Igrejas e Comunidades LGBTI+ realizam Congresso em São Paulo
Movimentos sociais do campo e das cidades, representantes religiosos e pessoas LGBTI+ discutem fundamentalismo e exclusão em nome da religião
Texto: Mario Manzi – CPT e Wesley Lima – MST
Fotos: Julio Cesar Silva – Divulgação: Koinonia Presença Ecumênica
O 1º Congresso Igrejas e Comunidades LGBTI+, realizado entre os dias 19 e 23 de junho, na Paróquia da Santíssima Trindade, da Igreja Anglicana em São Paulo, reuniu as duas questões propostas no nome do Congresso, com o objetivo de construir unidade em torno da luta contra a LGBTfobia, tendo como principal desafio romper com o conservadorismo e o fundamentalismo religioso presentes na história brasileira. O Congresso foi realizado pela Paróquia da Santíssima Trindade e por Koinonia Presença Ecumênica e Serviço com o apoio de Igreja Episcopal Anglicana do Brasil/Junta Nacional de Educação Teológica (JUNET); Christian Aid Brasil; Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo; AHF Brasil.
O Congresso incluiu-se na programação de uma das maiores festas de luta do Orgulho LGBT do país, a Parada do Orgulho LGBTI+ de São Paulo. Especificamente no Congresso estiveram presentes cerca de 200 pessoas, entre elas, representantes de organizações sociais pelos direitos da população LGBTI+, entidades nacionais e internacionais e movimentos populares.
Ao analisar o processo histórico de lutas da população LGBTI+ em nosso país e o avanço do pensamento conservador nos últimos anos, principalmente a partir do discurso de ódio utilizado pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PSL), Nancy Cardoso, teóloga e integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), afirmou que neste momento é central “celebrar a vida” à mesa de abertura, denominada “Fotografia do Momento Político, Econômico, Religioso, Movimento Social e suas implicações na Vida dos LGBTI+”.
Cardoso emendou: “Deus é amor. Mas existe um discurso que destrói as comunidades LGBTI+; destrói os corpos. Esse discurso é fundamentalista e destrói também as famílias. Por isso precisamos pensar uma teologia que consiga reconstruir a vida, as comunidades, a coletividade”.
“Existem conteúdos comuns que criminalizam a luta e os corpos LGBT. Existe um processo de globalização dessa cruzada. Nós somos reduzidos a uma teologia do corpo, que tem como base a disciplina dos corpos. Nesse sentido, se constrói uma discussão sobre o que é natural.”
Além disso, Cardoso pontuou que há, hoje, um movimento de uma Articulação dos Fundamentalistas Religiosos com o objetivo de ocupar espaços importantes mundialmente com um discurso conservador, normatizando as formas de viver e de amar, ampliando o debate em torno da ideologia de gênero. Entre eles, ela destaca o Congresso Mundial da Família, o Observatório, Vaticano e a Aliança Mundial da Juventude.
Para Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp – que também compunha a mesa –, a desqualificação do debate público é apontada como um dos piores pontos do atual governo “O pior estrago já está feito”. Como estratégia, o movimento deve sempre pensar o próximo passo, vez que a conquista de direitos não é um fim, que muitas vezes o desafio é conseguir fazer vigorar o direito conquistado. “O Direito Penal nunca resolveu problema nenhum em nossa sociedade, tem um recorte de classe, de raça muito importante”, afirmou em referência à criminalização pelo Superior Tribunal Federal (STF) da criminalização da homofobia. Apesar da análise, Quinalha classificou como positiva a resposta do STF ao ciclo de atropelos vivido neste governo Bolsonaro.
Igreja Anglicana
À mesa “Desafios da inclusão LGBTI+ na Comunhão de Igrejas Anglicanas: pistas de caminhos teológicos e pastoriais”, o reverendo Gustavo Gilson, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, descreveu brevemente o processo de conquista de espaço dentro da instituição a qual ele faz parte. Para ele ocorre uma “tensão entre o evangelho da radicalidade do amor e uma ideia da religião da lei, da normatividade, que quase sempre está a serviço de poderes econômicos e políticos”. Para ele os discursos religiosos e cristãos têm tido papel forte na reprodução e fortalecimento no modelo de poder cis-heteronormativo, portanto é necessário pensar um outro “modelo de eclesialidade” e enfrentar a misoginia e a lgbtfobia. “Não é uma necessidade apenas a quem se identifica, é uma questão de toda a Igreja, de toda a religião.”
“Eu sei o que eu passei para ver Deus sorrir para mim”
Um deus que nem sempre sorriu para suas e seus filhas, filhos e filhxs. A frase é da pastora Alexya Salvador, da Igreja Comunidade Metropolitana (ICM). Junto a ela, somam-se diversas trajetórias expostas na mesa “Jesus Cristo, Rainha do Céu”, que convergem nos testemunhos de rejeição das igrejas e comunidades àquelas e àqueles que não se enquadravam nos padrões de normatividade sexual e de gênero eleitos por essas igrejas.
Esses lugares de fé foram pontuados como, por vezes, fechados a esses corpos que rejeitavam ou contestavam o controle das denominações religiosas. Pouco ou nada acolhedores a transgêneros, transexuais e travestis, esses lugares negavam a acolhida de deus.
Há um novo cenário. Alexya é hoje a primeira pastora trans da América Latina. E é a partir das trajetórias dessas pessoas excluídas, e por estas pessoas, que ela propõe o debate. “Entender que a partir de nós se desponta um cenário até então não visto, não falado, não só dentro de seus ambientes, mas para o mundo.”
Portas fechadas
Ao corpo travesti de Keila Simpson foi negado o acesso a deus pela igreja. “A igreja foi me mostrando a visão dela, que ela tinha comigo, e a Igreja foi começando a me excluir dela.” Foi nas ruas que Keila construiu sua religiosidade. “Deus me aceita da forma que eu sou, como prostituta trans de 53 anos. Na religião a gente vê exclusão, assepsia das pessoas. As igrejas estão incitando o ódio e a violência.”
O Congresso foi então debatido, em seu curso, pela mesa. Realizado no ambiente eclesial da paróquia, o lugar foi discutido, bem como a mesa formada apenas por pessoas trans. “Eu jamais pensei que fosse possível sentar nesse lugar. Meu rompimento foi com o homem, não com deus.”
Também na mesa, a ialorixá Fernanda de Morais, que descreveu todo o processo para tornar-se ialorixá no Candomblé, religião por vezes considerada como mais acolhedora às pessoas LGBTI+. Na fala de Fernanda, contudo, foi pontuado todo o processo de posicionamento que enfrentou para conquistar espaço dentro da religião a que faz parte.
No dia anterior, a deputada estadual por São Paulo, Erica Malunguinho (Psol), também falava aos presentes sobre a importância do Congresso, durante a mesa “Representatividade política de comunidades de fé e o respeito aos direitos LGBTI+”. “Esse encontro é uma resposta propositiva ao sistema que oprime.” Malunguinho ressaltou o papel da religiosidade na narrativa hegemônica, devendo ser também responsabilizada em um processo de reparação. “Processos de colonização não vem apenas com força bélica, mas como arte, cultura e religiosidade.”
Não há mais espaço para o quase
A dissociação entre política e religião foi debatida na mesa da qual fez parte a deputada. O cenário de retrocessos na esfera da conquista de direitos foi tratado, tendo sido consenso a necessidade de discutir os projetos de lei que tocam as comunidades LGBTI+. Renato Simões ao abordar a importância da representatividade política, pontuou sobre a necessidade das pessoas LGBTI+ se envolverem nos debates políticos. À fala dele somou-se a do pastor José Barbosa Junior, da Campanha Jesus cura a homofobia, que também tratou do envolvimento das pautas de combate ao racismo.
Organizações do Campo
Não só movimentos, organizações e pessoas de origem (ou da luta) urbana fizeram parte do 1o Congresso Igrejas e Comunidade LGBTI+. Presentes à ocasião, representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Pastoral da Juventude Rural (PJR) participaram ativamente das atividades e lembraram as pessoas LGBT’s do campo e suas pautas específicas.
Parada
No dia 23 de junho, durante a 23a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, os participantes do Congresso somaram-se ao bloco inter-religioso “Gente de Fé”, que levou à Avenida Paulista o discurso de cidadania religiosa para as pessoas LGBTI+. Um dia antes o Congresso realizado no bairro de Santa Cecília, havia produzido e debatido à exaustão carta aberta à sociedade, durante plenária ocorrida após as oito mesas temáticas do Congresso e a realização de nove oficinas. O documento deve ser publicado em breve.
Veja também: Da igreja à Parada LGBTI. Quem era o bloco interreligioso que agitou a Paulista