Camila Chagas Advogada Graduanda em Ciências Sociais (UFBA) Mediadora de Conflitos (certificada pelo Conselho Nacional de Justiça) e Educadora Popular
No dia 15 de julho de 2020, o busto de Mãe Gilda (in memorian), localizado no Parque Metropolitano do Abaeté, foi depredado por um indivíduo que diz ter praticado o ato “em nome Deus”. O agente foi autuado flagrante e encaminhado à delegacia. A ação foi presenciada por populares. Estes ouviram, de forma inequívoca, as afirmações do sujeito. No entanto, a autoridade policial entendeu que se tratava de crime de dano ao patrimônio público, inserto no artigo 163, III do Código Penal, e que o ato praticado não guarda relação com intolerância religiosa. O Estatuto da Igualdade Racial e de Combate á Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, Lei nº 13.182, de 06 de junho de 2014, no artigo 2º, VII, define intolerância religiosa como: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais e litúrgicas e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, atente contra símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou seja capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos; No referido Estatuto, o capítulo XII trata da defesa da Liberdade Religiosa. Neste, o art. 86, II, dispõe medidas de combate a intolerância contra religiões afro-brasileiras e seus adeptos, dentre as quais a proteção dos espaços públicos e monumentos vinculados às religiões de matriz africana. Ora, como é possível adotar medidas de combate e enfrentamento à Intolerância Religiosa se sequer há o reconhecimento de que o ato de vandalismo praticado guarda relação com o valor simbólico que representa o monumento violado? O Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa ainda prevê a criação de uma delegacia especializada, nos termos do seu artigo 79. Cabendo, ainda, a Secretaria de Segurança Pública coordenar o processo de formulação e estabelecer procedimento unificado para o registro e investigação dos crimes de racismo e crimes associados a práticas de intolerância religiosa, por força do artigo 80 da Lei nº 13.182, de 06 de junho de 2014. Imperioso destacar que a imagem representada no busto é de uma sacerdotisa do Candomblé, religião alvo de intolerância religiosa no Brasil. Mãe Gilda foi Iyalorixá do Abassá de Ogum, mulher negra, com engajamento político, defensora dos direitos de sua comunidade, vítima fatal da Intolerância Religiosa cuja memória é resgatada no dia 21 de janeiro, data em que é celebrado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, por força da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007. O Código Penal brasileiro, em seu título V, trata dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. No capítulo I, versa sobre os crimes contra o sentimento religioso aqui destacado: Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo Art. 208 – Escarnecer alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mes a um ano, ou multa. (grifo nosso) Na legislação extravagante, isto é, aquela que não está inserida dentro do Código Penal, mas em leis especiais, existem dispositivos que combatem a intolerância religiosa, a exemplo dos crimes tratados na Lei de Combate ao Racismo. A Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, define e pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Nesta, o artigo 20 criminaliza a prática de discriminação religiosa: Art. 20 Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. Insta salientar que não é a primeira vez que o Busto de Mãe Gilda tem sido alvo de intolerância religiosa. No dia 03 de maio de 2016, a escultura sofreu ataques de vândalos. Considerações Finais O crime praticado contra o busto de Mãe Gilda atinge todo povo de axé, pois a representação simbólica do busto presta homenagem a uma sacerdotisa, mulher negra, que professava sua fé numa religião de matriz africana (Candomblé). Mãe Gilda sofreu diversos tipos de violência por ter seu direito a Liberdade Religiosa violado: teve seu rosto estampado na capa do Jornal Folha Universal com a manchete “macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso dos clientes”; seu terreiro foi invadido por religiosos neopentecostais; uma bíblia foi arremessada em sua cabeça. Um sujeito que depreda um monumento em sua homenagem e que diz ter praticado o ato “em nome de Deus” não foi motivado pela intolerância religiosa? Precisamos falar sobre o racismo e a sua manifestação em âmbito religioso. O Candomblé é uma religião afro-brasileira e deve ser respeitada como todas as outras. O Estado precisa dar o tratamento adequado às demandas que envolvem questões étnico-raciais, senão o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à intolerância Religiosa do Estado da Bahia não terá eficácia e será apenas um apanhado de texto escrito numa folha de papel. Referências: BAHIA. Lei nº 13.182, de 06 de junho de 2014. Institui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia e dá outras providências. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/content/estatuto-da-igualdade BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm