Daniela Yabeta
Professora do Departamento de História (UNIR-PVH)
Editora do Observatório Quilombola
Para quem não sabe, o município de Porto Velho, atual capital do estado de Rondônia (que é diferente de Roraima!), comemora dois aniversários durante o ano. Um referente a criação e outro referente a instalação da cidade. No dia 02 de outubro de 1914, o baiano Jônatas de Freitas Pedrosa (1848-1922), que ocupava o cargo de governador do estado do Amazonas (1913-1917), sancionou a Lei nº 757 que criou o município de Porto Velho, com sede na povoação do mesmo nome, à margem direita do rio Madeira. Três meses depois, em 24 de janeiro de 1915, o maranhense Fernando Guapindaia de Souza Brejense (1873-1929) foi nomeado oficialmente primeiro superintendente da cidade. Na ocasião da nomeação, o Diário Oficial de Manaus – publicado em 05 de fevereiro de 1915, registrou a seguinte declaração de Guapindaia: “Era com grande desvanecimento que tinha a honra de, nestas longínquas paragens, vir inaugurar o município de Porto Velho, trazendo para este remoto rincão nacional uma das grandes conquistas da democracia – o governo do povo pelo próprio povo – na soberana autonomia municipal, assegurada pelos preceitos constitucionais”. Ao ler a notícia completa “Por que Porto Velho tem dois feriados de aniversário no mesmo ano”, publicada no portal G1-Rondônia em 24 de janeiro de 2020, algumas questões surgiram na minha cabeça: Quem foi Jônatas de Freitas Pedrosa? Quem foi Fernando Guapindaia de Souza Brejense? De que “democracia”, “povo” e “soberania” ele está falando em 1915? Na condição de forasteira em Rondônia, tento esse primeiro exercício de interpretação da História de Porto Velho, pensando no contexto da Primeira República (1889-1930). Para começar, recorri ao Dicionário histórico-biográfico da Primeira República, organizado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV). Passando por lá, encontrei um verbete dedicado a Jônatas de Freitas Pedrosa que diz o seguinte: Graduou-se na Faculdade de Medicina da Bahia em 1873. Tornou-se médico do Exército brasileiro e chegou a Manaus em 1876, como segundo-tenente cirurgião do Corpo de Saúde. Deixou o posto em agosto de 1878, quando foi nomeado médico da Guarda Policial e comissário vacinador. Em maio de 1879 foi nomeado professor da cadeira de francês do Liceu Amazonense. No mesmo ano ocupou o cargo de primeiro suplente de juiz municipal em Manaus. Em junho de 1882 tornou-se diretor da Escola Normal e em abril de 1885 assumiu interinamente o cargo de diretor da Instrução Pública. Em julho seguinte foi nomeado médico do Instituto Amazonense e, em agosto, inspetor da Saúde Pública. Em janeiro de 1889 fundou o Ateneu Amazonense, na cidade de Manaus.Em 1898 foi eleito senador federal pelo Amazonas e exerceu o mandato até 1906. No ano seguinte retornou ao Senado Federal e aí permaneceu até 1912, quando, por ter sido eleito governador do Amazonas, renunciou ao mandato. Assumiu o governo do estado em 1º de janeiro de 1913, num período marcado por intensa crise da borracha. A forte concorrência do produto no mercado externo e, posteriormente, a instabilidade causada pela Primeira Guerra Mundial foram alguns dos fatores responsáveis pela crise econômica do Amazonas durante seu governo. Além disso, enfrentou uma forte oposição liderada pelo coronel Antônio Guerreiro Antony, que contava com o apoio do senador Rui Barbosa. Seu governo chegou ao fim no dia 1º de janeiro de 1917, quando tomou posse o sucessor Pedro de Alcântara Bacelar. Faleceu na cidade de Manaus no dia 7 de julho de 1922. Sobre Fernando Guapindaia de Souza Brejense, encontrei no Gente de Opinião, o texto do historiador Dante Fonseca intitulado “Major Fernando Guapindaia de Souza Brejense, primeiro superintendente (prefeito) de Porto Velho (1915-1916)”. Nele, Guapindaia é apresentado como militar; superintendente do Município de Lábrea (AM); delegado auxiliar, prefeito e primeiro presidente da Loja Maçônica Capitular Fraternidade Acreana em Cruzeiro do Sul – sede do Departamento do Alto Juruá (AC); membro do Corpo de Polícia do Maranhão; primeiro superintendente em Porto Velho, entre outros. Logo de cara, considero importante destacar que ambos são homens do século XIX. Nasceram no Brasil monárquico, centralizador e escravista. Dentro desse contexto, eram homens de privilégio. Frequentaram universidade, seguiram carreira militar, ocuparam cargos de confiança e participaram ativamente da vida política na recém-criada República. Portanto, o que Guapindaia chama de “democracia” em 1915 é diferente do que entendemos hoje em dia. Seguindo esse raciocínio, lembrei do texto “República, Democracia e Federalismo – Brasil 1870/1891” (2011), do historiador José Murilo de Carvalho. Em seu trabalho, Carvalho nos mostra que a Primeira República foi marcada por constante instabilidade, guerras civis, crises financeiras e total falta de ordem e progresso. De acordo com o historiador, apenas no governo do paulista Manuel Ferraz de Campos Sales (1898-1902) a República foi estabilizada. Nas palavras de Carvalho, Campos Sales criou um engenhoso mecanismo, a que chamou política dos estados, pelo qual o presidente da República se entendia com os governadores no sentido de formar um congresso governista. O então presidente, sabia que no Brasil o governo do povo, pelo povo e para o povo era uma utopia. A corrupção eleitoral, que já existia nos primórdios do Império, manteve-se presente nos primeiros anos da República. Campos Sales então, propôs aos governadores dos estados que a política dominante fosse o árbitro da legitimidade dos diplomas eleitorais. Desta forma, estava eleito (ou era nomeado) quem fosse apoiado pelos governadores. Feito esse novo esquema, Carvalho coloca que o regime se estabilizou, embora às custas dos ideias republicanos de democracia representativa, de participação popular e de divisão de poderes. Foi nesse contexto que o governador Jônatas de Freitas Pedrosa nomeou o superintendente Fernando Guapindaia de Souza Brejense, ambos alinhados com o presidente em exercício Venceslau Brás (1914-1918). A autonomia dos municípios que Guapindaia exalta, nada mais era do que o federalismo engolindo a democracia. Sobre os “preceitos constitucionais” citados pelo primeiro supertintendente de Porto Velho, vale ressaltar que a constituição que estava em vigor no ano de 1915 era a de 1891. Nela, o direito de voto era garantido apenas aos homens alfabetizados e maiores de 21 anos. Ficavam de fora, mulheres, mendigos e analfabetos. Basta um olhar mais atento para perceber que grande parte desse contingente banido era formado por negros que haviam acabado de sair da condição de escravizados por conta da abolição ocorrida em 13 de maio de 1888. E no caso de Porto Velho, podemos incluir também um grande contingente de indígenas e imigrantes. Desta forma, feitas as devidas colocações, fica mais fácil entender sobre qual “povo”, “democracia” e “soberania” Fernando Guapindaia de Souza Brejense estava se referindo no momento de sua declaração em 1915. Seguindo as comemorações em torno dos 105 anos da cidade de Porto Velho eu só tenho a desejar que os governantes atuais incluam em suas pautas os que foram excluídos em 1915 e continuam excluídos em 2020: a população pobre – ainda representada em sua maioria por negros, os indígenas e os imigrantes – esses em especial, estão por todas as ruas da cidade em busca de trabalho, moradia, educação, saúde. O problema é que muita gente vê, mas não olha com a devida atenção. Por tudo isso, feliz ano velho, Porto Velho!