Presente! – repetia em coro o grupo reunido no memorial às vítimas do regime militar, no Cemitério de Ricardo de Albuquerque (RJ), cada vez que era pronunciado o nome de um dos mortos e desaparecidos. Ali, além de amigos e familiares, ativistas dos direitos humanos e líderes religiosos de pelo menos 10 denominações realizavam um ato em homenagem a todos que tiveram suas trajetórias interrompidas pelos métodos mais radicais do autoritarismo. O monumento onde acontecia a celebração foi construído no local em que foram encontrados os restos mortais de 14 militantes de esquerda, misturados às ossadas de mais de 2.000 indigentes.
Como tortura, desaparecimento e execução sumária não se extinguiram com o fim da ditadura, a celebração também contou com a presença de familiares e amigos de vítimas de chacinas e da violência do Estado no período conhecido no Brasil como redemocratização. Em sua terceira edição, o ato – que ocorre desde 2012 por iniciativa de um conjunto de entidades da sociedade civil – tem tido uma adesão cada vez mais expressiva de organizações, movimentos e pessoas ligados aos torturados, desaparecidos e mortos dos dias atuais.
Injustiça que se atualiza entre negros e jovens
Ana Paula Gomes de Oliveira é uma dessas mães que desde maio desse ano tem lutado por justiça. Ela teve seu filho, Jonathan de Oliveira Lima, 19, assassinado por PMs da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos, Zona Norte do Rio.
Mesmo com o policial que cometeu o crime indiciado por homicídio, devendo ir a júri popular, Ana Paula diz temer que os responsáveis pela morte de seu filho saiam impunes. “Não dar em nada é o meu maior medo, porque eu e todas as mães que estão aqui perdemos pedaços de nós que nunca mais serão repostos. A única esperança que me move é a de justiça. Até mesmo para que casos como o do Jonathan não continuem a se repetir”, afirma emocionada.
Ramires Maranhão do Valle está entre os desaparecidos políticos do regime militar que teve os restos mortais localizados no cemitério de Ricardo de Albuquerque. Seu sobrinho, Ramirez Beltrão do Vale, participou do ato e comentou sobre a importância de se manter viva a memória da luta pela democracia no Brasil.
“Celebrações como estas são importantes porque ainda não conhecemos a história do meu tio, por exemplo. E o autoritarismo e a
violência empregados pelo Estado repercutem até hoje. Talvez se tivéssemos feito justiça nos casos das pessoas que desapareceram, como meu tio e tantos outros, não tivéssemos esses relatos das mães que hoje têm seus filhos torturados e mortos pelo Estado. Se não conseguirmos avançar agora, daqui a 30 ou 40 anos vamos precisar de uma nova Comissão da Verdade para julgar os crimes dos dias atuais”, diz.
Religiões por direitos, misericórdia e esperança
As lideranças religiosas sublinharam o seu compromisso com o conforto espiritual de familiares e amigos das vítimas, mas também com o reforço a todas as práticas cidadãs que venham a contribuir para a superação das injustiças que estão na origem das perdas.
A Pastora Luterana Lusmarina Garcia ressaltou que embora os avanços obtidos no campo dos direitos sejam significativos, ainda cabem paralelos entre o contexto atual e o do regime militar. “São situações de violência que requerem decisões políticas correspondentes. A ditadura desapareceu com muitas pessoas e muitos dos que cometeram esses crimes não foram responsabilizados. Hoje temos casos de violência muito drásticas nas favelas, com jovens majoritariamente negros sendo mortos. Então não deixa de haver certa correspondência no modo de pensar e agir. As religiões acompanham o sofrimento do povo e trazem ânimo para as pessoas continuarem na luta. Por isso, nós religiosos, devemos encorajar as pessoas, como cidadãs, a fazerem os enfrentamentos necessários”, comenta.
Depois de lembrar os crimes contra os direitos humanos nas diferentes épocas, os participantes falaram de suas esperanças para o futuro e fizeram votos para um Brasil mais justo. O ato inter-religioso se encerrou com uma chuva de pétalas de rosas sobre o monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos de ontem, que passa a simbolizar o desejo de que nem hoje e nem nunca mais aconteça.