Yemonjá, patrimônio afro e apropriação

Ana Gualberto

Iyá Oju Omo Ilê Adufé

Coordenadora de ações com comunidades tradicionais de KOINONIA

Editora do Observatório Quilombola

  “Dia dois de fevereiro Dia de festa no mar Eu quero ser o primeiro A saudar Yemanjá!” Dorival Caymmi   No último domingo celebramos mais um dia de Yemonjá, a mãe cujos filhos são peixes, divindade africana trazida para o Brasil no coração dos escravizados retirados do continente africano. Neste ano de 2020 aqui em Salvador, no dia 1 de fevereiro na colônia dos pescadores do Rio Vermelho, marcou-se o registro da Festa de Yemonjá como Patrimônio Imaterial da cidade de Salvador[1]. O pedido de registro e reconhecimento da festa como Patrimônio Cultural de Salvador foi feito pela Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Bahia, apoiado pela própria Colônia de Pescadores, que organiza a festa durante todos estes anos de celebração de fé e amor. O processo de registro será realizado pela Prefeitura de Salvador, por meio da Fundação Gregório de Mattos, órgão municipal responsável também pelos processos de tombamento dos espaços físicos entre outras competências.
Foto: Ana Gualberto
Salvador tem diversas particularidades, entre elas está o calendário das festas sagradas populares que se inicia com a Festa de Santa Bárbara no inicio de dezembro. A única dessas festas dedicada nominalmente a Orixá/Vodun/Inkisi é a Festa de Yemonjá, que sempre foi “Festa de Yemonjá”. Bem, no ano de 2019, ao chegarmos ao Rio Vermelho no dia 01 quando a cidade já está decorada, nos deparamos com placas colocadas pela prefeitura aonde estava escrito: “Festa de 2 de fevereiro”. Isso mesmo! Tentaram tirar o protagonismo de Yemonjá de sua própria festa. De imediato, o povo de religião de matriz africana, instituições, grupos e organizações fizeram um alvoroço na cidade por meio de redes sociais e denúncia aos órgãos competentes. Assim o Ministério Público Estadual interfere e cobra da prefeitura que se mantenha o nome da festa[2]. Este fato nos mostra quão necessário é mantermos estado de vigilância permanente, pois a cada momento nossa história, nossa herança cultural e religiosa é ameaçada de apagamento e de apropriação. Moro nesta cidade há alguns anos, mas meu convívio de quase 10 anos em Salvador, me permitiu vivenciar várias Festas de Yemonjá no Rio Vermelho e a cada ano percebo que o que antes era uma festa religiosa, tem se tornado a abertura do carnaval para os turistas. Nada contra os turistas, mas tudo a favor das festas religiosas e principalmente da defesa de nossa herança ancestral. Ainda temos diversas famílias religiosas que vem para o Rio Vermelho trazer seus presentes, realizar seus rituais diversos na beira do mar. Mas é muita gente vestida de Yemonjá, (sim eu disse VESTIDA de YEMONJÁ) desrespeitando totalmente nossa religiosidade, nossa herança ancestral. Nunca vi na festa de Santa Bárbara ou de Nossa Senhora da Conceição alguém vestida como as santas católicas, mas quando se refere à religião de matriz africana tudo é permitido e apropriado como folclore. Li nas redes sociais algumas pessoas naqueles dias que Yemonjá não tem cor. Como assim? Orixás/Voduns/Inkisis têm cor, têm origem e todos vieram do continente africano. É fundamental que isso seja compreendido e que se aceite como fato irrefutável. Não é porque não há cor de pele para ser afetada por nossas divindades, que elas não tenham sua origem. Um sábio sacerdote daqui de Salvador diz a seus filhos e filhas brancos: “Está pronto/a pra receber um vodun negro?” Entrar para uma religião de matriz africana é compreender isso na sua essência e principalmente respeitar o que foi constituído antes de nossa chegada. Se não, não é fé, é experiência antropológica. Voltando à questão da Festa de Yemonjá, não sei como será em 2021. Espero que consigamos retomar o espaço devido à religiosidade da festa, que este registro como patrimônio seja mais um instrumento político de valorização de nossa herança afro, presente em nosso cotidiano brasileiro. No mais, preciso reafirmar que utilizar instrumentos administrativos e jurídicos para garantia de nossos direitos é uma estratégia usada à muito tempo por nossos mais velhos, mas isso é outro pensamento que compartilharei depois com vocês. Salve Yemonjá/Aziri Kaia/Kaiala/Janaina/Iara!!!! Seja o nome que for, desde que seja com respeito e fé, a senhora do oris[3] cuidará de ti! Odoyá!!!   [1] Saiba mais acessando:https://glo.bo/2H35gid  [2] Saiba mais acessando: https://www.metro1.com.br/noticias/cidade/68173,ministerio-publico-cobra-que-prefeitura-corrija-placas-da-festa-de-yemanja [3] Ori, significa cabeça em Ioruba.
Ana Gualberto
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