Marcelo Barros
O falecimento, no dia 02 de maio, aos 91 anos de idade, de Dom Tomás Balduino, Bispo Emérito da Diocese de Goiás, deixou o país e suas diferentes comunidades religiosas entristecidas pela perda de um de seus mais notáveis defensores dos Direitos dos setores mais vulneráveis da população empobrecida e excluída da sociedade brasileira, notadamente os indígenas e os camponeses. Criador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional do Bispos e grande promotor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Dom Tomás notabilizou-se por sua defesa intransigente da reforma agrária e dos direitos da população indígena a suas terras originais, à manutenção de sua cultura e sua dignidade enquanto seres humanos. Em seu ministério episcopal soube aliar seu compromisso evangélico às grandes causas do povo empobrecido do país. Mais do que um dignatario da Igreja Católica Romana, a quem servia com lealdade, foi um bispo do povo, um teólogo orgânico cujas reflexões e compromissos sempre ultrapassavam as fronteiras da comunidade religiosa para levantar as bandeiras da dignidade e dos direitos a que todos, especialmente os mais vulnerabilizados da sociedade, devem usufruir numa sociedade verdadeiramente democrática. A teologia que conformava seu munus episcopal jamais foi restrita aos estreitos limites do que-fazer eclesiástico. Foi, de fato e de direito, uma theologia publica voltada para o bem-estar dos “pequeninos de Deus” numa sociedade marcada pela desigualdade e pela injustiça.
Tomamos a liberdade de publicar neste espaço o belo texto de Marcelo Barros sobre sua vida e ministério intitulado: “Dom Tomás Balduino: Doutor da Fé”
(FOTO: Wildes Barbosa | O Popular)
Dom Tomás Balduíno, doutor da fé
Marcelo Barros
Nosso profeta foi para o céu. Essa pode ter sido a reação espontânea de muitos irmãos e irmãs, companheiros de caminho de Dom Tomás Balduíno que, ao longo da vida, sentiram-se ajudados e estimulados por ele a seguir Jesus Cristo e a testemunhar no mundo o projeto divino de justiça e paz. Principalmente os índios e lavradores, povo da predileção do coração de Dom Tomás, podem hoje sentir-se órfãos pela partida de alguém que a eles serviu desde a juventude até o seu último suspiro aos quase 92 anos. Entretanto, tantos eles como nós que convivemos mais profundamente, ao longo dos anos, com esse verdadeiro pastor da Igreja, choramos a saudade de sua presença visível, mas nos consolamos por tantos exemplos e ensinamentos que ele nos deixa como grande profeta de uma Igreja renovada e renovadora a serviço de um mundo mais justo e de uma humanidade mais irmã.
Tive a graça de Deus de conviver com ele e, por um bom tempo, morar na mesma casa. Fui seu amigo e assessor desde 1977 até agora, quando a sua partida nos separou. Ainda há poucos dias, conversávamos sobre como apoiar a renovação da Igreja proposta pelo papa Francisco e ajudar as Igrejas locais a assumí-la. Assim como Dom Hélder Câmara, no Brasil, Dom Oscar Romero, em El Salvador e Dom Samuel Ruiz, no sul do México, Dom Tomás soube revitalizar a missão do bispo como profeta da Palavra de Deus para o mundo. Para os oprimidos do mundo, ele foi realmente, como escreveu o profeta João no Apocalipse: “irmão e companheiro nas tribulações e no testemunho do reino” (Ap 1, 9).
Exatamente, por essa sua compreensão da fé e do ministério episcopal, Dom Tomás tornou-se mesmo para não crentes testemunha autorizada de Jesus, ilustre doutor da fé e de uma espiritualidade libertadora. Ele nunca restringiu sua missão ao âmbito da Igreja. Soube sempre ser uma presença de irmão e companheiro solidário com as lutas sociais do povo, aliado incondicional dos lavradores e dos índios na sua legítima e evangélica luta pela terra e por uma vida digna. Com 85 anos, Dom Tomás participou comigo da delegação brasileira que se reuniu na Bolívia com militantes sociais e intelectuais de todo o mundo para recordar a figura de Che Guevara no 40º aniversário de sua morte em Valle Grande, Bolívia. Um ano depois, viajamos juntos a Caracas, como observadores internacionais das eleições presidenciais da Venezuela. E até o fim de sua vida, sua palavra profética foi sempre de apoio claro ao caminho bolivariano que aquele povo irmão, com tanto esforço e incompreensões, empreende. Sua voz forte e clara ressoou em todos os continentes. A todos ele deixa um testemunho de coragem, confiança no futuro e opção pela justiça e pela paz.
A tendência natural é que as pessoas sejam mais abertas e livres quando jovens. À medida que a idade vai chegando, se tornam menos livres e mais conservadoras. É verdade que, hoje, em certos ambientes do clero e de algumas congregações, encontramos jovens mais conservadores e preocupados com a lei do que a geração mais velha. Mas, isso não é natural. Tem razões e explicações mais estratégicas e menos espirituais. Não tem nada a ver com o que Deus fez acontecer na vida de profetas como Dom Hélder Câmara e Dr. Alceu Amoroso Lima ou do papa bom João XXIII que, quanto mais idosos, mais se abriram interiormente. Eles souberam renovar-se permanentemente. Quanto mais idosos, mais se tornaram homens livres e testemunhas da liberdade do Espírito. Dom Tomás percorreu esse processo espiritual e humano. Nesse caminho, agora, do céu, ele nos convida, a prosseguir e a aprofundar sempre a mística do reino de Deus e vivê-la no compromisso social e político junto com os empobrecidos e pequeninos desse mundo. A essas alturas, Tomás já ouviu de Jesus, seu mestre, a palavra esperada: “Muito bem, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21). Dom Tomás, doutor da fé e profeta desses tempos conturbados, rogai por nós.