As comemorações ocorrem em meio ao Julho das Pretas, totalmente virtual, e o debate mundial das questões raciais e evidencia a importância de resistência pela manutenção da vida do povo negro
Por: Ana Gualberto, Camila Chagas, Sheyla Klicia Silva
Com a contribuição de Natália Blanco e Luciana Faustine
Como forma de celebrar a data neste momento de pandemia a Rede de Mulheres Negras da Bahia inaugura seu canal no Youtube e estará produzindo conteúdo também por lá!
Confira a entrevista com as representantes da Rede de Mulheres Negras da Bahia:
Nesta segunda-feira a
Rede de Mulheres Negras da Bahia (RMN- BA) comemora oito anos de existência. A data é celebrada juntamente com o aniversário da campanha “Pare de Nos Matar”, lançada em 13 de julho de 2016, e que hoje, quatro anos depois, ainda ecoa tanto na Bahia quanto fora do estado.
As celebrações ocorrem em um contexto em que o debate das questões raciais e resistência pela manutenção da vida e do bem-viver do povo negro se faz cada vez mais presente, tanto no Brasil quanto no mundo.
Denúncias de assassinatos da população negra no mundo, atreladas ao assassinato de George Floyd, nos EUA, que desencadeou em uma série de manifestações, compradas com as manifestações ocorridas após o assassinato de Martin Luther King, demonstram que o debate e a urgência de sua existência não são recentes e que, por isso, mais do que nunca é primordial a adesão à campanha pela sociedade e, fundamentalmente, pelo Estado.
A Rede de Mulheres Negras da Bahia, idealizada em 2012, é composta por organizações de mulheres negras, mulheres negras autônomas, organizações mistas e outros grupos afins pertencentes aos mais variados grupos de diversas orientações políticas, sexuais e religiosas.
A prioridade do coletivo é o fortalecimento individual de cada uma, construindo possibilidades de articulação e empoderamento das organizações negras.
Sendo uma organização não institucionalizada, a RMN (BA) se configura como espaço de acolhimento, afetividade, segurança e bem-estar das mulheres negras.
É um espaço suprapartidário, de organização de esquerda anticapitalista e antirracista, que trabalha pela construção da equidade racial, social, de gênero e a eliminação de todas as demais formas de discriminação e desigualdade, tornando-se um local de compreensão da diversidade das mulheres negras e fortalecendo a irmandade e solidariedade.
Para falar sobre o processo de criação da organização, o aniversário da campanha, comemoração do Julho das Pretas e a resistência das mulheres negras dentro desse contexto de luta constante, convidamos algumas mulheres integrantes do coletivo que irão expressar suas visões também acerca dos últimos acontecimentos.
- A criação da RMN (BA) aconteceu no mesmo ano da Marcha das Mulheres Negras, ocorrida em Brasília, que mostrou nacional e internacionalmente a força das mulheres negras em movimento. Gostaríamos que falasse um pouco sobre a idealização da Rede e sua conexão com a organização da marcha:
Suely Santos, representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar e do Movimento Negro Unificado (MNU):
Eu passei a integrar a marcha a partir do convite de Lindinalva de Paula e Valdecir Nascimento. Para mim foi a descoberta de um novo mundo político. Um movimento de mulheres negras que, a partir daquele momento, torna-se protagonista na luta negra no Brasil.
Patrícia Santana, produtora cultural, Educadora Social, Comunicóloga e representante da RMN (BA):
A Rede nasce de uma articulação de mulheres negras na Conferência da Igualdade Racial da Bahia, em 2012, de onde também surge o indicativo de uma marcha nacional, feita por Nilma Bentes, militante histórica do norte brasileiro. Na época se falava muito da marcha e muitas organizações e coletivos surgiram por causa dela. Na Bahia as movimentações foram feitas em torno da construção da Rede e do fortalecimento do movimento de mulheres negras, tendo a marcha como uma agenda a ser construída, mas o foco mesmo era formação política.
Eu participei da construção da marcha de forma direta desde a organização de fichas de inscrições à coordenação dos ônibus que foram para Brasília, me lembro da agonia que foi conseguir transporte para o máximo de mulheres, pois dois dias antes do evento não tínhamos transporte para todas. Foi uma correria, mas com um pouco de organização, critérios e pressão política conseguimos construir uma delegação plural, contemplando o máximo de territórios possíveis e as mulheres foram marchar, foi incrível! A Bahia sem dinheiro e sem apoio conseguiu levar 20 ônibus para Brasília.
Helena Argolo representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar, coletivos Luiza Bairros Ângela Davis:
O processo de criação da RMN (BA) foi pautado pela democratização. É a construção de um espaço criado para agregar a maior quantidade de mulheres possível, considerando os diversos lugares de onde elas partiriam. São mulheres de diferentes cidades, terreiros, quilombos, escolas, universidades, igrejas, periferias, favelas, ocupações, coletivos, grupos, slans, coxerês, cuxixos, dentre muitos outros, sem deixar ninguém de fora. Em que pese haver a RMN (BA) em coligação direta com a RMNN, vigorou o reconhecimento da necessária autonomia organizacional de muitos destes grupos e de mulheres, individualmente, para se chegar à Brasília, o que resultou no sucesso que presenciamos.
- A campanha “Pare de Nos Matar” foi lançada há quatro anos, hoje presenciamos o movimento “Vidas Negras Importam”, que demostra a urgência de ações pela manutenção da vida do povo negro no mundo. Como foi o processo de criação da campanha?
Suely Santos, representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar e do Movimento Negro Unificado (MNU):
A Campanha “Pare de nos Matar” surge na reunião de avaliação em Salvador, que aconteceu após o retorno da Marcha de Mulheres Negras. Nós entendíamos que era necessário indicar os próximos passos, afinal, não poderíamos enfrentar o Estado com uma Marcha. Era preciso apresentar uma proposição para encaminhamento da luta. Então a campanha vem desse entendimento, de percebermos que a morte de mulheres e da juventude negra seria um dos pilares da resistência naquele momento. A Campanha é o nosso instrumento de denúncia.
Patrícia Santana, produtora cultural, Educadora Social, Comunicóloga e representante da RMN (BA):
Eu costumo dizer que precisamos de mais uns cinco anos para conseguir dar conta do capital político que a Marcha Nacional de Mulheres Negras trouxe, a campanha “Pare de nos Matar” é um desdobramento da marcha. Ao voltarmos com toda euforia desse marco histórico que foi o ato, Tânia Palma, que viu um cartaz da delegação da Paraíba, se não me engano com a frase Parem de nos Matar, voltou dizendo que precisávamos fazer uma campanha que denunciasse as diversas violências sobre os nossos corpos, uma campanha que discutisse vida e não morte, e aí começamos a articulação.
A primeira reunião foi na sala da Ouvidoria da Defensoria Pública, entre petiscos e suco de caixinha…rs. Ali decidimos tudo, criamos a identidade visual, o manifesto, a data de lançamento, a captação de recursos e, aos trancos e barrancos, ela faz quatro anos.
Foi lançada em vários municípios do Estado e começou a fazer zuada nas redes sociais. Eu me lembro do relato de uma das mulheres dizendo que a polícia olhou feio para ela por que estava com a camisa da campanha.
O símbolo é uma cabaça/ xequerê, quem é de axé sabe que a cabaça está presente na vida e na morte e também pela simbologia feminina, queremos discutir vida, não morte. A perspectiva é não denunciar depois que morreu, é evitar que morra!
Isso passa por diversos processos, pois não é somente o braço do estado nas periferias, é a violência obstétrica, é a depressão, é a questão da falta de assistência às mulheres vítimas de violência, são várias mazelas.
Com o tempo começamos a perceber a dimensão, a campanha virou uma hashtag e aí foi embora! Virou livro, documentário surgiram coletivos de forma nacional, eu acho ótimo! Quanto mais gente gritando, melhor.
Hoje tocamos a campanha assim como tocamos a Rede, com articulação e voluntariado na raça, temos dois marcos importantes que é a nossa participação no 2 de Julho e a nossa aula pública na praça. Nesse período estamos fazendo uma ação de comunicação nas redes, de conscientização dos protocolos de segurança de forma mais popular para ter inserção mesmo no nosso povo das periferias.
Helena Argolo representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar, coletivos Luiza Bairros Ângela Davis:
A Campanha “Pare de Nos Matar” nasceu do clamor de se alertar as autoridades e a sociedade sobre o aumento absurdo da violência contra as mulheres, cometida principalmente por seus namorados, noivos, companheiros, maridos e outros indivíduos do sexo masculino, resultando na morte delas.
Como previsto, a campanha extrapolou os limites da RMN (BA) e virou quase que de domínio público, o que para nós, mulheres negras, é positivo, porque as estatísticas apontam para uma taxa de mortalidade maior entre as mulheres de classes mais baixas, pretas e pardas e da periferia.
Isso evidencia a necessidade de se criar meios jurídicos para combater esta realidade, providências legais que protejam mulheres em situações de violência, punam de forma efetiva os praticantes de feminicídios e proponha meios de coibir tais práticas, de forma a que todes se sintam protegidos.
- A pandemia do coronavírus evidenciou as desigualdades sociais e o quanto elas estão pautadas no racismo estrutural presente no País. Como a RMN (BA) tem atuado no contexto pandêmico e quais horizontes vocês enxergam para o futuro?
Suely Santos, representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar e do Movimento Negro Unificado (MNU):
O momento de pandemia nos instigou a criar novas formas de comunicação, então as lives têm sido a estratégia do movimento para circular as informações, buscar e dar ajuda.
Semanalmente realizamos encontros temáticos para discutirmos os desafios e as dificuldades que estamos enfrentando. São encontros internos da Rede que, dentre outras coisas, servem como espaço para formação política.
Criamos a Campanha “Cuide de Quem Cuida”, visando angariar alimentos e recursos financeiros para contribuir com as mulheres que são lideranças de grupos e comunidades, pois muitas vezes essas mulheres se dedicam a cuidar dos outras se esquecem de si mesmas. Recebemos cestas básicas, máscaras, materiais de limpeza e através de um fundo emergencial receberam recursos financeiros de pessoas que atenderam ao nosso apelo e assim conseguimos movimentar as ações de solidariedade. Destaque para a parceria com o Koinonia, a CESE, e a CUFA.
Eu acredito que o pós-pandemia vai trazer uma grave crise econômica, com mais desemprego e consequentemente mais violência. Nós, mulheres negras, na maioria das vezes já somos responsáveis pelo sustento de muitas famílias, então essa crise vai nos atingir em cheio. Por isso, urge a organização das mulheres e a ajuda de órgãos financiadores, comprometidos com nossa luta, pois vamos precisar muito de ajuda.
Patrícia Santana, produtora cultural, Educadora Social, Comunicóloga e representante da RMN (BA):
A pandemia abalou muito o movimento e as mulheres da Rede! Logo no começo, em abril, fizemos uma reunião ampliada para saber como as mulheres estavam em questão de afetividade, que é uma coisa que trabalhamos bastante em nossas ações.
Chegamos a conclusão que havia a necessidade de formar um grupo para ajudar as mulheres que são lideranças em seus espaços de atuação. Recebemos relatos de mulheres que tiravam coisas de seus armários para ajudar uma vizinha, coisa de mulher preta, né? Assim surgiu o fundo emergencial das mulheres negras e a campanha “Cuidar de quem Cuida”. Possibilitamos assistência na questão do auxílio emergencial e depois começamos as ações de solidariedade.
Aos poucos fomos estruturando de forma digital nossas formações e agora estamos entrando na era de instrumentalizar essas mulheres para lidar com esse mundo digital, que é uma barreira a ser vencida. Ainda é novo para nós essa questão do pós-pandemia, as necessidades são tantas que estamos no modo comendo e assando, ainda é um caminho longo.
Helena Argolo representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar, coletivos Luiza Bairros Ângela Davis:
A RMN (BA) está sempre tentando se antecipar com ações autônomas e em conjunto com outras organizações, não só do movimento social, mas também com diálogos propositivos com instituições como o Ministério Público e Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública, na tentativa de evitar manifestações de racismo, que no Brasil são corriqueiras e geoseletivas, vitimando jovens negros e negras, promovendo o que chamamos de genocídio da juventude negra.
Assassinatos como de Marielle Franco e de crianças que são vitimadas dentro de suas casas, em sala de aulas, ou em outros locais onde deveriam estar protegidas têm a capacidade de provocar comoção social e mobilizar as pessoas para a nossa luta. São reações importantes, mas nos faz questionar o porquê de a mesma comoção não acontecer nos casos de violência doméstica, que pautamos o tempo inteiro.
Ajudar as mulheres que são vítimas dessa violência, inclusive, permanece sendo a nossa pauta durante a pandemia. Conseguimos criar um fundo finaceiro que nos possibilita comprar medicamentos e oferecer atenção especial para elas, assim como prover ajuda financeira.
Para o pós-pandemia, enquanto RMN, avaliamos que continuaremos o processo de chegar aonde o governo não chega. E se chega, não é efetivo. Isso será inadiável.
- Que mensagem a RMN (Ba) deixa neste de tantas celebrações e ações de resistências?
Suely Santos, representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar e do Movimento Negro Unificado (MNU):
A organização, a parceria, a irmandade entre as mulheres negras e os grupos de mulheres negras é fundamental neste momento. Não teríamos como passarmos por esses desafios sem a certeza de podermos contar umas com as outras. A convivência, a troca de experiência, os ensinamentos, até mesmo os conflitos nos trazem um aprendizado sem dimensões. Eu me sinto bem sabendo que posso ligar o telefone e ouvir a outra de qualquer lugar. Como é uma diversidade de pessoas é muito difícil lidar, mas estou no melhor lugar que uma militante, ativista, poderia estar. Ainda tenho comigo pessoas amigas desde a infância e juventude, amigas do início da militância e novas amigas que adotei agora no coração. O Julho das Pretas para mim este ano é isso: pensaram que iam nos afastar e a gente se juntou mais, estamos renascendo a cada desafio.
Patrícia Santana, produtora cultural, Educadora Social, Comunicóloga e representante da RMN (BA):
É dizer que estamos firmes, centradas e cuidando umas das outras mesmo, procurando continuar a fortalecer a luta feminista, antirracista e de esquerda. É gritar sempre: Parem de nos matar!
Helena Argolo representante da RMN (BA), integrante da campanha Parem de Nos Matar, coletivos Luiza Bairros Ângela Davis:
A RMN (BA) vai sempre caminhar ao lado de pessoas e entidades que lutam de forma incansável contra a violência e a opressão. Evidenciamos a luta pelo direito à saúde, proteção à vida e garantias básicas do vem-viver de todas a mulheres negras que, conforme estatísticas oficiais, são as maiores vítimas de violência, incluindo as perpetradas pelo Estado, abarcando as práticas letais do racismo estrutural e do racismo institucional.
Uma saudação especial às jovens mulheres que contribuem para que a RMN(BA), a Campanha Pare de Nos Matar, o Julho das Pretas e demais entidades, organizações, coletivos, grupos, eventos, dentre outros, se renovem e possibilitem a continuidade das nossas caminhadas. Todas essa ações que celebramos nos permite nos permite mostrar o trabalho de militância ativismo político e acadêmico que pautam a nossa vida cotidiana na busca por melhores condições de vida para o povo negro, para as mulheres negras.
Nossos passos vêm de longe!