Sacrifício de animais para fins religiosos: para além da polêmica vazia
Por Joel Zeferino
Participei, na semana passada, de um debate na TV Aratu sobre o sacrifício de animais para fins religiosos. Tentei ali, sobretudo, compreender melhor o tema, sem muito sucesso devido à falta de disposição de alguns convidados em tentar aprofundar o tema, além dos limites da própria estrutura do programa. Fiquei particularmente incomodado com as imagens que serviam de fundo para o debate e que conduziram os telespectadores a um determinado olhar. Pois ao expor animais em situação degradante a direção do programa não ajudou a audiência a prestar atenção nos argumentos dos convidados.
Para começar – e foi o que disse insistentemente -, me causou estranhamento a falta de lideranças das religiões de matriz africana: éramos dois cristãos, dois ambientalistas e um representante do islamismo. A direção do programa justificou dizendo que o convite havia sido feito, mas que não pôde ser atendido, pois a religiosa convidada estava em obrigação (quase no fim do programa chegou um representante, que mal teve tempo de esboçar suas ideias, embora tenha marcado posição exigindo respeito). Novamente: não fez e não faz sentido discutir esse tema sem a presença, quiçá em maioria, de representações das religiões de matriz africana. Falo isso pois, inclusive no programa em questão, houve a tentativa de afirmar que não se queria perseguir esta ou aquela fé. Outros subterfúgios também foram usados para tentar negar o óbvio: o fato de que a tentativa de proibir os “sacrifícios sagrados” atinge, criminaliza e busca inviabilizar cultos de matriz africana. O que está por trás desse tipo de discussão/iniciativa é o racismo estrutural, que se apresenta em suas múltiplas formas, se escondendo até mesmo em causas “bondosas” como a defesa dos animais.
Dividi meus parcos argumentos em duas direções, a partir de minha pertença religiosa, política e social. Primeiro, acho no mínimo contraditório o argumento baseado “na Bíblia” que busca demonizar a prática dos sacrifícios. Como se, ao matar um animal, algum tipo de “força maléfica” fosse necessariamente invocada (embora caricatural, o argumento condensa o espírito das ideias). O fato é que não faltam relatos de sacrifícios na história da fé que foi legada ao povo da Bíblia. Como é dito a exaustão em sermões e textos, cristãs e cristãos ao redor do mundo se entendem como seguidores do Deus de “Abraão, Isaque e Jacó” (e Moisés, Sara, Davi, Débora, Maria e Jesus). E é público e notório que a prática de sacrifício de animais fazia parte das tradições religiosas do povo de Israel. Portanto, nossos “Pais (e mães) na fé”, praticavam tais sacrifícios. Sobre o argumento de que isso foi “até Jesus”, bem, essa é uma discussão teológica muito específica, que não cabe ser desenvolvida aqui. Mas só uma pista: é certo que a comunidade de Jerusalém (tida muitas vezes de forma idealizada em círculos cristãos como “Igreja Primitiva”) seguia na prática regular de sacrifícios. Se posteriormente as comunidades não judaicas aboliram a prática é outra história. O que basta aqui é compreender que cristãos acusarem as religiões de matriz africana de “diabólicas” ou de “perversas” por causa dos sacrifícios de animais é um contra-senso histórico.
O segundo argumento diz respeito a laicidade do Estado. Sem querer delongar ainda mais: Estado Laico significa a (verdadeira) separação entre religião e Estado; significa que o Estado não deve promover nem prejudicar qualquer convicção religiosa bem como a não-religiosidade. Infelizmente sabemos que não é assim: desde as invasões portuguesas até os dias de hoje, as igrejas cristãs das mais variadas denominações tem tido uma série de privilégios por parte do Estado. Esses privilégios se materializam não apenas no apoio direto a festas, manutenção de símbolos religiosos e cultos cristãos em espaços públicos, restauro de patrimônio etc. Mas também de formas “invisíveis”: na imposição de valores cristãos ao conjunto da sociedade através de leis, educação religiosa de cunho cristão, etc. Pois, mesmo reconhecendo a precariedade de nosso “Estado laico”, ou talvez principalmente por isso, é fundamental enfatizar que o sacrifício de animais pelas religiões de matriz africana é prática assegurada, posto que se trata da consciência e convicção religiosa sobre as quais o Estado não deve de forma alguma interferir. Claro que há limites: a Lei é um deles. E bem, ainda que pese o argumento de ambientalistas, no Brasil, não é proibido o abate de animais. Somos uma população que consome regularmente em sua dieta os mais variados animais e é essa mesma dieta a responsável por 99,99% dos abates. E veja, não se trata de menosprezar a luta de grupos ambientalistas, vegetarianos, veganos etc., pelos direitos dos animais e mesmo pela abolição de seu consumo. O erro está em centrar essa discussão no abate para fins religiosos. Ou em supor que os “sacrifícios sagrados” são práticas particularmente perversas contra os animais. O erro está em apontar para ações e leis que, conscientemente ou não, aviltam, criminalizam, àqueloes que historicamente são prejudicados: negras e negros, que têm nas religiões de matriz africana o espaço para preservação de sua cultura e ancestralidade. A luta contra o abate de animais e justa? Pode ser. Mas que o centro e o alvo dela seja a sociedade de consumo, a grande culpada. Não aqueles historicamente prejudicados.
Enfim, peço desculpas aos religiosos de matriz africana se usei termos de forma inadequada (ou demasiadamente repetida), ou se citei qualquer questão que não seja central. Como disse de início, minha opinião é “mera opinião” e não consiste na fala que deve ser a mais importante nessa discussão: a de vocês.
Aos demais, creio que devemos investir nosso tempo em fugir da polêmica pela polêmica. Compreender mais do que gritar chavões deveria ser a base de nossas ações, em quaisquer áreas de nossa vida.