Por Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese)
A décima edição do Fórum Social Pan-Amazônico em 2022 aconteceu em Belém, entre os dias 28 e 31 de julho. O evento reuniu cerca de 5 mil pessoas e promoveu o diálogo entre representações de diversos movimentos e organizações sociais da Pan-Amazônia do Brasil, Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, além de outros países da Europa e Ásia, com lideranças dos povos indígenas, comunidades tradicionais, movimentos sociais, ambientalistas, professores/as, cientistas, sociedade civil e autoridades para debater e apresentar políticas em defesa da Amazônia.
O Tapiri
Organizações baseadas na Fé – Cese, Feact, PAD, Conic, Rede Igrejas e Mineração, Repam, Rede Amazonizar, Comin, Cimi, Caic, CPT, Comitê Dorothy, Igreja Evangélica de Confissão Luterana /Belém, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil/Belém, Cenarab, Comitê Inter-religioso do Estado do Pará e KOINONIA – construíram coletivamente o Tapiri Ecumênico e Inter-religioso.
Tapiri é uma palavra indígena, que significa “Palhoça onde se abrigam caminheiros/as”. Durante os dias 29 e 30, o Tapiri foi, além de um espaço de diálogo, articulação e acolhimento, uma trincheira de luta e resistência contra a intolerância e o racismo inter-religioso e em defesa das lutas da Amazônia. A intolerância e o racismo religioso têm crescido na Amazônia e feito várias vítimas – pessoas que sofrem violência por professarem sua fé. A troca de saberes entre representantes de diversos povos, organizações e coletivos presentes nas mesas do Tapiri promoveu um aprofundamento no tema e boas perspectivas de trabalho futuro em prol do combate aos fundamentalismos.
O espaço físico do Tapiri também foi pensado da mesma forma: um espaço de acolhimento de tod@s. As cenógrafas paraenses Glauce Rocha e Roseane La-Roque propuseram a composição do espaço bem amazônico, com elementos ribeirinhos e indígenas, utilizando como matéria prima o buriti, uma espécie de palmeira que só existe na região amazônica.
Bianca Daébs, uma das grandes articuladoras do Tapiri pela Cese, descreve o processo de construção coletiva da tenda ecumênica e inter-religiosa e faz um balanço das atividades realizadas: “Nosso Tapiri só foi possível porque nós trabalhamos junt@s com o mesmo objetivo.
Tanto o processo quanto a realização das atividades foram um testemunho concreto de que é possível conviver com nossas diferenças, sem o ódio que reproduz a violência. Quando existe respeito e compreensão nossas singularidades alargam a tenda, transbordam acolhimentos e nos enchem de esperança para seguirmos em nossas lutas diárias por paz e justiça. Certamente já não somos como éramos, a presença do Tapiri já entrou para a história do Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso no Brasil. Até que nos encontremos outra vez que o nosso Sagrado siga nos inspirando em Fé, Amor e Coragem!”, relata Bianca, que também é reverenda da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
Programação
A programação do Tapiri envolveu importantes diálogos sobre intolerância religiosa e como ela tem afetado os povos indígenas, quilombolas e, em especial, as mulheres na Amazônia. Diversas apresentações de grupos e artistas amazônicos aconteceram no Tapiri, com muita mística e espiritualidade envolvidas. O Tapiri esteve lotado durante os dois dias de atividades, com um público interessado e participativo.
Segundo Sônia Mota, Diretora Executiva da Cese, foram 10 meses de preparação, de muitas reuniões e articulações, tempo necessário para que o Tapiri fosse amadurecido, gestado e aparecesse pleno no X Fospa: “Nesse Tapiri, espaço de diálogo das diversidades, tecemos esperança, fizemos memória e regamos a resistência. Foi um tempo de aprendizados, de conhecimentos, de estreitamento de laços e agora já sabemos que ‘se caminhar é preciso, caminharemos unid@s em esperança solidária’”.
O Tapiri Ecumênico Inter-religioso iniciou suas atividades com cantos indígenas e a apresentação das Suraras do Tapajós.
Mesa 1 – Como os Fundamentalismos e Racismos Religiosos têm afetado a vida dos/das indígenas e do povo de Terreiro
A mesa trouxe a luta e a resistência das mulheres indígenas e de terreiro contra os fundamentalismos. Muitas histórias de violência foram relatadas pelas participantes da mesa, principalmente como os fundamentalismos religiosos afetam diretamente os povos indígenas. Nhandeci Adelaide Lopes/ Povo Guarani Kaiowá, fez uma fala muito importante sobre a situação do seu povo. Ela afirmou que seu povo está ameaçado por pessoas que querem impor outra religião e exterminar a cultura Kaiowá. “Estou aqui para compartilhar a dor que eu trago no peito”, afirmou. E explicou:
“Em nome do povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, denuncio as agressões sofridas, a queimada de nossas casas de reza’’.
Clarice Gama da Silva Arbella / Povo Tukano, da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro Residentes em Manaus (AMARN) também afirmou que os fundamentalismos religiosos afetam os povos indígenas, e principalmente as mulheres. Para ela, “O racismo contra os povos originários foi muito mais cruel durante a pandemia. Racismo praticado pelo governo brasileiro. Os povos indígenas não tiveram direito a atendimento pelo SUS. Junto com isso veio o racismo religioso, concretizado pelos pastores e pastoras que chegam nas comunidades indígenas reproduzindo as falas do gestor do governo brasileiro”.
Edina Carlos Brandão, do Povo Shanenawa e da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab) afirmou que falar sobre fundamentalismos religiosos é falar das mulheres, pois o machismo é muito grande inclusive na religião indígenas, onde somente os homens poderiam ser caciques. ”Para terem voz e serem visibilizadas, as mulheres tiveram que fundar uma aldeia. Quando se fala de cultura, fala-se de religião”.
Mãe Nalva de Oxum – Yalorixá do Ilê Axé Yaba Omi, saudou os/as parentes e originários/as (donos/as da terra) e afirmou que “Até hoje a religião afro sobrevive pois [os/as praticantes] são donos da terra”. Falou sobre sua vivência com sua avó, dizendo que há algum tempo não existia esse ódio provocado pelo fundamentalismo e que sua avó, sendo curandeira e benzedeira, sempre benzeu os “crentes” que a procuravam e recebiam a cura. “Era um tempo em que havia respeito”.
Mesa 2 – Como os Fundamentalismos e Racismos Religiosos têm afetado a vida das Mulheres, da Juventude e dos povos e comunidades tradicionais?
O roda de diálogo trouxe à necessidade urgente do enfrentamento aos fundamentalismos por todas as pessoas. Na fala inicial, Raquel Yarikazu Xipaya – Povo Xypaia, ativista indígena e estudante de direito da UFPA, contou a história da invasão e retirada dos povos Xipaya do seu território pelos jesuítas, para serem catequizados. Raquel denunciou o forte racismo na região de Altamira, no Pará, e o quanto os povos indígenas são acusados de ateísmo por não serem cristãos, pois cultuam o Deus Tupã: “Os colonizadores obrigaram os indígenas a abandonarem sua cultura, mudarem seus nomes e abandonarem sua língua. Hoje, muitos indígenas rejeitam suas crenças, seus rituais, para seguirem os rituais cristãos”.
Com a frase “Tire o fundamentalismo do caminho, pela vida das mulheres”, Concita Maia – Instituto Mulheres Amazônia (Ima) – iniciou sua participação e afirmou que “O fundamentalismo se traduz nos gestos concretos dos fundamentalistas quando negam a diversidade. Formam uma articulação criminosa. Com dogmas, seus agentes defendem a criminalização das mulheres. Representam um projeto de morte para a vida de meninas e mulheres. Representam um poder fortemente traçado por uma estratégia que é a teologia da prosperidade”.
Josilana da Costa Santos da Associação de Jovens Moradores e Produtores Rurais do Quilombo de Santa Luzia do Maruanum e membra da Rede Quilombolas do Amapá destacou a história de fé e luta de seu povo quilombola e o sentimento de pertença e propriedade que todos/as têm sobre o quilombo Maruanum: “Ser mulher negra na Amazônia e no Amapá não é fácil, mas o povo não tombará”. Foi um momento marcante no Tapiri, quando Josilana pediu a tod@s uma salva de palmas aos/às ancestrais que tombaram para que o povo negro pudesse estar aqui hoje.
Muitos depoimentos sobre os racismos religiosos foram realizados pelo público que se inscrevia na atividade, dialogando com a mesa sobre situações semelhantes em seus territórios. A potente apresentação do Grupo Rebeldia Cabana, do Movimento dos Trabalhadores/as Sem Terra (MST) que puxou um grande público para o Tapiri, encerrou a mesa do dia.
Mesa 3 – Povos indígenas em resistência e mobilização por seus territórios diálogo com a Ecologia Integral e o Sínodo da Amazônia
Auricélia Arapium, coordenadora Executiva do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita), iniciou a mesa com uma fala intensa: “O governo federal conseguiu acabar com a Funai, não demarcou nenhum território indígena, mas não conseguiu acabar com os povos indígenas porque a resistência foi forte. Houve muitas vitórias no Congresso, mas o marco territorial é uma realidade, acontece na prática. O garimpo está dentro dos territórios indígenas apesar de todas as estratégias jurídicas feitas pelos indígenas”.
Davi Krahô, do Povo Krahô – Tocantins iniciou sua fala registrando que a situação atual que enfrentam todos os povos indígenas parece coisa do passado, mas é o presente. “Se não houver mudança de governo e no Congresso, será difícil resistir”. Registrou que o território indígena em que vivem é muito pequeno, a Ilha do Bananal, do tamanho de um campo de futebol, pois não tiveram seu território demarcado. “A educação é precária e a saúde praticamente não existe”.
Johny Fernandes Giffoni fala sobre a Resolução Nº 454 do CNJ, de 2022, que define como as estruturas de segurança pública e jurídica devem tratar os povos indígenas. O defensor público afirmou que os organismos como a Repam precisam formar pessoas para que elas conheçam e apliquem o Direito e lançou um desafio: “Que seja feita incidência junto ao Conselho Nacional de Justiça, no CNMP, que se faça incidência em nível internacional. Precisam formar pessoas para que conheçam e apliquem o direito dos povos indígenas”. Fernandes pontuou que o governo federal resgatou um discurso muito perigoso que aparentemente já estava sepultado legalmente, que é o paradigma da assimilação e do integracionismo dos povos etnicamente diferenciados. “Ele quer transformar a nação brasileira em uma grande hegemonia, acabando a diversidade e a pluralidade de cultura, cosmológica e do modo de vida, que leva à disputa da narrativa jurídica”.
Dorismeire Almeida de Vasconcelos/Repam afirmou que os/as protagonistas do Sínodo foram os povos da Amazônia. Foi a hora de a igreja escutar e caminhar junto com esses povos: “Escutaram-se os clamores da terra e dos povos. Amazônia é o coração biológico do planeta. Somos aliados/as dos povos originários de todo o mundo e dos povos da Amazônia, nessa casa comum”. “A igreja precisa escolher um lado. O recado do povo é: não traiam a gente”, afirmou Padre Dário Bossi / Repam.
Durante o evento foram realizadas intervenções artísticas organizadas pelo Comitê Dorothy, com cantos do esperançar!
Mesa 4 – O que sua fé tem feito para defender a Amazônia? Compartilhando boas práticas de fé e resistência.
Rodrigo Fadul/ Repam afirmou o interesse da Repam em fortalecer o diálogo e práticas ecumênicas. “Após o Sínodo da Amazônia, houve a abertura dos espaços de escuta. E nesse processo de escuta a resposta foi: ‘a igreja precisa estar do nosso lado’. Justiça socioambiental, o bem viver e as pautas de práticas ecológicas, sustentáveis e socioambientais como forma de superar o modelo que está posto”.
A fala da pastora Romi Bencke / Conic trouxe uma reflexão e uma autocrítica: “Foram recorrentes em todas as falas das mesas deste Tapiri as manifestações que refletem o estrago que a religião cristã fez em relação às religiões dos povos originários”. Romi pontuou que o trabalho do Fórum Ecumênico ACT Brasil tem sido no sentido de minimizar efeitos dessa postura intolerante das igrejas. “Os racismos e os fundamentalismos não são exclusivos dos neopentecostais”.
“Estamos aqui para saber como é que a gente, como cristãos/as, pode trabalhar para desconstruir ou fazer frente a um cristianismo que ataca ou que acha que o outro não tem o direito de praticar a sua fé a partir da sua tradição”, afirmou Sonia Mota. A pastora salientou o lugar de privilégio da igreja e de como o cristianismo é responsável pela discriminação às religiões dos povos tradicionais: “É preciso enfrentar essa questão dentro da própria igreja. Também é necessário promovermos juntos/as ações de incidência, jornadas ecumênicas, missões ecumênicas, fazendo ecoar o grito em defesa das religiões dos povos tradicionais”.
O Reverendo Cláudio Miranda / Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Rede Amazonizar abordou o tema afirmando: “Estamos inseridos numa região onde a vida é constante, apesar do ecocídio. A partir da enculturação, a Igreja Anglicana começou a entender a identidade Amazônica, trazendo-a para dentro de sua fé. Assim, a igreja começou a se aproximar dos povos, dos ribeirinhos, e começou a ampliar sua visão e participação nos organismos ecumênicos, expressando a identidade que a igreja tem com a vida”.
Representando a Rede Amazonizar, o Bispo Renato de Souza falou sobre como a rede tem servido de espaço de denúncia, pontuando como a aproximação aos movimentos que mais sofrem intolerâncias – especialmente junto à comunidade LGBTQIA+ – é necessária para que a igreja possa exercer o seu papel de serviço e de ser instrumento de combate a toda forma de discriminação e preconceito: “Nós, cristãos/as, precisamos retomar nossa vocação de levar esperança às pessoas”.
Mesa 5 – Promoção do Diálogo Ecumênico e enfrentamento aos fundamentalismos religiosos
O Comitê Inter-religioso do Estado do Pará trouxe para o Tapiri a Promoção do Diálogo Ecumênico e o enfrentamento aos fundamentalismos religiosos através das reflexões de Juscelio Pantoja – Educador Popular do Centro Alternativo de Cultura/Pará;
Mam´etu Nangetu, do Comitê Inter-religioso do Estado do Pará, do Reverendo Claudio Miranda, da Diocese Anglicana da Amazônia. A mesa foi mediada pelo Reverendo Bruno Almeida, do Centro de Estudos Anglicanos.
A intolerância aos cultos afros surgiu em função dos escravos terem difundido a religião, que ao longo dos séculos passou a ser massacrada em um processo simbólico que transformou deuses cultuados pelos escravos em demônios. “O maior exemplo disso é o que o Brasil fez com a divindade Nagô Exu, cuja imagem é difundida com a do diabo cristão”, relembra Mam´etu Nangetu, do Comitê Inter-religioso do Estado do Pará. “Precisamos divulgar o que somos e o que cultuamos. Só que mais do que ser tolerada, eu quero ser respeitada”, enfatiza.
Juscelio Pantoja apontou que as pesquisas não dão contam do número de racismos e intolerâncias que crianças afro, de religiões de matriz africana, não cristãs sofrem na escola. O professor abordou que o maior dos fundamentalismos está na sala de aula, na opção de fé desse/a professor/a de ensino religioso de ser um/a promotor/a, catequista e evangelizador/a da sua fé, seja no ensino privado ou particular. ”Como ensinar a cultura amazônica e a afro religiosidade? Esse é um tema muito delicado, a ser superado no ensino religioso. Quem está educando seu filho/a no ensino religioso? Mais importante que reconhecer a minha expressão de fé, é reconhecer a expressão de fé do outro. O racismo, o preconceito e a intolerância começa a ser superado quando lidamos com o aprendizado. com o desenho de aprender e reconhecer o diferente”.
Aconteceu também no Tapiri, na tarde do dia 30, o lançamento de diversas publicações:
Mercantilização da Natureza / Cimi – Amazônia Ocidental; Relatório da Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil / Cimi; O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado e os protocolos comunitários no Brasil: um exercício de autodeterminação / PAD; Agenda 2030 das Mulheres da Amazônia / Ima; Mártires da Floresta Amazônica / Grupo Articulação Ecumênica e Inter-religiosa – Tapiri; Campanha ”Eu voto pela Amazônia” / Repam e Combate à Intolerância Religiosa e ao Fundamentalismo Religioso na Amazônia /Rede Amazonizar.
Facilitação gráfica de Brendal Farias (@a_arte_do_dal) e Bruno Pedroso (@bruniac15)