BA – Resistência nagô
Entidades negras transformaram Luiza Mahim em símbolo de contestação
Quando entrou num navio no porto de Salvador e desembarcou na sala de audiências do Palácio do Catete para exigir de Getúlio Vargas a liberdade de culto para o candomblé, Eugênia Ana dos Santos, filha de africanos da nação grunci, a ialorixá Mãe Aninha, do terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, revivia os passos de Luiza Mahim, a africana que fugiu da Bahia para promover revoluções no Rio de Janeiro. As duas mulheres, por sua vez, traziam escritas na carne a herança de Zeferina, a líder do Quilombo do Urubu que, mesmo capturada e exibida amarrada pelas ruas da cidade, não abaixou a cabeça. Ela havia nascido rainha e, apesar da sujeição, nem todas as voltas ao redor da árvore do esquecimento a fariam perder o sentido de quem era. A árvore do esquecimento, explica Vilma Reis, ficava no porto de Goré. Antes de embarcar no navio negreiro, homens e mulheres escravizados eram obrigados a dar voltas em redor desse símbolo para que dali em diante apagassem da memória a sua verdadeira identidade e assim se sujeitassem mais pacificamente à vida servil. Nem precisa dizer que a intenção dos traficantes de escravos malogrou desde o início. Além dos levantes promovidos nos navios, das rebeliões nos engenhos e da resistência organizada nos quilombos, não foram poucas as africanas que abortaram para não parir um escravizado.
A revolta no Quilombo do Uburu, situado no bairro do Cabula, aconteceu em 1826, pouco menos de dez anos antes do levante dos malês. Luiza Mahim e outras mulheres de seu tempo conheciam a história da altivez com que Zeferina enfrentou a polícia. Esses dois movimentos não foram os únicos a sacudir o início do século XIX. Entre maio de 1807, data do primeiro levante negro do período, até a fatídica madrugada de 25 de janeiro de 1835, quando, no mínimo, 400 africanos armados de espadas e outras armas brancas enfrentaram a repressão imperial nas ruas de Salvador, foram pelo menos dez tentativas de rebelião. A resistência, porém, teve início ainda no século XVI, quando o primeiro africano escravizado pisou no Brasil.
Guardados na memória de Luiza e das guerreiras que viriam depois dela, além do orgulho de Zeferina, ficaram os feitos das quilombolas Dandara, Akotirene e Akualtune, as mulheres fortes de Palmares. Impressas na carne, marcadas no ventre, traziam ainda a liderança da rainha angolana Nzinga, que durante mais de 30 anos combateu as investidas do colonizador português. A linhagem que dá origem a Luiza Mahim tem uma força ancestral. A sua herança ainda vive em cada uma das mulheres de Salvador, sejam personagens ilustres como Mãe Aninha e Mãe Hilda, a lider espiritual do Ilê Ayê, ou as anônimas guerreiras cantadas pelo Malê Debalê. Não é à toa, alerta Vilma Reis, que 41% dos lares da Salvador contemporânea são chefiados por mulheres, mesmo quando elas representam 32% do contingente de desempregados da cidade.
Orgulho histórico
A avó de Vilma Reis, dona Mariô, também era Luiza Mahim. Aos 67 anos, ela entrou na escola, alfabetizou-se e depois ensinou aos netos , conta a coordenadora do Ceafro. De madrugada, continua Vilma, a avó acordava para mexer farinha. Era desse trabalho que vinha o dinheiro para comprar os cadernos e a farda dos netos. A mãe de Miguel Arcanjo, um dos fundadores do Malê Debalê, e a de Josélio de Araújo, o presidente do bloco afro fundado em Itapuã em 1979, lavavam de ganho. Elas também incorporavam Luiza Mahim, cada uma à sua maneira.
Miguel Arcanjo valoriza a figura da líder negra em cada uma das mulheres pobres que passam e cozinham para sustentar os filhos e em cada uma daquelas que, contrariando as normas impostas pelo racismo, entram na política, na universidade, no campo das ciências sociais para travar uma luta que, embora sem armas, não é menos árdua do que aquela enfrentada no tempo de Luiza Mahim: a busca por reparação.
É por isso também que o Ilê Ayê, em todo Carnaval, enfatiza um dos seus diretores, Jônatas Conceição, elege figuras femininas de destaque para receberem homenagens. Entre as mulheres que já foram lembradas pelo bloco, a cientista Lélia Gonzalez, um dos expoentes do feminismo negro no Brasil. Tanto Miguel Arcanjo e Josélio de Araújo, quanto Jônatas Conceição, fazem coro com Vilma Reis para a necessidade de se buscar a valorização de uma figura feminina entre os heróis afro-brasileiros.
Com a lei do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que obriga a inclusão da história e da cultura africana no currículo do ensino fundamental, os quatro representantes de entidades negras baianas acreditam que o caminho para inserir os afro-descendentes no seu lugar de fato e direito na história do país, aberto há 30 anos pelo movimento negro, começa finalmente a ser traçado. Todo povo precisa de seus heróis e de suas referências. Difundir a riqueza da história negra fará com que as crianças negras se amem, respeitem e digam: eu sou importante não apenas porque negro é lindo, mas porque tenho descendência , afirma Miguel Arcanjo. Jonatas Conceição acrescenta que a iniciativa de tirar a herança africana da senzala e levá-la para a sala de aula irá reverter a História do Brasil, mudando o ensino eurocêntrico e priorizando quem trabalhou, lutou e ainda luta para que esse seja, de fato, um país democrático .
Mulheres no poder
Edson Carneiro, mostrando Salvador à antropóloga americana Ruth Landes, autora do emblemático Cidade das mulheres, dizia que a capital baiana só funcionava porque assim elas queriam. Mais de 50 anos depois da visita de Landes, Vilma Reis acrescenta que os portugueses, oriundos de uma sociedade em que as mulheres não valiam nada, jamais imaginaram que justamente elas, as desvalorizadas, ainda por cima negras, criariam estratégias próprias de reeditar o poder que possuíam na África. Vale lembrar que a tradição no continente africano é oposta à visão européia, herdada do cristianismo, que define as mulheres como seres inferiores. Lá, no berço onde nasceu a espécie humana, elas eram respeitadas e até cultuadas como deusas. Cheik Anta Diok, filósofo do Senegal, analisa o espanto que os homens, dez mil anos atrás, tiveram diante daquelas estranhas criaturas que sangravam mas não morriam .
Jogadas na diáspora, coube a elas, defende a coordenadora do Ceafro, o papel de recriar uma sociedade que, mesmo clandestinamente, preservasse a herança dos antepassados. O erro dos portugueses, para o bem da nossa história, foi ter diminuído a quantidade de voltas que as africanas deveriam dar em torno da árvore do esquecimento. Enquando os homens davam dez giros, elas percorriam o mesmo caminho apenas seis vezes. Vivessem hoje, os traficantes responsáveis pelo castigo psicológico veriam que já ficou cientificamente comprovado pela sabedoria popular que a memória das mulheres é bem mais longa do que se imagina.
Princesas e rainhas eram traficadas como escravas para os engenhos do recôncavo baiano e para as ruas de Salvador. Os súditos, porém, uniam-se em sociedades protetoras, juntavam pecúlio em caixinhas trancadas a sete chaves e pagavam por sua liberdade. Princesas e rainhas, como Ianassô Oká, atravessaram o oceano para organizar a resistência das mulheres negras à escravidão e fundar terreiros de candomblé como a Casa Branca, considerado o mais antigo do Brasil. De todos os países da América, adverte Vilma Reis, onde a antiga religião africana penetrou, seja Jamaica (obia), Haiti (vodu) e Cuba (santeria), foi no Brasil onde a recriação do reino das antigas soberanas africanas obteve mais sucesso, através do poder centralizador das ialorixás.
Luiza Mahim é parte desse legado. Há quem defenda, como o pesquisador Antonio Moraes Ribeiro, que a líder nagô seria uma das mulheres por trás da criação da Irmandade da Boa Morte, originada na antiga Igreja da Barroquinha e depois transferida para a cidade de Cachoeira por causa da perseguição ao candomblé. Na defesa de sua teoria, o estudioso aponta a data levantada por Odorico Tavares como a da possível criação da irmandade, 1820, por africanas de várias etnias, principalmente alforriadas jeje e ketu.