Encontro Ecumênico em SP – reportagem

Suzel Tunes

Um dia de koinonia

O programa Ecumenismo, Diálogo e Formação promove encontro ecumênico para reflexir sobre “o que é ser protestante no Brasil, hoje.

 “Ecumenismo é diálogo”. Foi com esta afirmação tão simples quanto incompreendida que o sociólogo Leonildo Silveira, professor da Universidade Metodista de São Paulo, abriu a primeira palestra do dia 15 de setembro, reservado às reflexões sobre identidade protestante e ecumenismo. Cerca de 70 pessoas trocaram o sol do sábado pelos bancos da Paróquia da Santíssima Trindade, da Igreja Episcopal Anglicana, em São Paulo, dispostas a dialogar sobre “O que é ser protestante no Brasil, hoje”, tema proposto por KOINONIA, patrocinadora do encontro. “Nosso objetivo foi criar um espaço não institucional para discutir temas que nos desafiam”, explicou Anivaldo Padilha, secretário de planejamento e cooperação da entidade.

Para falar de campo religioso no contexto brasileiro, o professor Leonildo, pastor da Igreja Presbiteriana Independente, usou uma metáfora que não podia ser mais brasileira. “Imagine o campo religioso como um campo de futebol”, sugeriu ele. “O campeonato é organizado pelas federações e a partida segue regras fixas, que controlam a ação de cada jogador, devidamente uniformizado. Então, os 11 jogadores de um lado e os 11 jogadores do outro resolvem todos jogar sem camisa. Depois, cada um resolve chutar no gol que está mais próximo de si e começa a driblar os companheiros de seu próprio time. Então, a própria arquibancada entra em campo e, como uma bola parece não ser suficiente para todos, cada jogador entra com sua própria bola. Da mesma maneira, há um processo de desformatação daquilo que sempre se fez ou que sempre pensou que se fizesse no campo religioso.”

Segundo Leonildo, quando se olha para o atual campo religioso brasileiro vê-se uma situação de desmantelamento que o modelo tradicional da sociologia da religião, de matriz weberiana, não está dando conta de analisar. “Esse modelo estuda o campo religioso a partir da idéia de igreja e seita – igreja como a instituição dominante e a seita como reação à ordem estabelecida. A complexidade nos desafia a pensar além desse modelo tradicional. Há igrejas se comportando como seitas e seitas como igrejas”, afirmou o professor. Ele destacou, também, que os papéis clássicos de sacerdote, profeta e mágico também não são pré-estabelecidos. Hoje, os “atores religiosos” são jogados dentro da perspectiva de mercado, num ambiente de intensa competitividade. O campo religioso transformou-se num campo de batalha. E no campo de batalha nem sempre há espaço para negociação.

Leonildo destacou pesquisas do IBGE e do Datafolha que apontam para um crescente declínio numérico da Igreja Católica, especialmente a partir dos anos 90.  Nos últimos três anos, essa tendência de queda diminuiu, graças ao movimento carismático. Ao mesmo tempo, a última década viu um grande crescimento dos evangélicos, sobretudo pentecostais. “Protestantes históricos, ecumênicos e liberais não crescem. Os que crescem são os que não querem o diálogo”, alertou ele. “Não há espaço para religiões que não adotam técnicas agressivas de marketing”, alerta o professor.

Um dado merece atenção: a retomada do crescimento dos protestantes históricos, graças à pentecostalização interna e ao mimetismo no campo do neo-pentecostalismo. Crescem porque imitam o “competidor”.  Ocorre atualmente uma homogeneização religiosa, que se traduz pela cultura gospel, pelas “práticas mágicas” e pela ênfase nos resultados.  Mas se esse fenômeno pode ser avaliado de maneira negativa, também pode apontar caminhos de esperança ao movimento ecumênico. O nivelamento cultural, associado à diversidade de denominações instalada dentro das próprias famílias pode abrir espaço ao diálogo religioso a partir das bases.

 

Semper reformanda

 

O segundo palestrante do encontro foi Zwinglio M. Dias, pastor da Igreja Presbiteriana Unida e professor no programa de Ciências da Religião na Universidade de Juiz de Fora, convidado a falar sobre Protestantismo Brasileiro. Fazendo jus ao seu nome de batismo (uma homenagem ao reformador suíço do século XVI), ele discorreu sobre alguns princípios fundamentais da Reforma Protestante. Destacou, sobretudo, a necessidade de se resgatar a experiência de reinvenção da Igreja Cristã no processo de Reforma do século XVI. “Para herdeiros de Lutero e Calvino, a Igreja é mais do que uma instituição, é um evento, ou seja, tem uma ação histórica, a partir de pessoas que respondem à vocação do Espírito”, afirmou o pastor. Ele explicou que o histórico lema Ecclesia reformata, semper reformanda (Igreja reformada, sempre se reformando) ainda é válido em nossos dias: deve haver um processo permanente de Reforma.

Segundo Zwinglio, que é também editor da revista Tempo e Presença, de KOINONIA, os reformadores trouxeram uma nova concepção de Igreja. Na visão pré-Reforma, a Igreja era um meio de salvação por excelência e uma controladora da ação de Deus, construída sob uma estrutura hierárquica sem lugar para um Deus pessoal. Nessa estrutura, o clero estava acima dos leigos e abaixo da divindade, numa escala hierárquica contínua. “Lutero e Calvino vão descobrir que não existe essa continuidade humano-divino. Deus é o totalmente outro que não podemos conhecer”.

Essa nova concepção de fé trouxe profundas alterações no modo de ver a Igreja. “Lutero mudou a Igreja de vizinha no espaço para profeta no tempo”, afirmou o pastor. Isso significa que, na eclesiologia reformada, Deus atua na história e a Igreja só cumpre seu papel quando responde com dignidade ao processo redentor.  O pastor destaca que o “espírito protestante”, expressão consagrada pelo teólogo alemão Paul Tillich, é a manifestação do protesto divino e humano contra toda pretensão de absoluto. Assim, outra característica marcante da igreja reformada é a não atribuição de caráter sagrado a nenhuma estrutura eclesiástica – uma condição fundamental para o diálogo ecumênico.

Segundo Zwinglio, as estruturas eclesiásticas asfixiam e escondem o princípio protestante. “É claro que nem mesmo os reformadores escaparam das armadilhas da instituição”, lembrou ele. Calvino transforma-se no governador de Genebra, por exemplo. Portanto, para que o protestantismo continue sendo um grito de liberdade, é preciso que as estruturas eclesiásticas transformem-se permanentemente, defende o pastor. É preciso, ainda, que consideremos a fragilidade da obra humana, enxergando as pessoas que existem para além das instituições. “O enorme desafio é olhar para a vida com o olhar de Jesus. Vendo a borboleta na larva e o irmão no próximo e no distante”.

 

Pluralidade de berço

 

O filósofo Atílio Iulianelli, professor da Universidade Estácio de Sá e um dos assessores da Koinionia, responsável pelo Programa Trabalhadores Rurais e Direitos, fez uma análise da conjuntura ecumênica. Católico, Atílio trouxe à lembrança as origens protestantes do ecumenismo. “O movimento ecumênico nasceu depois que missionários protestantes na Ásia começaram a repensar o conceito de missão – que é de Deus, não da Igreja. Eles perceberam que, desunidos, não estavam conseguindo mostrar a proposta do Reino”, disse ele. Segundo Atílio, o ecumenismo tem como proposta eclesiológica a convivência dos diferentes  – e, assim, resgata a tradição das origens do cristianismo primitivo, que se estabeleceu em comunidades bem distintas umas das outras. “O Novo Testamento mostra que o cristianismo nasce plural, ou seja, nasce com a proposta de que a pluralidade é necessária para a construção da unidade”, afirmou o filósofo. Com o passar do tempo, o cristianismo vai se subordinar às estruturas políticas. O ecumenismo do século XIX surge, então, alimentando o sonho de resgatar a proposta original do Cristianismo primitivo.

Atílio também relembrou a história dos principais órgãos ecumênicos. “O Conselho Mundial de Igrejas foi criado em 1948 após duas guerras, em meio a um processo de destruição das relações humanas. Assim, o CMI foi uma tentativa de reconstrução das sociedades, não uma afirmação de identidades eclesiásticas”, disse ele.  Ele explicou que o CMI surgiu fundamentado em três dimensões: busca da unidade dos cristãos, busca da unidade pela paz e busca da unidade com aqueles que possuem diferentes formas de crença (inclusive não religiosas) “Foi uma proposta que se espalhou pela juventude, com foco no serviço”.

Na década de 80, na América Latina, novas instituições surgiram , como, por exemplo, os conselhos CLAI (Conselho Latino-Americano de Igrejas) e CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), no Brasil, para responder às necessidades dos diálogos e de cooperação institucionais. Na década de 90 veio a crise desse modelo, por causa do crescimento do trânsito religioso. Segundo Atílio, essa é uma situação que exige novas perguntas e novas respostas: Todas as propostas têm que ser de massa? Podemos ter outras propostas? O que pode favorecer o movimento ecumênico numa situação plural? “Hoje, ressalta-se a importância da afirmação da alteridade, ou seja, de se perceber o outro não como ameaça. A práxis do cristianismo é de inclusão do diferente, mas nunca numa relação de subordinação”, destacou. “O ecumenismo nasceu no protestantismo para afirmar a proposta de pluralidade num mundo de gente dividida. Precisamos lembrar que se trata de uma relação entre pessoas, não instituições”.

 

Muitas perguntas e uma resposta

 

Antes da hora do almoço, ainda sobrou tempo para o público presente levantar perguntas sobre as palestras apresentadas e discutir em grupo questões instigantes como: “se ecumenismo é ´coisa de protestante´, por que o protestantismo atual é tão anti-ecumênico?”. E cada nova questão apresentada levantava novas dúvidas… Até que veio o momento da refeição, preparada por um grupo de mulheres da Igreja Presbiteriana Independente. A boa comida – gostosa como só comida preparada com carinho – desfrutada com prazer na companhia de amigos, começou a sugerir uma resposta que seria confirmada algumas horas depois, no momento da Eucaristia…

Corpo alimentado, veio o período da tarde destinado a alimentar a alma com experiências concretas de amor cristão, vivenciadas pelas comunidades da própria paróquia anglicana, anfitriã do evento, e também da Igreja Presbiteriana da Vila Proletária, no Rio de Janeiro. 

Os momentos finais do encontro foram destinados à avaliação do trabalho e da própria metodologia do evento: ainda havia poucas respostas a contabilizar, mas um desejo unânime de realização de novos encontros semelhantes. E então veio a Ceia do Senhor, celebrada com pão, vinho e música. Com a partilha, confirmava-se a intuição de que todas as perguntas convergem para uma única resposta: o espírito de koinonia (comunhão) que conduziu todo o dia de estudos. Tal como a teoria nasce da vivência e da prática, as respostas aos dilemas atuais do movimento ecumênico deverão nascer da convivência de irmãos e irmãs.

 

 

Novas formas de ser Igreja

Experiências pastorais inovadoras

 

CREDO (Inês de França Bento)

Creio em Ti

Na força dos pobres

Na audácia dos poetas

Na ousadia dos profetas

Na inspiração dos artistas

Na alegria das crianças

No respeito às diferenças

No pão para toda mesa

No vinho para toda tristeza

Na esperança de recomeçar

Na beleza do gesto solidário

Na justiça para toda opressão

Na compaixão diante da dor

No amor, dádiva divino-humana. Amém.

 

Esta profissão de fé, lida em uníssono durante o Encontro Ecumênico do dia 15 de setembro, concretiza-se nas duas experiências eclesiais que foram compartilhadas no período da tarde: as práticas de inclusão da  Paróquia Anglicana da Santíssima Trindade, no centro de São Paulo, e da Igreja Presbiteriana Unida na Vila Proletária da Penha, localizada no coração do Complexo do Alemão, uma das favelas que mais tem ocupado o noticiário sobre violência no Rio de Janeiro.

 

A Paróquia da Santíssima Trindade está inserida numa região antiga e bastante deteriorada da cidade de São Paulo. Vivem na região central da cidade antigos moradores e muitas pessoas marginalizadas: gente sem casa, usuários de drogas, travestis. A Paróquia liderada pelo Rev. Arthur Cavalcante está, pouco a pouco, abrindo suas portas para esses grupos solitários e ignorados. A forma como a Igreja está lidando com a questão da sexualidade é um exemplo dessa abertura ao diálogo. “É impossível negar essa questão dentro da igreja”, diz o pastor.

 

No dia 1º de dezembro de 2006, Dia Mundial de Luta contra a Aids, a Paróquia realizou uma Vigília Ecumênica para pessoas que vivem com o vírus HIV, com apoio de KOINONIA e do GAPA, Grupo de Apoio aos Portadores de Aids -São Paulo. Representantes da sociedade, como os integrantes do GAPA, foram convidados a participar da elaboração da liturgia. O ato foi dividido em duas partes, a primeira marcada por pronunciamentos das organizações governamentais e não governamentais, entidades ecumênicas e comunidades religiosas. “A segunda parte ficou reservada para uma liturgia que iniciava com lamentações, mas apontava para uma esperança libertadora, cheia de vida e pastoral”. E no dia 15 de setembro, logo após o Encontro Ecumênico promovido por KOINONIA, a programação da Paróquia seguiria com um Ato Ecumênico pela Paz, contra o Preconceito.  O Ato pela Paz, explica, o pastor, é uma resposta e um alerta à toda a sociedade sobre o aumento dos atos de  violência e de intolerância de todos os tipos: religiosas, sociais, etno-culturais, relativas à orientação sexual, portadores de patologias específicas, entre outras.

 

Outra experiência inovadora, nascida da sensibilidade da Igreja para com a população do bairro, foi a abertura das portas do templo à entrada de pessoas conduzindo seus animais de estimação. O Rev. Arthur explica que existem no bairro muitas pessoas solitárias, que têm no bichinho de estimação um companheiro constante e fiel, que os acompanham em todos os lugares – e agora, também na Igreja que, assim, aproxima-se das necessidades concretas dos moradores da cidade.

 

Igreja cheia de sacerdotes

Zwinglio Dias trouxe a experiência da Igreja Presbiteriana Unida da Vila Proletária da Penha, no Rio de Janeiro, onde pastoreou por  20 anos (de  1978 a 1998), antes de ir para a Universidade de Juiz de Fora. Atualmente, Zwinglio é pastor emérito da comunidade, que acompanha em visitas periódicas.

 

Ele conta que, desde o início de seu trabalho lá, teve a preocupação em despertar o protagonismo da comunidade, inserida na favela do morro da Penha. Convidado a participar da associação de moradores, Zwinglio recusou. “Eu não moro aqui, vocês moram”, disse ele na ocasião. “Quem faz a missão são os membros da comunidade. A Igreja é formada por um montão de sacerdotes”. Por isso, o trabalho realizado na Vila Proletária nunca se baseou numa política de resultados a curto prazo. A igreja se preparou durante 10 anos de estudos antes que os primeiros trabalhos sociais ganhassem corpo.

 

Convidada a decidir suas prioridades, a igreja escolheu prestar assistência às crianças da comunidade. Assim surgiu um Programa de Educação que oferece apoio para o ingresso e a permanência na escola pública, por meio de atividades de alfabetização e  reforço escolar. Logo viriam o banco de empregos; cursos de cabeleireiro, informática e montagem de computadores; biblioteca comunitária; escola de pais; uma rádio comunitária de pequeno alcance . “É uma rádio que não interfere nos vôos. São apenas 15 km de raio”, fez questão de esclarecer o pastor.

 

Atualmente, o Instituto de Educação e Pesquisa João Calvino, constituído como entidade civil, atende cerca de 500 pessoas e conta com apoio do governo do estado.

 

Se na atuação comunitária a Igreja se constituiu como protagonista, não é diferente na expressão da fé. “Liturgia a gente aprende com o povo”, afirma Zwinglio.  Ele analisa que, hoje, há uma grande demanda por manifestações emotivas e individualistas, que atendem aos interesses do mercado religioso. Por outro lado, é possível resgatar os valores tradicionais do protestantismo, sem depreciar a experiência religiosa do povo. O resultado dessa mistura é uma expressão litúrgica racional, contextualizada, comunitária e plena de vida e alegria. Segundo o pastor, os membros de sua igreja recuperaram suas raízes e estão construindo uma nova identidade, a partir da reflexão, do estudo e da vivência. “Nossos cultos são solenes, não chatos”.

Suzel Tunes é jornalista.

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