Desigualdade e acesso a Recursos Federais – público e notório para poucos

Rafael Soares de Oliveira e Luciano Carvalho

No Brasil, mais de 90% dos recursos públicos disponíveis para Organizações da Sociedade Civil, em nível federal só podem ser acessados através do Sistema de Convênios (SICONV). Este texto aborda a questão de quanto o sistema é complexo e acessível a poucos, transformando uma medida aparentemente democrática em uma barreira socioeducacional, que se deve às suas tantas exigências técnicas, burocráticas e de funcionamento tecnológico.

Ainda sobre os convênios, nas conclusões se acrescentará uma reflexão sobre a profunda fragilidade jurídica de quem se convenia com o Estado para desenvolver projetos.

Um portal para qualquer um (?)
O Portal dos convênios é o local de acesso ao SICONV, criado em 2008, mas implementado na prática em 2009, quando alguns Ministérios e Secretarias de Estado começaram a utilizá-lo para executar os projetos aprovados.

O sistema entrou em ação ainda muito frágil com várias funções desabilitadas, mas já foi o suficiente para que a maioria das entidades não conseguisse operá-lo de maneira adequada. Sem a capacitação necessária os problemas se avolumaram e em alguns casos muitas organizações tiveram e permanecem com problemas de prestação de contas, o que inviabiliza a assinatura de novos convênios ou qualquer contrato público.

A falta de capacitação foi de mesma intensidade com os gestores, Ministérios e Secretarias. São poucos os técnicos que dominam minimamente o sistema, o que gera ainda mais dificuldades para as entidades, que não encontram interlocutores na resolução dos problemas que o sistema tem causado.

Outra central de serviços, a SERPRO (Serviço de Processamento de Dados), para apoio ao SICONV só responde a demandas de “erro do sistema”, ou indica a leitura do seu manual.

Por fim, o Ministério do Planejamento – criador do SICONV – não tem profissionais suficientes para capacitar os técnicos dos demais Ministérios e Secretarias, muito menos os dos estados, municípios e entidades sem fins lucrativos.

Tentando oferecer um panorama sobre o processo de utilização desse sistema, a seguir ele é descrito brevemente.

O que é o SICONV
O SICONV é o sistema de convênios criado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, para que Concedente (Governo Federal) e convenente (estado, município e entidades sem fins lucrativos) realizem a apresentação de propostas de projetos para chamadas, façam sua formalização, os executem e prestem contas dos convênios.

A quem se destina
O sistema é destinado a entidades da administração pública estadual, distrital e ou municipal, direta ou indireta e as Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos, forma jurídica de quase todas as Organizações da Sociedade Civil.

Nota-se desde já que há uma discrepância nas estruturas dos destinatários, pois o sistema é o mesmo para a administração Pública, onde em tese existe uma grande estrutura (física e de recursos humanos), e para as Organizações da Sociedade Civil que, em sua imensa maioria, trabalham com um contingente reduzido de recursos humanos e financeiros.

Como se credenciar e se cadastrar junto ao SICONV
Para que uma entidade esteja habilitada a apresentação de projetos aos órgãos gestores do Governo federal, são necessários dois passos iniciais: credenciamento e cadastramento.

Para se credenciar a entidade deve primeiro acessar o site: www.convenios.gov.br. Na página, o usuário deverá clicar no banner “Acessar o SICONV”. Para o credenciamento será necessário acessar o link “incluir proponente”. Neste deve-se informar os dados do Representante da Entidade, isto é, seus próprios dados e de seu responsável legal.
Após a inclusão dos dados da pessoa jurídica, da pessoa física responsável e da representante legal, deve ser identificada a Natureza Jurídica da entidade proponente.

A natureza jurídica selecionada determina o tipo de formulário a ser preenchido. O SICONV disponibiliza uma série de manuais que podem auxiliar no preenchimento de cada etapa do processo, um deles é o Manual “Credenciamento de Proponentes”, atualizado em novembro de 2013.

Assim que todo o credenciamento estiver realizado, o sistema inclui uma informação de “Cadastramento Pendente”. A partir de então a entidade proponente tem de procurar uma Unidade Castradora para onde deverá encaminhar toda a documentação necessária.

Para comprovar as informações fornecidas no credenciamento, as entidades devem apresentar para a Unidade Cadastradora o Estatuto; Ata de eleição da atual diretoria; Certificado Nacional de Pessoa Jurídica; certidões negativas do Instituto Nacional de Seguridade Social; Fundo de Garantia sobre Tempo de Serviço; Tributos federais, estaduais e municipais; declarações que comprovem a existência da instituição por ao menos três anos, fornecidas por autoridades locais e uma série de outras declarações de adimplência, como, por exemplo, a de que a instituição não tem vínculo com o poder público, entre outras.

Somente a partir desse momento a entidade estará apta a enviar propostas às chamadas de projetos em programas abertos pelo Governo Federal.

Sobre as Unidades Cadastradoras para o SICONV
Olhando no sistema a quantidade de unidades cadastradoras disponíveis é possível pensar que será uma tarefa fácil, mas não é bem assim. Das unidades “disponíveis” a maioria já não executa mais os cadastramentos e as que restam tem algumas regras particulares, criadas totalmente fora de qualquer manual, como, por exemplo, só atenderem em um determinado dia da semana, ou ainda, trabalhar com prazos internos de atualização de certidões que não deveriam existir.

Sobre o envio de propostas
Geralmente é nessa parte do uso do sistema que os problemas para as Organizações aumentam.

As entidades tiveram que aprender a força a lidar com o SICONV. Não tiveram nenhum tipo de incentivo para isso e geralmente não conseguem cumprir as etapas necessárias ao envio de uma proposta para análise do gestor dentro dos prazos estipulados nas chamadas públicas.

Os problemas vão desde a falta de algum documento formal até a dificuldade na operacionalização do sistema.

Portanto, as organizações mais frágeis do ponto de vista institucional já estão impedidas de participar do processo desde o credenciamento. Aqui as entidades com uma estrutura pequena dificilmente terão êxito.

Para enviar uma proposta para análise já é requerido um conhecimento além do básico, então se faz necessário investimento em pessoal qualificado e quase nunca isso é possível para pequenas organizações.

A proposta deve ser elaborada no formato exigido no SICONV, formato esse que pouca gente domina. Além disso, a forma de inserção do projeto no sistema não é simples e não existe um tutorial que facilite o uso da ferramenta, de modo que muitos não conseguem superar essas dificuldades.

Quando toda essa parte técnica é vencida, a proposta finalmente segue para análise. Resta torcer para ser selecionada.

Elaboração e assinatura do convênio
Desde o momento em que sua proposta é aprovada até a efetiva liberação do recurso se faz necessária uma verdadeira força tarefa para que o convênio seja assinado.

Em função do ano fiscal, os prazos são curtos e a burocracia ainda é muita. Após as alterações e modificações solicitadas pelo gestor, a proposta somente pode ser conveniada após as assinaturas e a publicação no Diário Oficial. Entretanto, a execução do convênio só é possível quando o usuário sabe como manejar a “aba Execução”.

Execução do projeto
A aba Execução é onde se realiza todo o processo de compra de bens e serviços. Ali são feitas as tomadas de preços, realizados contratos e pagamentos.

Por exemplo, para a aquisição de bens e serviços as entidades devem operar o sistema online (banda larga e de boa velocidade) e saber preencher e inserir o termo de referência que indica o que será adquirido. Após a inserção outro banco de dados é acionado: o do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI), que distribui a informação a fim de que qualquer fornecedor habilitado possa enviar uma proposta. Cabe à Organização da Sociedade Civil homologar o vencedor a partir dos critérios previamente determinados nos termos de referência e só então elaborar o contrato.

Depois do serviço efetivamente fornecido é realizado pagamento através da OBTV (Ordem Bancária de Transferência Voluntária). Hoje todas as operações financeiras são feitas eletronicamente através da OBTV, que é quase um sistema próprio dentro do SICONV. Isso faz com que se tenha a necessidade de capacitação em mais uma ferramenta complexa do sistema. A Organização Conveniada não tem autonomia para a efetivação de qualquer despesa, a não ser por esse sistema OBTV, que tem seu regime de autorizações e pagamentos feitos diretamente do SIAFI para o Banco em que a Organização foi obrigada a abrir uma conta bancária (do Brasil ou Caixa Econômica Federal), a qual só gerencia no monitoramento de aplicações financeiras (também obrigatórias, sob pena de pagamento de juros eventuais sobre aplicações não realizadas).

A OBTV foi implantada em 2013, muitos gerentes das agências bancárias do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal até hoje não foram capacitados a operarem uma conta bancária movimentada pela OBTV.

Pra além do controle das despesas e a forma de contratação é também na aba de execução que vários relatórios das atividades são elaborados. Alguns gestores se valem de outra aba chamada “Acompanhamento e Fiscalização” para solicitarem relatórios periódicos do andamento das atividades do convênio. Contudo, os relatórios de execução não deixam de ser obrigatórios.

Prestação de Contas
Mais uma aba essencial. Ali devem ser feitos os relatórios financeiros sobre o cumprimento do objeto, realização de objetivos, apresentação de saldos e inclusão de todo e qualquer tipo de anexo comprobatório financeiro, com extratos bancários e etc. No entanto, só os mais experientes sabem disso, pois não há outro lugar para acrescentar esse tipo de anexo comprobatório das finanças. Se as informações não forem anexadas, o relatório cairá em exigência por não cumprimento, após o envio para a análise do Gestor.

Filtro da desigualdade
Pelo que se expôs até aqui é possível comprovar o quanto o SICONV é um filtro para os mais aptos, mais estruturados institucionalmente e com mais recursos de pessoal.

É impossível operar o Sistema sem um bom computador, uma impressora eficaz com serviço de scanner e uma conexão a Internet com banda larga estável.

Não se pode gerenciar o SICONV sem técnicos treinados especificamente para esse fim, com nível mínimo médio de educação, com manejo total em ferramentas básicas de computação, com capacidade de gerenciamento de processos de licitação e tomada de preços e alguns requisitos mais. A partir da nossa experiência, pessoas com a educação necessária (Ensino Médio) e manejo de computação teriam que passar por um curso intensivo de pelo menos 640 horas.

Somente essas exigências excluem do universo de aptos qualquer comunidade ou grupo de pequeno porte nas áreas rurais ou de periferia das cidades.

Agreguem-se a esses impedimentos a necessidade de comprovação continuada de documentos de adimplência institucional para os Ministérios e Secretarias, a capacidade de lidar diretamente com técnicos dos projetos de governo e a necessidade de fazer ajustes a todo o tempo em um sistema que trava e para de funcionar periodicamente para alguns serviços.

O SICONV e o acesso aos recursos públicos que administra é um processo transparente, mas totalmente elitizado, e portanto exigente de recursos disponíveis nas áreas meio das instituições em termos técnicos e administrativos que poucos têm condições de contemplar.

Convênio um instrumento desigual
Por último e não menos importante está a discussão sobre as fragilidades do regime de contratação de serviços pelo Governo Federal sob o regime de Convênios.

Caso uma organização consiga ultrapassar as barreiras e chegar a um contrato de Convênio ele será um instrumento totalmente desigual, com a balança da justiça totalmente pendente para o lado do Estado.

Basta salientar que a legislação vigente reserva todas as garantias aos Entes do Estado, que pode romper um contrato a qualquer momento alegando “conveniência e oportunidade” (artigo 12 do Decreto 6.170/2007) sem quaisquer outras justificativas técnicas.

Torna-se mais do que urgente para a democracia no acesso a recursos e as boas práticas de igualdade e transparência pública que uma reforma legal se estabeleça. Essa é uma das causas centrais da Plataforma do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que está em processo de discussão parlamentar e que necessitará de apoio e mobilização pública, ainda que pareça um tema árido – por ser urgente principalmente para aqueles e aquelas mais vulneráveis da nossa sociedade.

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