Por Luciana Faustine
Foi na companhia da cunhada, mãe e sobrinhos que Rosiele Vasconcelos, de 33 anos, Presidente do Quilombo de Sobara, localizado no município de Araruama, no Rio de Janeiro, estava quando um grupo de cinco pessoas bateram à sua porta para reivindicar o direito de tomar a vacina de combate ao coronavírus, destinada a pessoas pertencentes a comunidades quilombolas.
Os três homens e duas mulheres que compunha o grupo são pertencentes à comunidade do Remo, uma comunidade vizinha ao quilombo, construída dentro de uma área de sítio, e composta por cerca de 100 famílias, que não moram e não têm parentesco com os moradores do território negro. Porém, ambas as comunidades estão cadastradas no mesmo posto de saúde, local em que a vacina é aplicada.
O fato de estarem cadastrados no mesmo posto, como conta a líder comunitária, fez com que os moradores do Remo reivindicassem o direito à vacina, que na fase em questão, é destinada a comunidades quilombolas, comunidades indígenas, idosos, profissionais de saúde e idosos em instituições de longa permanência.
“Antes da vacina chegar, a enfermeira do posto de saúde me procurou para eu mostrar as áreas quilombolas. Eu mostrei e perguntei se precisava de lista, ela falou que não precisava de lista, daí eu mostrei as áreas que ficam dentro da comunidade de Sobara. Essas pessoas que vieram me procurar são pessoas que moram vizinhas à comunidade, eles não moram dentro da Sobara”, conta Rosiele.
Ameaças em redes sociais
Após a ida à casa de Rosiele, as cobranças se estenderam para as redes sociais, em que os moradores vizinhos utilizaram grupos da cidade no facebook para responsabilizá-la pela falta da vacina.
Nas mensagens, que foram printadas por Rosiele e guardadas como provas das cobranças, moradores marcam a líder comunitária, mencionam o Ministério Público, dentre outras instituições governamentais, e dizem que ela está escolhendo as pessoas que serão vacinadas, e que eles querem ter seu direito preservado, pois, segundo eles, “Rosiele só privilegia os dela”.
Já Rosiele, afirma não saber o que eles querem dizer exatamente com a frase do privilégio, visto que não somente sua família teve acesso à vacina, mas sim toda a comunidade.
“Eu fico sem saber a que eles estão se referindo. Eles disseram nas mensagens que eu só privilegio os meus, mas não sei quem são os meus, porque a vacina não foi só para a minha família, a comunidade inteira teve acesso”, questiona.
Em uma das mensagens, uma moradora diz: “não se esqueça que tem como provar porque as listagens com os nomes das pessoas que foram vacinadas foram registradas, tá, dona presidente, quando o Ministério Público vier investigar, vai ver que tem pessoas que não têm nada a ver com o município tomando vacina”. “Ela erra e agora está se fazendo de vítima”, responde uma segunda moradora.
Em outra postagem, uma terceira moradora diz concordar que os quilombolas têm direito, porém, segundo ela, “Rosiele está escolhendo quem irá ser vacinado”.
Outro morador, que teve sua publicação compartilhada dezenas de vezes, marca a página Fala Araruama e diz que após ir até o posto de saúde e não conseguir ser vacinado, procurou por Rosiele, que não permitiu que ele tomasse a vacina.
Páginas como o Portal R7, Portal RC24h, Ibama, Equipe Comunica são marcadas como forma de chamar atenção para o caso. Coagida, Rosiele utilizou a sua página para afirmar que foram à sua casa lhe cobrar, ao que foi respondida que não há ameaças, mas sim a “cobrança de um direito”.
“É fácil demais errar e depois se vitimizar. Independente de sermos ou não quilombolas, assim como você e sua família, somos seres humanos”, respondeu uma das moradoras.
Rosiele explica que durante o período em que somente os idosos foram vacinados não houve problema, contudo, quando a vacinação passou para os mais jovens começaram as reivindicações. Ela conta que os dois primeiros dias de vacinação ocorreram diretamente no quilombo, e que quem não conseguiu se vacinar nesses dias passou a tomar no posto, momento em que as ameaças começaram a acontecer.
“Eu me sinto ameaçada porque eles expõem o meu nome para muitas pessoas, e as pessoas aqui me conhecem e sabem que eu sou liderança. Eles falam que sobrou vacina e eu não deixava aplicar neles. Eu nem sabia que estava sobrando dose da vacina”, conta ela, que ressalta que as doses que sobram são devolvidas pela enfermeira responsável pelo posto de saúde, juntamente com a lista contendo os nomes de quem foi vacinado e a quantidade restante.
“Eu não mandava em nada disso, apenas às vezes a enfermeira não conhecia a pessoa e me ligava para saber se era da comunidade, mas como a turma do Remo ela sabe que não é. Então quando foram procurar ela para tomar a vacina, ela mandou me procurar. Daí eu falei que nesse momento eles não poderiam tomar porque é específico para quilombolas. Eles chegaram na minha casa dizendo que queriam a vacina deles, eu me senti encurralada. Eles queriam a vacina deles, sendo que eles não são quilombolas”, finaliza.
Um direito garantido em lei
A lei nº 14.021, de 07 de julho de 2020, dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e disseminação da COVID-19 nos territórios indígenas. Ela ainda estipula medidas de apoio às comunidades quilombolas e demais comunidades tradicionais.
De acordo com a lei, as comunidades quilombolas são grupos de alto risco porque estão em situação de extrema vulnerabilidade, “por isso estão dentro dos grupos prioritários para a vacinação”, conta a advogada Camila Chagas, que presta serviço de assessoria jurídica para comunidades negras tradicionais assistidas por KOINONIA.
Camila explica que ainda que os moradores das duas comunidades estejam cadastrados no mesmo posto de saúde, e que elas sejam vizinhas, isso não significa que as duas estejam dentro da mesma situação jurídica, pois apenas uma delas é quilombola.
“As comunidades quilombolas possuem características culturais próprias que as diferenciam de outras comunidades rurais. Todos são iguais perante a lei, mas nem todos estão na mesma condição, por isso é necessário tratamento diferente aos grupos que são diferentes”, afirma Camila.
A advogada ressalta que, no direito, trata-se da aplicação do princípio da isonomia, princípio que garante a igualdade de oportunidades a todos, mas considera as condições diferentes das pessoas.
“Pela lei, os quilombolas são considerados como grupos em situação de extrema vulnerabilidade e, por isso, são destinatários de ações específicas como a campanha de vacinação”, explica.
Ela ainda ressalta que a prioridade na vacinação de quilombolas está prevista devido ao fato de a lei reconhecer a diferença dos impactos da pandemia nas comunidades tradicionais, fazendo com que essa prioridade não seja um privilégio, mas uma ação de defesa daqueles que estão em situação de extrema vulnerabilidade.
“Estamos atravessando a pandemia de Covid-19 com muitas dificuldades em razão da postura inicial do Estado brasileiro, que deixou de adotar medidas que poderiam evitar a morte de milhares de pessoas. Infelizmente ainda não há vacina para todos e, por isso, o governo tem vacinado inicialmente os grupos prioritários, porque possuem maior risco de contrair a doença e desenvolver complicações”, conclui.
Monitoramento de Aplicação de Doses
Em seu site, a prefeitura de Araruama divulgou um Monitoramento de Recebimento e Aplicação de Doses da Vacina COVID 19, no qual consta o número de doses recebidas e quais populações foram vacinadas. De acordo com o documento, até a data de 27 de abril, foram recebidas 45.415 doses, somando a Coronavac e a Astrazeneca. Dessas, durante a primeira fase de aplicação, foram destinadas às comunidades quilombolas 347 doses da Astrazeneca e 63 doses da Coronavac, um total de 410 doses.
Além dos quilombolas, durante a fase 1, foram vacinados com a Astazeneca 1.630 profissionais de saúde, 288 idosos em instituições de longa permanência, 7.146 idosos, 27 pessoas com deficiências acima de 18 anos em residências inclusivas e 2 profissionais de segurança e salvamento.
Já com a Coronavac, também durante a fase 1, além dos quilombolas, foram vacinados 1.503 profissionais de saúde, 109 idosos em instituições de longa permanência, 13.617 idosos, 135 profissionais de segurança e salvamento.
Durante a fase 2, foram vacinados com a Coronavac um total de 11.856 pessoas, porém, dentre elas, até o momento do fechamento desse texto, não estavam incluídos o número de pessoas com deficiência, população indígena e comunidades quilombolas.
Com a vacina Astrazeneca, também durante a fase 2, não constam os números referentes às pessoas com deficiência, população indígena e comunidades quilombolas. Nessa fase, foram vacinadas com a Astrazeneca um total de 828 pessoas.
O monitoramento completo divulgado pela Prefeitura de Araruama pode ser consultado no link: Monitoramento de Recebimento e Aplicação de Doses Vacina COVID 19.