Nosso cartão de visita!
Natália Blanco
Nome. No dicionário: “Palavra com que se designa e distingue qualquer pessoa, animal ou coisa, bem como qualquer estado, qualidade ou ação; denominação, designação, designativo”. Tudo tem um nome. Todas as pessoas têm, mesmo que não seja aquele que os pais deram. Mesmo que seja um apelido, todo mundo é chamado por um nome.
Nosso nome faz parte de quem somos e de onde viemos. Agora imagine ser chamado/a por um nome que não é o seu. Imagine ser obrigado/a a responder por um nome que não te representa, insistentemente em vários lugares que você frequenta. Pesadelo, não?
Pois bem, esse é um pesadelo extremamente comum para mulheres e homens transexuais e travestis. Todos os dias essas pessoas passam por esse constrangimento.
Isso porque já existem alguns decretos municipais sobre a questão, mas obviamente, na prática, a população T continua passando por situações constrangedoras.
Em geral, para pessoas cisgênero – que se identificam com o gênero de acordo com o sexo designado no nascimento – o nome de registro não é nada demais. Mas para transexuais e travestis ir a uma consulta médica, por exemplo, se torna um martírio. A cena mais comum é a de uma mulher esperando para ser atendida, quando de repente é chamada por um nome que não condiz com sua imagem. Imagine quantas pessoas desistem da consulta, do atendimento.
O pesadelo nosso de cada dia
É frequente que serviços públicos, como os de saúde, por exemplo, ignorem completamente o fato de que a identificação pelo nome social em todos os documentos dos usuários – incluindo o cartão do SUS – é um direito, assim definido pela carta de Direitos dos Usuários do SUS (Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009). Ou seja, independentemente do registro civil ou decisão judicial, é um direito que a pessoa usuária do SUS seja identificada e atendida pelo nome da sua preferência, sendo proibido o uso de registro de forma vexatória.
Contudo, casos de constrangimento são comuns e o papel acaba tendo mais valor do a identidade da pessoa. É o que diz a advogada Iara Matos, do Centro de Cidadania LGBT da Zona Norte da capital. Desde 2015, Iara vem trabalhando em processos judiciais para realizar a retificação de registro civil de homens e mulheres trans.
“A maioria das meninas e meninos têm esse sonho de realizar a retificação do nome, por causa de constrangimentos que passam diariamente. Muitas mulheres chamam o namorado ou outro homem para acompanhá-las ao médico por já terem a certeza de que vão sofrer por conta do registro civil”, conta.
A advogada atuou entre 2015 e 2016, em outro Centro de Cidadania LGBT, o do Arouche, na região do centro. Seu trabalho era encaminhar as demandas da população que chegava ao órgão. “Antes nosso trabalho era apenas encaminhar essa população para a Defensoria Pública. E eu me sentia angustiada vendo as meninas do Transcidadania naquela situação, pois a retificação do nome tem um papel de melhorar a autoestima delas. Na escola inclusive, não haver o sentimento de que chamar pelo nome social é um favor”, destaca Iara.
Concorrer a uma vaga de emprego é outro pesadelo. São diversos os casos em que a mulher, homem trans ou travesti vão concorrer a uma vaga, têm as qualificações necessárias, vão bem na entrevista, mas na hora da apresentação dos documentos ouvem o famoso “depois entramos em contato”. Ligação que jamais acontece na prática. Este é inclusive um dos grandes exemplos de como a retificação do nome pode ajudar a coibir situações de discriminação.
Como funciona o processo de retificação de registro?
Ele tem as burocracias de um processo judicial e acontece da seguinte maneira: uma mulher trans, por exemplo, tem a opção de retificar o nome e/ou mudar a designação de seu gênero no registro. A última alternativa costuma ser mais demorada, já que documentos como RG, CPF, etc. não possuem esta informação, mas apenas as certidões de casamento e nascimento.
Ainda no caso de retificar somente o nome, a pessoa vai precisar apresentar certidão de nascimento atualizada (e não adianta ser a primeira via, porque é preciso comprovar estado civil, bem como a permanência do nome, evitando fraudes); RG; CPF; título de eleitor; declarações de testemunhas (amigos, parentes, colegas de trabalho, etc.) que reconhecem a pessoa em questão como trans e o uso por ela do nome social; outras certidões que indiquem se há processos na justiça em andamento; e, além disso, parecer psicologico, utilizado como paliativo ao laudo psiquiatrico. Este item tem gerado polêmica, pois ao contrário da homosexualidade, a transexualidade ainda é uma doença no vocabulário médico, tratada como “transtorno de identidade sexual”, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Só depois disso tudo o processo tramita na justiça, levando alguns meses. “No direito, nós embasamos as ações judiciais por meio da legislação de registros públicos, aquela que permite que pessoas que possuem nomes vexatórios tenham o direito de trocá-los. Como ainda não existe uma lei para a questão do nome social para travestis e transexuais, nós, por analogia, usamos a lei de registros públicos”, acrescenta Iara.
Após o julgamento e sentença do juiz/a, se estabelece um prazo para a promotoria recorrer. Daí finalmente a pessoa leva a sentença ao cartório em que foi registrada para fazer uma certidão com a retificação do nome. Com ela, poderão ser solicitadas novas vias de todos os demais documentos.
Vitórias individuais e grandes conquistas para a população T
No programa Transcidadania, todas e todos os participantes que, até o fim de 2016, manifestaram o interesse em retificar o registro civil e/ou fazer a modificação de gênero nos documentos, passaram pela orientação da advogada Iara Matos. Uma das conquistas em sua opinião é hoje poder entrar com as ações judiciais sem apresentar o parecer psicológico.
Um exemplo é a história de Priscila Valentina, um dos casos que Iara atendeu. “Eu lembro da Priscila, quando ela chegou. Ao mesmo tempo que ela parecia um bichinho assustado, não sabia o que fazer, havia também aquele estigma da rua. Hoje ela está lá, sendo articuladora da unidade móvel”.
O processo de retificação do nome de Priscila levou um mês e meio. Ela, que pretende adotar uma criança futuramente, preferiu apenas não alterar o gênero, evitando mais dificuldades quando for realizar a tão sonhada adoção.“Eu não vou me importar se perguntarem para o meu filho ‘qual o nome do seu pai? Priscila Valentina!”, brinca.
A relação entre Iara e Priscila ultrapassou as barreiras profissionais e hoje são amigas, bem como tantas outras mulheres e homens trans que a advogada atendeu. “são vitórias e eu vou me emocionar com cada uma delas”, conta Iara.
“Eu sou uma defensora da retificação, pois infelizmente, o nome social não é respeitado. Essas pessoas frequentam os lugares que todas as outras: bares, bancos, enfim… São cidadãs, merecem o mesmo respeito que as demais. Nosso nome é nosso cartão de visita, é quem somos, o que nos define e todos e todas temos esse direito”, completa.