Sacrifício: oferenda solene à divindade
De produtos da terra e animais.
(Novo Dicionário Aurélio, 2ª Ed. 1986)
Se no Brasil aquilo que as pessoas têm em mente quando falam de sacrifício fosse igual à definição do dicionário Aurélio, não teríamos problemas em afirmar que, sim, fazemos Sacrifícios no candomblé.
Mas a realidade não é essa, ela é cheia de preconceitos e de imagens imprecisas, e, porque não dizer impuras. O que compõe a maioria das imagens dos que falam que o candomblé faz sacrifícios são mortes de animais realizadas sem cuidados, carcaças jogadas em desperdício… E isso não é nossa realidade. Com essas imagens de sacrifício nós não pactuamos.
Começamos por afirmar, contra algumas expectativas que o que fazemos em nossas casas de candomblé não é sacrifício, com s minúsculo. Assim nos diferenciamos: Sacrifício sim, sacrifício não.
Não é sacrifício, é oferenda, é troca, é nascer para o orixá ou inquice ou vodunce ou ancestral a cada dia, é banquete partilhado com os deuses, é reencontro de novo o tempo todo. Quando a gente nasce, nasce envolto naquele caldo, na placenta, molhado de sangue, nascemos assim. O ejé é esse reencontro, então não tem sacrifício, é comida partilhada com os encantados e o resto é preconceito. O sacrifício nada mais é que tirar algo de alguém e o que o candomblé faz não é tirar nada de ninguém. Nosso Sacrifício é uma oferenda, uma atitude milenar. Deve-se usar o termo oferenda no sentido de comunhão, de oferecimento, de nguzo ou modupé ou axé, de alimento aos orixás, inquices, vodunces e ancestrais, e de obrigação no sentido de um compromisso de uma responsabilidade assumida de fazer algo… Se for assim que entende não importa a palavra, importa o coração, a dedicação o cuidado de oferecer: chama-se Sacrifício ou oferenda, mas não sacrifício, de minúsculas idéias e com o sentido de morte pela morte, palavra sem a comunhão e a atitude comum de amor ao sagrado que está presente em nossas ofertas.
É impossível não se abalar com o racismo hipócrita e descarado que permeia a forma pela qual os brasileiros cultos e esclarecidos tratam de assuntos os quais nunca se deram ao trabalho de saber o que são. É muito fácil declarar que não vivemos há três mil anos numa tribo africana para sacrificar o sacrifício de animais nos rituais de umbanda e candomblé, como fez o Movimento Gaúcho de Defesa dos Animais. O difícil é defender os direitos dos animais contra grandes pecuaristas e granjeiros que os mantêm na engorda sem o espaço mínimo e entupidos de hormônios para que estejam rapidamente prontos para morrerem eletrocutados, ou à cacetada, antes da comercialização… Foi partindo de pressupostos como esses, de atraso cultural, que se justificou a ocupação colonial da África, ETA, preconceito! E para os que são de fora do candomblé é bom lembrar que nós todos comemos animais, não só o povo do candomblé, e do jeito que são tratados e abatidos pela indústria, eles é que são sacrificados! E a sociedade nem se incomoda com isso!… Aos vegetarianos, é bom lembrar que as plantas também têm vida, ninguém entre nós humanos costuma comer outros seres vivos – as plantas, por exemplo, são consumidas depois de arrancadas do pé.
Todas as religiões fazem suas oferendas. Todas têm seu simbolismo, sua liturgia . os padres da igreja católica na borá da eucaristia oferecem a hóstia como o corpo de Cristo e o vinho como o sangue: isso não significa dizer literalmente que se está comendo o corpo de Cristo ou bebendo o sangue de Cristo: está se fazendo uma forma de celebração e de comemoração. Mas quando chega à nossa religião, o candomblé, tudo é visto negativamente, como religião do diabo, coisa diabólica, magia negra. Em outras oportunidades já falamos sob re isso, mas é bom frisar: no candomblé não se cultua o diabo, isso é coisa que os cristãos inventaram… Enfim: quando veem no que fazemos sacrifícios ao invés de oferendas, atrás desses olhos se escondem, em maneiras de pensar e falar, o preconceito e a discriminação racial.
Nós compreendemos que o que fazemos não é um ato isolado de provocar a morte, é uma celebração, é uma oferenda, como todas as religiões têm, com o acréscimo que é a partilha: uma comunhão posterior à oferenda. Ora, comer um animal não é sinônimo de assassinato: está relaciona do a rituais sagrados, onde o candomblé deverá ampliar, acumular e distribuir a força vital e sagrada que é o modupé ou axé ou nguzo.
A palavra sacrifício é extremamente pejorativa e não inventada por nós. Foi a visão dos estrangeiros, dos europeus , a comparação que fizeram com outras religiões, que fez com que eles chamassem nossos rituais de sacrifícios.
É bom reforçar que: chamar o que fazemos de sacrifício de animais nada mais é que a pura intolerância religiosa. As pessoas não estão nem um pouco preocupadas se os animais estão morrendo ou sendo sacrificados. Querem ser contra a religiosidade de matriz africana. O que chamam de sacrifício não é o que fazemos. Nossa prática deveria ser chamada por eles de oferenda porque a ideia de sacrifício, como é usada pelos outros para falar de nós, é uma ideia muito negativa, ela deprecia nossa fé. É importante conscientizar as pessoas do que é a oferenda que fazemos e o que ela significa. Ela é necessária como uma forma de celebração, como troca de energia entre as pessoas e os orixás, inquices, vodunces e ancestrais. É uma demonstração de fé, de respeito e de obediência. O processo de oferenda envolve valores que antecedem o próprio momento da oferenda, desde a preparação que já é um ritual, um respeito, até o final da celebração. Um fator fundamental na nossa cultura de origens africanas é a partilha, a comunhão dos alimentos com os orixás, inquices, vodunces, e ancestrais, é uma celebração fraterna. Essa ideia de comunhão e partilha que para nós é fundamental, deve ser reforçada e divulgada.
Para respeitar nossas tradições essa palavra sacrifício deveria ser trocada no vocabulário geral por oferenda, tanto para o candomblé quanto para a umbanda, ou então lembrar a todos o que é para nós Sacrifício (com letra maiúscula) e tudo que nos envolve. Os animais estão presentes em nossos cultos em função da comunhão. Os chamados “santos”, os ancestrais e nós nos alimentamos de três fontes; animal, vegetal e mineral. O animal entra nessa comunhão divina com o ser humano quando oferecem alimentos à divindade e depois todos os integrantes da comunidade partilham do mesmo banquete. Essa é a função da oferenda que fazemos e que muitos traduziram preconceituosamente como sacrifício e não como Sacrifício!
Depois de tantos anos de preconceitos e racismo contra nossas religiões talvez fosse melhor abolir o nome, evitar explicações e chamar sempre de oferenda! Mas para nós importa menos o nome e sim o que vai no coração de quem faz a oferta, e saber que todos ritual foi feito por amor e por vontade de garantir a vida de todos para todos.
Terreiros participantes deste debate
1. Centro Caboclo Eru A. Jiquiriça
2. Centro Caboclo Oxossi Talami
3. Centro do Caboclo Sultão das Matas
4. Centro Espírita Caboclo Itapoã
5. Centro de Umbanda Aldeia do Caboclo Tupinambá
6. Ilê Axé Layê Lubo
7. Ilê Axé Abassá de Ogum
8. Ilê Axé Araka Togun
9. Ilê Axé Ayrá Oumin
10. Ilê Axé Ayrá (Ilha de Mar Grande)
11. Ilê Axé Ewê
12. Ilê Axé Ibá Ogum
13. Ilê Axé Iyá Nassô Oká
14. Ilê Axé Jagun
15. Ilê Axé Jagun Bomin
16. Ilê Axé Jualê Oumiladê
17. Ilê Axé Ibá Ogum
18. Ilê Axé Iyá Nasso Oká
19. Ilê Axé Iyá Omin Lônan
20. Ilê Axé Jfokan
21. Ilê Axé Jifulú
22. Ilê Axé Jitolobi
23.Ilê Axé Jualê Oumiladê
24. Ilê Axé Kalé Bokum
25. Ilê Axé Alaketu
26. Ilê Axé Maa Asé Ni Odé
27. Ilê Axé Obá Adé Nilá
28. Ilê Axé Obá Ninjó Omin
29. Ilê Axé Obá Nirê
30. Ilê Axé Obá Tony
31. Ilê Axé Ode Tomingwá
32. Ilê Axé Olufan Anancidê Omin
33. Ilê Axé Omin (RJ)
34. Ilê Axé Omin Funkó
35. Ilê Axé Omin Ogunté
36. Ilê Axé Omin J’Obá
37. Ilê Axé Omin Lonan
38. Ilê Axé Omin Nijá
39. Ilê Axé Omindê
40. Ilé Axé Oxossi Talami
41. Ilê Axé Oxumaré
42. ilê Axé oyá
43. Ilê Axé Oyá Ossun
44. Ilé Axé oyá Tunjá
45. Ilê Axé Oyó Bomin
46. Ilê Axé Taoyá loni
47. Ilê Axé Pondamin Bominfá
48. Ilê Yá Yalodeidê
49. Ilê Obá Fangy
50. Ilê Omo Keta Posu Beta
51. Manso Dandalungua Cocuazenza
52. Nzo Sassaganzuá Mono Guiamaze
53. Terreiro Caboclo Catimboiá
54. Terreiro da Casa Branca
55. Terreiro de Jauá
56. Terreiro de Oxalá
57. Terreiro de Oxossi Mutalambô
58. Terreiro de Oxum (Caminho da Areia)
59. Terreiro do Bogun / Omin Nitá*
60. Terreiro do Caboclo Catimborá
Texto originalmente publicado no livro “Candomblé: Diálogos fraternos para superar a intolerância religiosa”, organizado por Rafael Soares de Oliveira.