Ana Gualberto
Iyá Oju Omo Ilê Adufé
Coordenadora de ações com comunidades tradicionais de KOINONIA
Editora do Observatório Quilombola
Vivemos tempos extremamente difíceis. Começo o texto inicial de minha coluna de opinião no OQ com esta afirmação, pois esta é uma das frases que mais repeti este ano. O ano de 2019 foi marcado por algumas palavras que não me agradam em nada: retrocesso, ódio, violência, mortes, medo, terrorismo… Infelizmente nos acostumamos a usar estas palavras em nosso cotidiano. Pensar no direito das comunidades tradicionais, em especial das comunidades quilombolas já que estamos no OQ, é reavivar todas estas palavras e mais algumas em nosso cotidiano. Este ano tivemos certeza que nossa luta pela garantia dos territórios tradicionais, que é base da vida das comunidades quilombolas, está muito longe de avançar. Mesmo sabendo que nos últimos 4 anos pouco avançamos nos processos de titulação, permanecíamos em diálogo com o governo federal. Dialogávamos pelo avanço de algumas políticas públicas, com a esperança de que a titulação viesse depois, com o avançar de uma agenda positiva de direitos. Hoje, mais do que nunca, enfrentamos um governo que não reconhece o direto do povo negro, muito menos das comunidades tradicionais, incluímos aí todas elas: quilombolas, indígenas, povos de terreiro, pescadores, marisqueiros, catadoras de coco babaçu e todas as outras especificidades. É só lermos as declarações do presidente sobre estes segmentos. Retornamos à luta pela afirmação de nossa cidadania, de sermos sujeitos de direitos e até por nossa humanidade. Fazendo uma breve retrospectiva, aponto alguns fatos na expectativa de termos um ano diferente em 2020: O avanço do pensamento de extrema direita, inclusive dentro das comunidades negras tradicionais. Nos últimos anos, meu trabalho de campo tem se pautado em alguns municípios do baixo sul da Bahia, onde tive acesso a lideranças, que assustadas, ponderavam o que poderiam fazer mediante ao posicionamento de quilombolas em votar no governo atual. O voto neste governo é a maneira de tornar explicito toda uma forma de ver o mundo. E esta forma é de negação da vida de determinados grupos sociais, que “destoam” do projeto de mundo eurocêntrico que afirma a hegemonia de um determinado sujeito: homem, branco, heterossexual e cristão. Quem se posiciona à extrema direita, mesmo não cumprindo todos esses requisitos, deseja este lugar, deseja ser este sujeito. Estas pessoas acreditam que somente um grupo social tem direitos reais, o resto é escória que deve ser combatida. Infelizmente descobrimos que muita gente pensa assim, gente que está nas comunidades tradicionais, em nossas famílias e grupos que frequentamos. O avanço desta extrema direita permitiu que todos os pensamentos horríveis aflorassem, que as pessoas explicitassem isso em suas falas e atos. É só olharmos os números crescentes da violência. O posicionamento do governo à favor do uso de armas para proteção da propriedade privada, justifica ainda mais os conflitos no campo. Temos visto como os grileiros têm partido mais ainda para o confronto e como os movimentos sociais são criminalizados por suas ações em defesa dos grupos vulnerabilizados. Os casos de Alcântara e Rios dos Macacos reafirmam o posicionamento do atual governo sobre os territórios quilombolas: o entreguismo da base de Alcantara, a vista grossa às violências vivenciadas em Rio dos Macacos. Os quilombolas de Rio dos Macacos são impedidos de acessar a água. Isso é a mesma coisa que matar. A morte ronda cada liderança todos os dias. No mês de novembro enterramos Seu Vermelho, liderança de mais de 80 anos morto com requintes de crueldade. Lideranças do Rio dos Macacos sofrem ameaças todos os dias, mas não desistem de lutar por seu direito de viver em seu território ancestral. As mortes de lideranças são uma constante e não há investigação. Continuamos sem saber quem matou Binho do Quilombo. Para nós que estamos no nordeste, as coisas também seguem estagnadas. Não há avanço nas titulações possíveis via governos estaduais. Os processos de titulação prometidos pelo governo do estado da Bahia não avançam. Fato este que dá força aos conflitos locais, que seriam resolvidos com a titulação dos territórios quilombolas. A mineração avança sobre as áreas quilombolas, os processos de licenciamentos correm às escondidas sem que as comunidades sequer saibam do avanço dos mesmos. A Bahia é o único estado que mantem uma secretaria voltada a questão racial, mas a falta de recursos impossibilita, e muito, a ação da SEPROMI, ficando praticamente num lugar de denúncia e não de resolução, como era a proposta inicial do órgão. Continuamos a esperar a regulamentação total do Estatuto da Igualdade Racial e Combate a Intolerância Religiosa da Bahia, criado em 2014. Mas como manter a esperança de dias melhores mediante a tantos retrocessos e aumento dos conflitos? Em que frentes devemos apostar nossas fichas visando o projeto de equidade em nosso país? Como superar o racismo e os ódios que estão presentes no cotidiano? Me atrevo a trazer estas perguntas para que juntos passamos pensar e ir criando novas respostas a cada dia. Estas respostas precisam ser acompanhadas de ações. Bem, mantenho minhas esperanças por acreditar que nosso projeto civilizatório é melhor do que o desse povo que quer apartheid no mundo. Não voltaremos pras senzalas, não deixaremos as universidades e não desistiremos de nossos territórios ancestrais. Acreditar nisso me motiva à levantar cada dia e continuar nas lutas. Creio também que podemos construir novas representações na política local, pensando na continuidade da incidência no legislativo. Precisamos acreditar nas novas candidaturas de pessoas como nós: pretas e pretos, pobres, agricultoras, periféricos. Podemos e devemos estar nesses espaços. Temos esta possibilidade de eleger vereadoras e vereadores que estejam de verdade ao nosso lado na luta por equidade, que compartilhem de nosso projeto de mundo. Tenho apostado minhas fichas nas ações em rede, nos diálogos possíveis e nas lutas que posso travar. Acho que este é um caminho interessante a ser praticado. Sozinhos não conseguimos nada, precisamos andar em bandos, levantar bandeiras coletivas, nos juntar com nossos semelhantes. Precisamos que homens, mulheres, brancos e negros, todas as pessoas que compartilham do projeto de um mundo com equidade, se posicionem. Por último, mas não menos importante, é preciso reafirmar a cada dia, que o racismo continua estruturando nossa sociedade e mundo. Ele é a base de toda a desigualdade, negação de direito e humanidade de grupos sociais. Este monstro precisa ser enfrentado a cada dia, a cada fala, a cada ação. Isso precisa ser orgânico em nossa militância, pois combater o racismo é promover vida. Não basta não ser racista, é preciso ser anti racista, e isso é ação. Finalizo este texto com a convocação para nos mantermos em movimento. Não podemos entregar o jogo para este projeto de morte, pois temos condições de continuar jogando. É preciso fazer ajuste na equipe (na nossa e dos aliados), rever estratégias, as vezes recuar pra poder avançar mais a frente. Seguiremos em desobediência, pois dela depende nossa vida e de nossos descendentes. “… Vamos amigo lute, vamos amigo ajude, senão a gente acaba perdendo o que já conquistou…”