Notas sobre a Contribuição de Religiosos à Superação da Incitação a Crimes no Brasil*

*Rafael Soares de Oliveira

Contexto[1]

Antes de ver os dados especificamente relacionados ao universo religioso é importante notar que a questão da violência no Brasil é muito grave, conforme se vê em alguns indicadores exemplares:

  • O Brasil é responsável por 10% de todas as mortes por homicídio por ano no mundo;
  • Uma pessoa negra no Brasil tem 2,4 vezes mais chance de morrer que uma branca (em 2012 foram mortas 29 negras contra 12 brancas por 100 mil habitantes). E os meninos jovens negros são muito mais vítimas, pois morrem 2,5 vezes mais que a média do conjunto da população negra e 5,9 vezes mais que a média da população branca. São cerca de 64 jovens negros mortos por dia no Brasil;
  • Ao menos um indígena é morto a cada -3 dias, a grande maioria onde há criações e plantios para a exportação;
  • Outras mortes por conflitos no campo atingem o número de uma a cada cinco dias;
  • Morrem 15 mulheres por dia vítimas de violência, majoritariamente doméstica;
  • Acontece um linchamento por dia no país;
  • Um gay é assassinado a cada dois dias;
  • E os desastres ambientais, naturais ou provocados, em 10 anos, mataram cerca de 3.300 pessoas, sem contar o incalculável assassinato recente do Rio Doce (666 km ou 413 milhas excluindo a área de mar atingida) e dos múltiplos modos de vida em seu entorno.

 

Cresce a violência por motivação religiosa em um cenário de mudança do perfil religioso da população em 35 anos: os católicos caíram de 89 para 64,6%, os evangélicos cresceram de 6,6 para 22,8%, as religiões afro-brasileiras decresceram de 0,6 para 0,3%; as outras religiões cresceram de 2,2 para 4,9%; e os sem religião cresceram de 1,6 para 8%. A crítica das distorções estatísticas tem avaliado que o número para Religiões Afro-brasileiras é subnotado.

Neste quadro de mudança religiosa o crescimento evangélico é majoritariamente de caráter pentecostal, e entre esses de uma maioria messiânica, salvacionista e pragmática, tanto no sentido da busca da eliminação do mal, como da criação dos meios possíveis para isso: financeiros, de crescimento numérico, de representação política e de ocupação do Estado.

Desde 2011 o Brasil passa a ter um de registro nacional de denúncias de violências baseadas na fé, (foram 726 casos anotados entre 2011 e 2015, uma taxa de crescimento de 460%) além de algumas pesquisas estaduais. Todos apontam para uma maioria (entre 60 e 70% dos casos) de agressões de “evangélicos”[2] contra expressões de religiões afro-brasileiras, havendo anotações de conflitos com católicos e outros.

  • Os casos de agressores são: 27% vizinhos, 5% professores, 6% pai ou mãe (4% mães) e 2,24% empregadores;
  • Os casos de vítimas são: 17% crianças e adolescentes, 12% LGBT, 11% idosos, 9% deficientes, sendo 21% brancos e 35% negros.

É um perfil que atinge a vida cotidiana, a relações parentais, de vizinhança e o ambiente escolar.

No geral não escapa do ambiente nacional ao olhar-se o quadro da violência extrema. É uma violência racista, misógina e homofóbica (RMH).

 

Comentários analíticos adicionais: teologia e comunicação

É importante, localizados os contextos geral e religioso, evitar uma caricatura dos “evangélicos” como em si violentos e violadores de direitos. Mas principalmente identificar um o crescimento de uma religiosidade em uma sociedade que tem problemas estruturais de violência e que mantém uma história racista, misógina e homofóbica. Os religiosos não inventaram a violência, mas crescer em um contexto que praticamente naturaliza a violência por Racismo[3], Homofobia e Misoginia (RMH), como se fosse uma cultura, coloca em cheque os pragmatismos de pregações que visam o crescimento de adeptos admitindo suas visões de mundo e preconceitos.

É nessa mesma sociedade em que cresce a intolerância religiosa, que também se pode anotar que 87% da população são favoráveis a redução idade penal. Onde também alcançam altos índices de audiência os programas de TV e de Rádio de viés policialesco pautados pelo horror e exposição do crime – que incitam o uso da força como “solução” da violência.

Um dado significativo que se soma aos processos é o poder de comunicação, em aparatos televisivos e radiofônicos de cristãos que só reiteram as pregações prenhes do RHM que terminam por incitar a violência.

O que se pode iluminar com isso é que as tendências teológicas pragmáticas vão se somar aos contextos de desigualdade e violência, reforçando estruturas e índices que mantêm ou acentuam a violação dos Direitos Humanos das minorias, religiosas ou não (o próprio conservadorismo).

Para resumir de forma provocadora a questão teológica, poderia se dizer que o crescimento religioso tem se constituído por aqueles que se proclamam os legítimos identificadores do mal. Em resumo os identificadores dos diabos e dos seus sinais. As teologias sobre o diabo e as suas peripécias, formuladas por tradição oral ou por escritos e divulgadas nos templos em pregações e em atos de exorcismo passam a ser o conteúdo apaixonado da mensagem messiânica. É óbvio que em primeiro plano esse discurso ilumina aos “evangélicos”, mas no universo cristão isso não é novidade e nem exclusividade histórica.

Fica a pergunta: se os legítimos identificadores do “diabo” atuam sem criticar o racismo, a homofobia e a misoginia, é surpresa que encontrem as manifestações das pessoas sujeitas desses contextos como encarnações do mal?

Está posto um desafio: afinal quem é o diabo e quem encarna o mal? Enfrentar esse debate passa a ser vital para a paz e o diálogo inter-religioso. Sabendo-se que esse não é um tema exclusivo dos cristãos e que também culturalmente, no Brasil, é um assunto que permeia o inconsciente coletivo da população em geral.

 

Ações de mitigação em curto prazo

O universo religioso tem se pautado pela afirmação da esperança ao mesmo tempo sem ilusões.

Há esforços múltiplos em um contexto adverso em que o campo de valores coloca em cheque a própria Dignidade Humana. Naturaliza-se como fato a desigualdade, como se uns de nós merecêssemos privilégios, fossemos mais Dignos. A batuta conservadora a reger um concerto de argumentos de mérito justificando as mortes imponderáveis de pessoas consideradas de um nível abaixo da humanidade e do bem viver, efeitos colaterais da afirmação de falsas verdades: do capital, da salvação, da genética, da competição entre fracos e fortes e outras.

Os enfrentamentos são de caráter simbólico, de assistência social, de denúncia das violações de direitos, de incidência por políticas públicas…

Não é um universo fácil de trabalho, sonhos e esperanças movem poucos por muitos. Pois não devemos deixar de registrar a gravidade do enfraquecimento da sustentabilidade das organizações baseadas na fé e de outras da sociedade civil defensoras dos Direitos Humanos na sua integralidade (DH) – pela redução drástica de apoio financeiro internacional, pela redução grave de recursos públicos nacionais e pela continuada criminalização de quem defende os DH.

1)      Demonstrações de vínculos entre membros de uma comunidade internacional religiosa interessada na vida e na paz, que aumentam a legitimidade dos atores nacionais;

2)      Manifestações simbólicas conjuntas de diferentes religiões ajudam a agregar campos de atores pela afirmação dos direitos humanos – a exemplo de celebrações, de caminhadas e de manifestos. Sempre que possível incluindo evangélicos e preferencialmente pentecostais;

3)      Atos concretos de solidariedade in loco, como missões de observação, celebrações junto aos atingidos em seus territórios, celebrações junto com as vítimas, atos públicos místicos com atores da sociedade civil;

4)      Criação de redes de proteção religiosa para as vítimas – a exemplo das redes públicas de atendimento à mulher;

5)      Proclamações de denúncias junto ao Estado, diálogos e acompanhamento do atendimento de casos;

6)      Campanhas focadas em problemas concretos – a exemplo da Campanha da Fraternidade Ecumênica;

7)      Promoção de debates e reflexões para a formação sobre a realidade, multiplicação de ativistas pela paz, tematicamente orientados pela história e por perspectivas teológicas que respeitem a diversidade espiritual e religiosa;

8)      Ativismo público nas redes sociais;

 

 

[1] Dados reunidos do Censo 2010 feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Os dados até 2015 foram do Ministério da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – disque 100 e, principalmente, do Relatório sobre Intolerância Religiosa no Brasil feito por: Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, Movimento Inter-Religioso e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Mimeo). Sobre as mortes indígenas são dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e sobre mortes no campo são dados da Comissão Pastoral da terra (CPT), ambos CIMI e CPT são organismos católicos.

[2]Registro entre aspas por que o universo chamado Evangélico é muito grande e inclui uma diversidade que aqui não cabe descrever. Desse modo tento evitar generalizações injustas querendo ao menos apontar um campo popular, não-católico e de maioria de comportamento pentecostal, mais compatível com os registro genéricos dos dados .

[3] O racismo no Brasil tem o rosto negro e se expressa nas aversões à cor da pele, o que acaba em determinados contexto por abarcar indígenas vítimas de toda a forma de preconceito e agressão.

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