Pedro Rebelo
Professor de História, pós graduado em Ciência da Religião
Colaborador de Koinonia
“O golpe é misógino, homofóbico e racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito e da violência” Dilma Rousseff
Passados cinco anos do golpe jurídico, parlamentar e midiático que interrompeu o governo legítimo da presidenta Dilma, precisamos fazer um balanço acerca dos impactos sentidos pelas religiões de matriz africana, não só pela ótica do crescimento do racismo religioso e da intolerância, mas também sobre como a política econômica nos afeta.
Sem dúvida, o golpe que tirou Dilma da presidência foi o marco zero do esfacelamento da democracia brasileira, reestabelecida em 1985, e pode se dizer que Bolsonaro é a variante do fascismo não esperada por quem protagonizou o grande acordo nacional (com Supremo e tudo). Aquele golpismo se valia da estética iluminista, republicana, cristã e até constitucional ao fazer uso muito mais da caneta que do fuzil. Uma característica presente nos processos golpistas orquestrados em Honduras (2009), ainda que com alguma participação do Exército (sob as ordens do Judiciário), Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019).
Bolsonaro é o filho feio dos processos neogolpistas da América Latina e, uma vez que chegou ao “poder”, dá sinais de que tensionará até o último segundo. Não que sua política econômica desagrade ao às elites econômicas como um todo. Se há sustentação de sua figura pelo militarismo, por setores fundamentalistas entre evangélicos, católicos, espíritas cardecistas e alguns outros e por uma base social de ódios forjada pelas Fake News; há também o aval de setores importantes financeiros, extrativistas de comodities, agronegócios exportadores, que o apoiaram, e entre eles certamente alguns ainda o apoiam.
É preciso dizer também que o esfacelamento da democracia e a retirada de direitos conquistados nas últimas décadas teve início com Temer ao aprovar um pacote de maldades que congelou os investimentos públicos na educação, saúde e bem-estar social, além de precarizar a relação de trabalho e os direitos do trabalhador. Foi Temer também que abriu a porteira para os militares ocuparem cargos estratégicos no governo. Bolsonaro é o aprofundamento do golpe de 2016 que segue em marcha.
Mas verdade seja dita. Bolsonaro é produto de um sentimento anterior a 2016. O golpe apenas apressou e deformou o processo, pois a elite econômica do país nunca suportou a ideia de pretos ocupando lugares de poder e nas universidades, mulheres no comando da vida política do país, garantia de direitos à comunidade LGBTQIA+, direito à terra para indígenas e quilombolas… Foi demais para a mentalidade dominante por cinco séculos. A agenda liberal com Covid-19 expôs nossos problemas estruturais de forma assassina e perversa, não esperada até por nós que estamos na luta.
Assim, este governo aprofundou os ataques à democracia com uma aliança militar e discurso religioso que ganha traços de negacionismo científico, com o advento da pandemia, levando o país a bater recordes de mortes por Covid-19. Não é nenhuma novidade, mas para completar, dá sinais nítidos de corrupção, comprovando a farsa da Lava Jato e da prisão de Lula que se seguiram após o golpe. Afinal, não era a corrupção que eles queriam combater.
Atualmente, o Brasil vive um cenário com mais de 14 milhões de desempregados, mais de 580 mil mortos por Covid-19, crescimento do endividamento familiar, alimentação mais cara em 15,5%, aumento da inflação e da taxa de juros, que consequentemente impactam no preço de tudo à nossa volta, inclusive no exercício de nossa fé. Então decidi fazer conversas e ver alguns dados pra ver melhor o quão caro tem sido para nós, religiosos de matriz africana e de terreiro, de forma geral, a manutenção do exercício pleno de nossa fé do ponto de vista material e financeiro.
Para começar, um terreiro não se mantém por si só. Pagamos luz, água, em alguns casos até o IPTU, por que somos cobrados indevidamente, afinal temos imunidade de impostos pela Constituição Brasileira. Só nisso já sofremos a consequência direta da crise hídrica e energética que assola o país e elevou absurdamente as contas de luz e água. Neste ano elevará mais, conforme disseram os ministros de Minas e Energia e da Fazenda. Não podemos esquecer que, no desenrolar desta crise, a privatização da Eletrobras pode trazer mais aumento do que o esperado. Em relação à água, o Marco Regulatório do Saneamento torna nosso futuro mais incerto. E isso tudo possui conexão com um elemento principal de nossa fé: o meio ambiente. Os rumos da política ambiental deste governo, além de ser uma das piores da História, representam graves ataques aos direitos humanos, em especial aos indígenas e quilombolas, e povos e comunidades tradicionais em geral.
Passada a reflexão sobre luz água e meio ambiente, procurei um grande amigo chamado Davi Corado, que trabalha em uma loja de artigos religiosos em São Gonçalo (RJ) para entender o aumento absurdo do preço da vela. Davi me explicou que a parafina usada na fabricação das velas não é mais nacional, e sim importada da China. Fato que levou a um aumento entorno de 70% no preço de alguns anos para cá.
Isso me fez refletir na privatização da BR Distribuidora em 2019. A empresa, antes estatal e agora privatizada sob o nome “Vibra”, é especializada na produção de derivados do petróleo, e a parafina é um destes derivados. Após a privatização, a produção nacional está voltada apenas para o ramo de cosméticos, como me explicou o Davi.
O aumento da vela me levou a conversar com minha Yalorixá, Mãe Juçara de Yemanjá, do Ilê Asè Ogun Já. A reflexão nos levou a um outro assunto: a alta no preço do feijão, do milho e outos grãos tão utilizados em nossos rituais sagrados. Isso me fez refletir sobre o reingresso do Brasil no Mapa da Fome, sendo este país um dos maiores produtores do mundo. Diga-se de passagem, este ano temos uma safra recorde, estimada em 272 milhões de toneladas – quase tudo para exportar, não é comida dos nosso pratos. Assim, a fome atingiu 3 milhões de lares. Um aumento de 43,7% em cinco anos. Com a alta do dólar, nem é preciso dizer a preferência do agronegócio.
Os grãos que chegam à nossa mesa (em casa, no bori, ou no ebó) advém da agricultura familiar. E a agricultura familiar (muitas vezes desenvolvida em comunidades remanescentes de quilombos) tem sido atacada desde o golpe de 2016. Para ter uma noção, o Plano Safra apresentado por Bolsonaro para 2019/2020 com um orçamento total de R$225,59 bilhões, destinou apenas 31,22 ao pequeno produtor através do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). O restante foi para o agronegócio voltado para a exportação. Os investimentos aprovados para 2021/2022 seguem a mesma lógica, com apenas R$39,34 bi voltados para a agricultura familiar em um montante de R$251,22 bi que privilegiam o agronegócio.
Outro aspecto a ser lembrado é que o teto de gastos reduziu significativamente o orçamento de programas voltados para a segurança alimentar e aquisição alimentos. Inclusive este governo extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Com todos estes ataques, o custo real da “comida de santo”, do ebô ao omolocum; do abadô ao acarajé aumenta e muito. E por falar em acarajé, há pouco tempo vimos a produção do azeite de dendê despencar e o preço subir vertiginosamente, comprometendo quem faz deste alimento sagrado sua fonte de renda.
E por falar em alimento, não poderia esquecer de nossas galinhas e cabritos que também sofreram impacto nos preços. No caso da galinha, de acordo com a Embrapa, o custo da produção aumentou mais de 50% nos últimos 12 meses. O cabrito, o pato e a galinha da angola também tiveram aumento no preço, mas um aumento pontual e muitas vezes regional. No caso do Rio de Janeiro, a variação no preço pode estar associada à perseguição policial se valendo de argumentos sanitários, mas servindo a propósitos fundamentalistas. Na capital do Rio de Janeiro, por exemplo, o número de abatedouros do Mercadão de Madureira diminuiu significativamente, além ter havido a prisão de diversos donos de estabelecimentos comerciais deste tipo em cidades vizinhas. Esta é uma questão que faz as roças de candomblé, presentes em áreas urbanas, repensarem a retomada de pequenas criações em suas dependências, mas a alta dos grãos e da ração são um dilema.
Na Bahia, as pequenas criações em terreiros são mais presentes do que no Rio de Janeiro, como me explicou Ana Gualberto, Iyá T’Oju Omo do Ilê Adufé, coordenadora de ações em comunidades tradicionais de KOINONIA e editora do Observatório Quilombola. Ana inclusive me explicou que é comum que alguns artigos sejam mais baratos no Rio e São Paulo, como os importados, que chegam primeiro no Sudeste e depois seguem para o Nordeste. É o caso das miçangas utilizadas na confecção dos nossos fios de conta.
Sobre os preços das miçangas, indaguei outro amigo, o Babalorixá Gilmar de Oyá, do Egbè Ilê Asè Oloyatorun, que explicou sobre a qualidade das miçangas importadas que não desbotam em contato com a água. O preço triplicou e isso se deve à alta o dólar, taxas de importação, aumento do preço do barril do petróleo que encarece a produção de seus derivados… O mesmo se aplica aos produtos ditos africanos, como me explicou o Babá. Consequentemente tudo encarece: louças, barros e um universo de artigos utilizados no nosso Sagrado.
A vida em terreiro é dinâmica e acolhedora. Há sempre um filho ou filha morando na roça, por diferentes motivos. Há sempre um reparo a se fazer e até isso encareceu, já que o preço do material de construção disparou e conforme indicam especialistas no assunto, é improvável que os preços retornem ao patamar anterior à pandemia.
Nesse sentido, até a acolhida dos filhos em nossos barracões encareceu. Seguimos fazendo, como sempre fizemos, mas é cada vez mais um desafio a ser superado. Isso para não falar do ódio crescente, dos crimes de racismo religioso e intolerância religiosa, do tráfico associado ao fundamentalismo neopentecostal, dos terreiros incendiados, do desmonte da Fundação Palmares, dos ataques aos direitos quilombolas…
Mas se há ataques, há também resistência. A luta por direitos tem se intensificado, assim como as iniciativas econômicas têm surgido com o protagonismo feminino na produção de indumentárias e artesanatos, protagonistas também de milhares de ações de solidariedade com a população atingida pela crise da Covid-19, de saúde e econômica. E falando em resistência, terminei a rota dos meus diálogos com Mãe Baiana, diretamente de Brasília, que já teve suas roça atacada e queimada. Em sua sabedoria, Mãe Baiana profetizou: se acabar a luz a gente acende uma vela, se não tiver vela a gente acende uma fogueira e aproveita a luz da Lua. Jamais deterão nossos Orixás!
Depois de tantos diálogos, concluo que precisamos superar a pandemia com a vacina para reabrirmos nossos terreiros com segurança e tomarmos as ruas gradativamente, pois o que acontece na política tem impacto também em nossa vida social e sagrada. Está tudo interligado, como a ancestralidade sempre nos ensinou. Nada é sozinho por si só.