Artigo: “Você gosta de mim, mesmo sendo gay?”
Por Daniela Leão,
Mestra em Ciências da Religião pela UMESP
Para KOINONIA
Essa pergunta me surpreendeu outro dia no watsapp. Minha primeira reação foi perguntar: “Como assim? Tá, sou sua amiga, mas o que eu tenho a ver com a sua sexualidade?” A segunda foi: “Por que você está me perguntando isso?”
Não consigo parar de pensar nesse fato! Claro que minha amiga estava angustiada e precisava da minha aprovação. Então, eu dei: “Eu te acolho, te gosto, te respeito, te aceito. (e ponto final!)” Mas por que essa necessidade? Tenho para mim que a resposta está na quantidade de desaprovação que ela tem recebido ultimamente.
Poucas vezes eu paro para pensar nas pessoas que são “desaprovadas” pela sociedade, sabia? Minha vida é tão cheia de aprovações… Olha só: nunca repeti de ano na escola, tenho carro e casa próprios, família de comercial de margarina, ocupo espaços de liderança na igreja etc, etc, etc. Enfim, aos olhos do mundo: estou aprovadíssima, tenho méritos, sou uma pessoa de sucesso! Ou Deus me abençoou? Mas… e quem vive sob o constante jugo da desaprovação? Essa pessoa não tem méritos, não é um sucesso? Deus não a abençoou?
Foi tentando analisar essa situação que me dei conta de que o que eu tive foi acesso a um privilégio socialmente construído e sorte! E isso não tem nada a ver com Deus. Tive o privilégio de ter tido tempo para sempre me dedicar aos estudos como prioridade na minha vida, privilégio de ter encontrado um bom trabalho, sorte de ter encontrado o meu marido antes de ele conhecer outra pessoa mais interessante do que eu, sorte de ter nascido heterossexual numa família de classe média, sorte de ter um dom que a comunidade acolha e com o qual me permita colaborar, privilégio de ter encontrado o motivo pelo qual eu vivo. Simplesmente tive sorte e privilégios!
Como posso querer invocar a bênção de Deus somente para mim e as/os socialmente aprovadas/os? Quer dizer que Deus nos abençoou e esqueceu-se da minha amiga e das/os outras/os? Jamais! Ele jamais os deixaria, os deixa ou virá a deixá-los sem a Sua bênção, todos os dias, sobre as suas vidas! Deus nunca abandonará ninguém. Ainda que uma mãe abandone um filho, Ele jamais o fará!
A angústia que minha Bela amiga sente não nasce da falta da bênção de Deus, mas da discriminação que a sociedade (incluindo a sua comunidade de fé) tem praticado para com ela. É a constante tentativa de colocá-la dentro de um padrão ou tentar mantê-la à margem – longe dos olhos dos preconceituosos – por não conseguir padronizar-se que se fazem presentes nas narrativas que ela escuta diariamente que a angustia e a faz sofrer. É a confusão que se faz entre a bênção de Deus e a aprovação social, somada à falta de amor para acolher a diversidade da criação de Deus que faz com que as/os marginalizadoras/es construturas/es de regras (neste caso, heteronormativas) não a reconheçam como igual, tratando-a como “não abençoada” ou “fora do padrão”, “desqualificada” para o convívio com os demais. Tal situação envia-lhe a mensagem: “esconda-se!”, o que provoca sensação de não pertencimento, gerando angústia no coração da Bela.
E, assim como minha amiga, muitas pessoas sentem que não pertencem a um grupo. Agora, pensemos nessa constatação neurocientífica: pertencer a um grupo, amar e ser amado pelos integrantes desse grupo é uma necessidade humana que precisa ser atendida, sem a qual não conseguimos alcançar o nosso pleno potencial como ser humano. A angústia causada pela falta de acolhimento em grupo é uma das grandes causas de transtornos físicos e mentais, porque é vital que seres humanos estejam em relação, uns com os outros. Quando se trata de relações sexuais, isso não é diferente.
Numa sociedade predominantemente cristã como a nossa, ainda mais cruel do que normatizar comportamentos e apontar os que estiverem “fora do normal” é classificar a homossexualidade (ou qualquer outra forma de expressão da sexualidade humana) como pecado. Ao fazer isso, somamos o peso da culpa à angústia causada pela sensação de não pertencimento. Notemos que essa “pecaminização” não trata de qualquer culpa, mas da pior: a culpa sem redenção. Por quê? Porque a sexualidade é uma pulsão, um movimento interno que direciona a vida e, uma vez descobertas suas condições sexuais, seres humanos não podem mais desfazer-se dessa pulsão. Nesse raciocínio acachapante de “pecaminizar” uma condição sexual, não há resgate possível para essa culpa, daí a profunda crueldade dessa ação.
Quando tomamos contato com narrativas contidas nos Evangelhos sobre a vida de Jesus, percebemos que Cristo praticou incessantemente o acolhimento às/os socialmente excluídas/os. Curou leprosos, acolheu prostitutas, cobradores de impostos e todos as/os pechadas/os como pecadoras/es de sua época. O nazareno gerou (no sentido de fazer germinar) ambientes de amor e acolhimento em volta de si. E os frutos desses ambientes tornaram-se permanentes. Por onde quer que passasse, as pessoas O aceitavam como filho de Deus porque ele amava e acolhia como o próprio Deus. Ao anunciar o Reino de Deus como um lugar onde todas/os teriam assento, Ele atende à necessidade humana de pertencimento a um grupo, de amar e ser amado pelos integrantes desse grupo. Foi essa a fé que nos alcançou. E esses relatos permanecem vivos e falam conosco sobre a psique humana desde sempre, inclusive nos dias de hoje.
Além de nos anunciar um espaço onde TODAS e TODOS caibam, os Evangelhos proclamam Jesus como o Cordeiro de Deus que TIRA o pecado do mundo. Olha que maravilha! Jesus TIROU O PECADO DO MUNDO! Então, se Jesus já tirou o pecado do mundo, quem somos nós, pequeninos diante da grandeza de Deus, para introduzi-lo novamente? É muita petulância!
Se formos verdadeiramente cristãs/os e quisermos segui-lo, a nossa missão não é a de fazer planilhas que classifiquem as pessoas, podando-as e fazendo-as ficar adequadas às regras sociais inventadas (sabe-se lá quando) por seres humanos. Também não é excluir quem quer que seja do nosso convívio, tampouco condenar ao anonimato as/os socialmente classificadas/os como “não adequadas/os”. Ao contrário de julgar e padronizar comportamentos, somos chamadas/os para proclamar a libertação que só Jesus pode dar! Nesta semana aprendi que libertação é a ação da palavra. Portanto, ao nos chamar para proclamarmos a Sua libertação, Jesus nos convida a agirmos de forma a promover a liberdade das/os cativa/os nas mais diferentes prisões em que se encontrem.
A missão para a qual Jesus nos convida é a de continuar contando a Sua história, vivendo e anunciando as Boas Novas da Sua vida. E para isso, Eles nos deixou várias instruções. Trago algumas que nos alimentam a esperança: “Acolham, não julguem. Não olhem nem apontem para o comportamento dos outros, preocupem-se com os seus próprios e os corrijam. Não se preocupem com o mundo, eu já o venci. Espalhem amor. Se alguém te magoar, perdoe. Tenham bom ânimo, acreditem: Eu sou o cordeiro que tira o pecado do mundo!”
De minha parte, eu te acolho, Bela amiga! A você, a sua companheira, a sua família e a todas/os que se sentirem marginalizadas/os e sem o necessário apoio para viver e praticar o amor humano. Vamos nos somar para livrar-nos uns aos outros das culpas e das angústias que o mundo nos impõem. Não se engane: todos nós somos podados ou praticamos a auto poda para sermos consideradas/os “normais” ou seja, para agirmos dentro das normas. Umas/uns sofrem mais, claro, outras/os (como eu), menos. Mas sabemos que Deus não quer que ninguém viva pela metade. Ao enviar Seu filho Jesus, o Pai quis que tivéssemos vida em abundância!
Não digo que terei sempre palavras acolhedoras, nem que saberei agir sempre da melhor forma. Também fui educada para julgar. Mas, se me quiserem, quero estar com vocês, desconstruindo normas que aprisionam e denunciando privilégios dos quais poucos possam gozar. Quero estar junto de vocês, construindo e espalhando o Reino de Deus, aprendendo juntas/os sobre a liberdade para a qual Jesus nos libertou. Não tenho medo, Deus está nos guardando, o próprio Cristo segue conosco e é o Espírito Santo quem nos anima e consola! E sigamos até o fim dos tempos… de opressão.