Local foi alvo de pichação com dizeres “Jesus é o caminho”
Segundo o Dicionário Aurélio, resistência significa “Força por meio da qual um corpo reage contra a ação de outro corpo” ou “Defesa contra o ataque”. Essa última definição explica muito bem o que aconteceu durante a manhã desta terça-feira (06) no Terreiro Oxumarê, que recebeu grafiteiros do Museus de Street Art de Salvador (MUSAS) e de outros coletivos para responder com arte aos ataques de intolerância religiosa sofridos pelo terreiro neste ano. No último dia de outubro, o terreiro, que é um dos mais antigos e tradicionais do planeta, acordou com uma de suas paredes pichadas com os dizeres: “Jesus é o caminho”.
Mais de 10 grafiteiros se colocaram à disposição da Casa, que é tombada pelo Iphan como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Na mesma parede pintada com dizeres intolerantes, os artistas grafitaram elementos que representam o candomblé e um Oriki, ou história, sobre o terreiro.
Para Júlio Costa, coordenador do MUSAS, a iniciativa é importante porque “abraça todo o mundo que está envolvido com grafite e pichação”. O coordenador ressaltou que não pretende julgar ninguém, nem mesmo a pessoa ou grupo responsável pela pichação agressiva e que o momento é de se unir e tentar, através de ações como a de hoje, proteger o máximo de pessoas possível.
“A gente tá atento e com carinho pelos nossos. Vivemos em uma sociedade onde grafiteiros e pichadores ainda não são bem-vistos e precisamos tomar medidas que nos protejam e passem uma imagem diferente”, aponta Júlio Costa. 110 casos foram atendidos pelo Centro de Referência Nelson Mandela só em 2018
Ogan da Casa de Oxumarê e presidente do Coletivo de Entidades Negras (CEN), Marcos Rezende contou que além do último ataque que aconteceu contra o patrimônio físico do terreiro, a Casa de Oxumarê também sofreu um ataque virtual no início do ano quando teve sua página do Facebook desativada após sofrer diversas denúncias. O ogan explicou que só conseguiu reativar a página, que tem mais de meio milhão de curtidas, após entrar em contato com o próprio Facebook e resolver a situação.
“Não temos problema nenhum com a Bíblia e nem de longe queremos uma guerra santa. Só queremos que esse respeito seja mútuo. Não fazemos mal a ninguém.”, desabafa Rezende.
Segundo a Sepromi, até o último dia 30 de outubro foram notificados 74 casos de racismo e 36 de intolerância religiosa, totalizando 110 casos atendidos pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo Nelson Mandela. O número já está próximo de dobrar aquilo que foi registrado durante todo o ano de 2017, quando 66 ocorrências foram registradas, sendo 45 de racismo e 21 de intolerância religiosa.
Atriz, jornalista e influenciadora digital, Maíra Azevedo também compareceu ao protesto de hoje. Para Maíra, é importante ressaltar a capacidade que a população negra tem de “transformar a dor em protesto”.
“Nosso lamento não é somente de dor, mas também de resistência e de nossa capacidade de existência”, enfatizou Maíra.
Ailton Ferreira e a Casa Oxumarê estão juntos há mais de vinte anos. Hoje, além de coordenador da Sepromi, ele também é Ogan do terreiro – uma espécie de embaixador da casa com o mundo exterior, como ele mesmo se descreve. Quem contou a Ailton sobre o ataque contra as paredes e crenças do terreiro foi sua filha, que enviou uma foto através do WhatsApp e pegou o Ogan de surpresa: isso porque, segundo Ailton, ele estava tentando “se manter de cabeça fria após tanta briga durante as eleições”. Conta o Ogan que decidiu assistir a alguns vídeos de Divaldo Franco, líder do espiritismo, que falava sobre amor e acolhimento durante tempos difíceis.
Ao receber a foto, Ailton declara que teve seu “transe completamente quebrado” e não soube como reagir.
“É muito complicado quando você tenta buscar um momento de reflexão, inclusive através da mensagem de uma pessoa que nem é da sua religião. Fazendo isso eu acreditava que conseguiria colocar um pouco a cabeça no lugar e me abrir um pouco mais. Só que ao receber a foto eu fiquei completamente paralisado e só conseguia pensar em alguma coisa que justificasse tanta crueldade com nossas crenças. Pior de tudo é que ainda aconteceu dentro do meu terreiro. Dói muito. Dói na memória e na alma”, desabafa o Ogan.
O Babalorixá Roberto de Oxóssi saiu de Camaçari, na região metropolitana de Salvador, para apoiar a iniciativa no terreiro soteropolitano. Ele conta que também sofreu diversos ataques em seu terreiro e se mostrou preocupado com os recorrentes casos de agressão aos terreiros de candomblé.
“Isso aconteceu em um terreiro grande, reconhecido e tombado em pleno centro de Salvador. Imagina como eu não fico apreensivo em relação ao meu terreiro, que é pequeno e escondido?!”, indaga o babalorixá.
Legislação
A literatura de Jorge Amado sempre valorizou os costumes da Bahia – e os terreiros de candomblé não ficaram de fora da admiração do autor. A luta de Jorge Amado pela liberdade de expressão religiosa foi além de suas prosas: quando deputado pelo partido comunista, na década de 40, Jorge Amado foi autor da lei que assegura a todos os brasileiros até hoje a liberdade de culto religioso.
Segundo a jornalista e escritora baiana Josélia Aguiar, curadora da Flip em 2017 e 2018, autora da primeira biografia sobre Jorge (que será lançada em salvador no dia 27, no Palacete das Artes), ele era um combativo congressista a favor da causa da população afro-brasileira e dos mais pobres.
“Desde sempre, ele se interessou muitíssimo por isso. Nos anos 20, Jorge fazia parte de uma literatura que se interessava pelos cultos afro-brasileiros. Na época, como repórter de polícia, cobria frequentemente casos de perseguição aos terreiros pela polícia e viu mesmo terreiros serem destruídos, pessoas serem presas. Hoje, cerca de cem anos depois, depois de tantos avanços nessa questão, talvez, Jorge Amado, ficasse chocado pelo modo com que as coisas regrediram em relação à tolerância. Com a aprovação da lei de liberdade de culto religioso, ele garantiu não só que os terreiros passassem a funcionar livremente, mas também os cultos protestantes.”
Por: Dóris Miranda (com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier)
FONTE: Jornal Correio em 06/11/2018