, a Ilha de Fernando de Noronha.
Estas reflexões as faço por julgá-las pertinentes ao propósito do Instituto Estadual
de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro – ITERJ que incorpora em seu programa o reconhecimento de domínio das áreas tradicionalmente ocupadas pelos afro-descendentes como intervenção estratégica na preservação da identidade sócio-cultural dessas comunidades.
CÉLIA RAVERA
PRESIDENTE DO INSTITUTO ESTADUAL DE TERRAS E
CARTOGRAFIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – ITERJ