A primeira de cem: aluna do Transcidadania conclui estudos no primeiro semestre do programa

Por Valmir Costa

Nesta primeira semana de agosto, estudantes do programa Transcidadania retornaram às aulas no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja), exceto Amanda Marfree, 30 anos a primeira, entre cem alunos e alunas trans, a concluir o ensino médio pelo programa.
 
O curso para jovens e adultos, com duração de dois anos, só durou um semestre porque ela parou os estudos quando estava no 3º ano do antigo 2º grau. Fazia o curso de pedagogia, também conhecido como magistério. Isso em 2002, no Instituto Educacional Clélia Nanci, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde nasceu. “Sou papa-goiaba”, brinca, referindo-se à forma como é chamado o fluminense, diferenciando-se do carioca, nascido na capital.
 
É fácil saber o porquê dela ter abandonado a escola. “Eu queria ser travesti e sei que seria discriminada”, conta. Aos 17 anos, ela começava a aceitar sua identidade de gênero. Porém, de forma gradativa. Passou a usar peças femininas, como calças de lycra, por exemplo. De dia, era gay. À noite, se travestia. No último ano do curso, estagiava com crianças. Isso só aumentava o preconceito. “Na época, não havia essa tolerância como se tem hoje. A diretora da escola era homofóbica. Os alunos do grêmio queriam me zoar”.
 
Todos queriam que ela tomasse “jeito de homem”. “Passei a usar barba, mesmo querendo ser mulher, mas tinha que ser homem. Nem gay eu poderia dizer que era”. Segundo ela, seria mais fácil ter se assumido como gay, mas não tinha como. “Eu me sinto mulher. Sou mulher!”, afirma. Ela não se lembra de quando decidiu assumir sua identidade feminina em definitivo. “Foi um processo com vários fatores. Social, familiar…”, diz.
 
Essa descoberta da sexualidade, com a identidade de gênero, passa pelo fetiche do homem em usar a travesti como objeto sexual. Para Amanda, ser travesti era fazer prostituição. Assim, começou a fazer programa aos 18 ou 19 anos. Saía de São Gonçalo. Passava algumas horas em um hotel em Copacabana. Atendia os clientes por meio de anúncio. Era uma necessidade econômica e de desejo. Era impulsão de adolescente. “Queria ganhar dinheiro e me divertir. Era a realidade de eu ser mulher e ainda ganhar dinheiro por isso”. Foi fácil? Não!
 
Para sua transformação feminina, ela contou com o apoio de uma amiga travesti. Kely Marfree virou sua madrinha, de quem ela adotou o sobrenome, substituindo o “Gomes Machado” da família. Enquanto se transformava, seu rendimento escolar só caía. Reprovou em 2002. Desestimulada com aquele ambiente hostil, não mais voltou à escola. Procurou outras paragens. Conheceu uma cafetina, que a agenciou. “Em 2005 fui para a Itália. Rodei várias cidades, mas morei em Perugia”, conta. Esta cidade italiana é conhecida pelo tráfico de travestis e transexuais, além de atrair essas pessoas para a prostituição.
 
O desfecho desta história não fugiu do script de muitas transexuais e travestis. Em outubro de 2007, ela foi apreendida pela polícia italiana. Ficou presa, apesar de não se dizer assim. “Lá, a lei diz que há um acolhimento de estrangeiros ilegais. Mas há portões com grades”, observa. Amanda ficou na ala com outras travestis e transexuais. Após esse período de reclusão, foi deportada para São Paulo.
 
Nunca havia pisado em solo paulistano. Sua chegada aconteceu desta forma traumática. Amanda nunca fez planos para morar em São Paulo. Desejava voltar para a casa da mãe, em São Gonçalo. Porém, endividada com a cafetina, que a ameaçava, e sem dinheiro, decidiu ficar por aqui. Há dois anos, mora no bairro de Itaquera, em uma moradia que lhe custa R$ 500 de aluguel.
Alunos e alunas no Espaço Cultural Cambuci.
Alunos e alunas no Espaço Cultural Cambuci.
 
Por intermédio de uma amiga, que frequentava o Centro de Referência da Diversidade (CRD), vinculado à Secretaria Municipal de Assistência Social, Amanda chegou ao Transcidadania. Ela se inscreveu em dezembro de 2014. Em 29 de janeiro deste ano, após o lançamento do programa, assinou o acordo de participação.
 
Retornar à sala de aula não foi fácil. Sentiu-se insegura. Diferente dos demais alunos e alunas, que fazem o ensino fundamental pela Secretaria Municipal de Educação, Amanda teve que ir para a rede estadual, pois a municipal não oferece o ensino médio. Matriculou-se na Escola Estadual Padre Antão, no bairro da Penha. “No início, tive medo, pois o colégio era heteronormativo. Pense numa mulher gorda como eu numa turma de 50 alunos!”, brinca.
 
Mas não foi como ela imaginava. “Foi tudo maravilhoso! Não passei preconceito não. O único inconveniente era um professor que se afirmava muito. Vivia dizendo que gostava de mulher. Até que um dia debati com ele”. Como personagem da sua própria história e o Transcidadania como pano de fundo, Amanda é uma aluna aplicada. Na turma de ensino de jovens e adultos, recebeu o diploma de honra ao mérito como melhor aluna. Ficou com nota 8 como média geral.
 
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“O Transcidadania me tirou da marginalização completa. Depois do programa, me senti humana, gente, acolhida”.
Quando fala do Transcidadania, compara o programa ao livro “Nosso Lar”, do médium Chico Xavier. O livro retrata o inferno de pessoas que vagam e sofrem numa região chamada ‘umbral’. “O Transcidadania me tirou do umbral, pois me tirou da marginalização completa. Depois do programa, me senti humana, gente, acolhida”, emociona-se.
 
Amanda tinha mais amigas do que amigos em sala de aula. Mas sua relação com os homens mudou. “Os homens começaram a conversar comigo sem ser para sexo”, observa. Aplicada nas atividades do programa, a aluna mudou seu modo de ver o mundo. “A gente (travestis) foi jogada. A cultura marginalizada da travesti é muito ‘uó’. Quando vemos o que são os sonhos humanos, as coisas mudam”, analisa.
 
Apesar de ter concluído o ensino médio, ela não terá moleza. Suas atividades no Transcidadania duram por mais um ano e meio. Desde maio, ela e os demais alunos e alunas participam do curso extracurricular “Direitos Humanos e Cidadania”. A formação, promovida por KOINONIA, acontece até setembro, às terças e quintas, no Centro de Cidadania LGBTArouche.
 
Durante o período de férias escolares, os e as estudantes participaram de várias oficinas, como, por exemplo, de maquiagem, dança,saúde, textos, entre outras. As atividades acontecem até o final deste mês no Centro de Referência de Dança (CRD), no Vale do Anhangabaú, e no Espaço Incubadora de Projetos, no bairro do Cambuci.
 
Além destas atividades, Amanda vai participar do curso preparatório para o Exame Nacional do ensino Médio (Enem), realizado pela UNEafro Brasil– União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora, em um termo de cooperação entre KOINONIA, UNEafro Brasil e Prefeitura de São Paulo para os e as integrantes do Transcidadania. Com a nota do Enem, ela pretende cursar a faculdade de Serviço Social.
 
Posteriormente, serão oferecidos cursos de qualificação profissional. Até lá, a primeira aluna formada no ensino médio pelo Transcidadania vai procurar emprego. “Quero ter a oportunidade de um contrato social. Minha realidade não é ficar na esquina. Eu quero o mundo dos humanos”, desabafa a aluna, que diz que sempre quis ter um trabalho normal. “Só não gosto de faxina!”, gargalha.
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