Esta semana, um crime de ódio contra uma menina de apenas 11 anos deixou perplexos todos aqueles que têm a esperança de ainda experimentarem a liberdade plena de culto no Brasil. “Tenho medo de morrer”, disse a vítima, que, acompanhada de sua avó, continuou a ser hostilizada a caminho do IML, onde faria o exame de corpo de delito. O que pode fazer com que alguém se sinta autorizado a discriminar, ofender e agredir o outro publicamente? Que espécie de respaldo imaginário leva criminosos a investirem até mesmo contra uma criança, certos de que feri-la – ou quem sabe acabar com sua vida – é a coisa certa a fazer?
A convicção dos agressores se fia em uma lei diferente daquela que rege a nós brasileiros, vivendo num Estado laico. É a partir de uma leitura distorcida do sagrado que conseguem enxergar uma estranha pertinência no desejo de acabar com o diferente. Certos de que são o povo eleito e de que o adversário imaginário é o mal absoluto, atiram, infelizmente, não a primeira, mas uma das muitas pedras – essa, por acaso, chegou ao conhecimento público, contrariando a regra quando o assunto é ódio religioso.
São fiéis seguidores de gente que se diz evangélica (conheço muitos que seguem o evangelho e não agem assim), mas gastam muito tempo pensando em “apedrejar” quem identificam como pecadores ou pessoas que cultivam o mal. Convencidos de que são o povo escolhido, querem separar em vida e na história o “joio do trigo”. Mas isso não seria antievangélico?
Na raiz da separação entre um “nós” de eleitos e um “eles” daqueles que devem ser eliminados, qualquer semelhança com o Estado Islâmico, ‘apartaides’ e fascismos é mera realidade! A tomada do Congresso pelas pautas desse grupo que surfa na popularidade reacionária do conservadorismo deve ser combatida, com democracia e direitos para toda gente.
No mesmo Congresso, por esses tenebrosos dias de junho, vai sendo aprovada a lei da menoridade penal, ou como dizem, da redução da maioridade penal. E ainda corre entre comissões uma proposta esdrúxula de Estatuto da Liberdade Religiosa cheio de jabutis para proselitismo entre povos indígenas, fim de punições para agressões religiosas na mídia e outras coisas exóticas que confundem liberdade como liberação para que se faça a imposição sobre o outro, para pregações de negação de outra fé, enfim para a oficialização dos eleitos apedrejadores. Melhor seria o que os movimentos contra a intolerância pedem: um Plano Nacional de Superação da Intolerância, com medidas claras do Executivo, do que arremedos em “Estatuto sem liberdade”.
Com a expansão do conservadorismo religioso, refletido também no legislativo, a suposta lei que legitima a pedrada aproxima-se perigosamente das leis de verdade. E aí muito mais pedras virão.
A situação é grave e conclama a reflexão de toda a sociedade e seus poderes. No ano passado, o disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, registrou 149 denúncias de discriminação baseada na religião. De acordo com IBGE, são quase 600 mil afro-religiosos no Brasil. Um estudo feito pela PUC-Rio mostrou que, somente no estado, de 840 terreiros, 430 foram discriminados. Mesmo que o Rio de Janeiro tenha sido o líder em intolerância no ano passado, a comparação indica que muitos crimes não são notificados.
Vendo esses dados nota-se uma conivência cultural histórica.Afinal parece que paira uma sombra de dúvida naquelas pessoas que, crentes ou não-crentes, se perguntam: será mesmo que não cultuam e cultivam o diabo esses fiéis da umbanda, do candomblé e de outros cultos de origem afro-brasileira? O silêncio e a ocultação, o olhar indiferente para essa minoria de branco e de contas, ou guias, estranhas no pescoço, gente que mantém essas “crendices” dos negros, ou gente “feiticeira”, não é privilégio dos fundamentalistas da distorção bíblica e antievangélica. Atitudes que persistem mesmo em face às negações e manifestações sobre a fé daqueles de religião de matriz africana, que afirmam não conhecer diabo e não cultivarem o mal!
Pois, outra característica que chama atenção é a recorrência com que os atos de intolerância acontecem em espaços públicos, indicando que os agressores não temem praticar seus crimes, talvez por imaginarem que estão acima das leis. O pior é que o limite entre delírio coletivo e realidade vai se estreitando e pode até vir a se desfazer. Com a expansão do conservadorismo religioso, refletido também no legislativo, a suposta lei que legitima a pedrada aproxima-se perigosamente das leis de verdade. E aí muito mais pedras virão.
Uma pedrada numa criança pode mudar tudo? Oxalá sim, por Oxalá, por Deus, por Jeová, por Jesus, por que nome tiver o divino e pelos que querem a paz, a liberdade e a democracia e direitos para toda gente.