KOINONIA e Mariana Criola

Manoela Vianna

A partir desse ano o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola irá prestar serviços à KOINONIA. O Centro irá acompanhar as questões jurídicas das comunidades quilombolas atendidas pelo Programa Egbé Territórios Negros.

Na entrevista abaixo, Ana Cláudia Diogo Tavares apresenta a entidade, seus objetivos e fala do movimento de democratização do direito brasileiro. Ana Cláudia é advogada, mestre pela Universidade Federal Fluminense em Sociologia do Direito e professora universitária.

KOINONIA: Quais são os principais objetivos do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola?

Ana Cláudia Diogo Tavares: Prestar assessoria jurídica às organizações e movimentos sociais populares, visando contribuir com a luta para a conquista de direitos daqueles que têm, historicamente, seus direitos humanos negados pelos poderes públicos. Entendemos ser necessário para isso a atuação profissional comprometida com a socialização do conhecimento jurídico e com o fortalecimento das organizações de trabalhadores.

KOINONIA: Como surgiu a entidade? E por quem ela é formada?

Ana Cláudia Diogo Tavares: A entidade foi formada em dezembro de 2006 por um grupo de advogadas e estudantes que já atuavam em conjunto com algumas organizações populares de forma coletiva e voluntária, por entenderem a necessidade de assessoria jurídica apresentada por tais movimentos, em especial o MST e alguns movimentos de luta por moradia e trabalho.

Esse grupo de advogadas e estudantes se encontrava no Rio de Janeiro, a partir da atuação como participantes de uma Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP. A RENAP foi criada em 1995 como uma articulação de advogados que objetivavam prestar apoio jurídico aos movimentos sociais, em especial aos que lutavam por terra e reforma agrária. Mas, no Rio de Janeiro, a integração de advogados nessa Rede se deu a partir de 1997.

Desde então passaram pela Rede no Rio diversos advogados, estudantes, professores e defensores, que através de encontros periódicos, contribuíam com a elaboração de defesas técnico-jurídicas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, no estado do Rio de Janeiro.

Entretanto, o caráter voluntário da atuação e a ausência de estruturas de escritório dificultavam a organização e o acompanhamento de processos, o registro da memória da atuação judicial, bem como a formação e ampliação de um quadro de assessores que pudesse, permanentemente, atuar nas demandas judiciais das organizações populares que apresentavam suas necessidades do tipo de apoio prestado pelos integrantes da RENAP no Rio de Janeiro.

Tendo em vista essas dificuldades, em reunião estadual da RENAP realizada em 2003, começou a ser discutida a idéia de buscar espaço e estrutura, além de, para isso, criar uma associação de assessoria jurídica popular, com o intuito de tornar mais qualificado o acompanhamento dos processos.

A partir daí, percebemos um processo de amadurecimento e de consolidação do coletivo de assessoria jurídica no Rio de Janeiro que resolveu, no final de dezembro de 2006, criar o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, com apoio dos movimentos e organizações populares assessorados.

KOINONIA: O nome do Centro é uma homenagem a uma escrava que se chamava Mariana Criola. Por que vocês fizeram essa homenagem?

Ana Cláudia Diogo Tavares: Fizemos essa homenagem porque consideramos que Mariana Criola representa a luta de mulheres pela liberdade do seu povo. Ela foi uma mulher negra escravizada, na época em que a escravidão era permitida pela legislação brasileira, que liderou, junto a Manoel Congo, uma rebelião de escravos na região sul do Estado do Rio de Janeiro.

Conhecida como a rainha do quilombo, foi presa com Manoel Congo. Enquanto ele foi condenado à morte, ela foi absolvida, utilizando-se da legislação que entendia que mulher era inimputável, ou seja, que ela havia sido manipulada, pois não poderia liderar um ato de rebeldia.

KOINONIA: Mariana Criola e a RENAP são exemplos de movimentos que lutam pela democratização do direito. Há de fato um movimento articulado entre entidades como essas? Se há, já é possível citar mudanças influenciadas pela atuação desse movimento?

Ana Cláudia Diogo Tavares: A RENAP é uma articulação de entidades e de pessoas que buscam democratizar a sociedade em conjunto com movimentos populares, como o MST, movimentos que lutam pela moradia, pela reforma urbana e pelo direito ao trabalho. Entendemos a Mariana Criola como uma das entidades que participam da RENAP.

No início de 2006, o MST no Rio de Janeiro buscou articular outras entidades, como Sindicatos de Servidores da Justiça Federal e Estadual, magistrados e parlamentares, a fim de promover uma campanha denominada “Campanha pela Democratização do Poder Judiciário”, a partir da percepção de que o Judiciário é um dos Poderes Públicos que dificulta a conquista de direitos pelos grupos marginalizados da sociedade.

O intuito dessa Campanha é discutir com a sociedade o Judiciário que temos; e os obstáculos que a atuação de alguns juízes traz para a efetivação de direitos; e o Judiciário que queremos, parceiro na conquista dos direitos dos grupos marginalizados na sociedade. Estamos em processo de retomada dessa Campanha.

Em âmbito nacional, não temos estudos precisos que relacionem mudanças no acesso aos direitos e a atuação da RENAP ou de movimentos semelhantes. O que temos são impressões extraídas da vivência de enfrentamentos no âmbito judicial.

Acreditamos que algumas mudanças são influenciadas pela atuação conjunta de advogados e movimentos populares, como uma maior cautela dos juízes antes de conceder liminares para a reintegração de proprietários na posse e uma preocupação no modo como suas ordens serão cumpridas, a fim de evitar massacres. 

KOINONIA: Como será o trabalho da entidade com KOINONIA?

Ana Cláudia Diogo Tavares: O trabalho com KOINONIA, que já iniciamos, será de acompanhamento das demandas jurídicas das comunidades de remanescentes de quilombos assessoradas por KOINONIA. Para fortalecer essas comunidades para que alcancem a titulação de suas terras e conquistem os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição e nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos.

A partir do levantamento dos problemas e demandas das comunidades, realizado junto com KOINONIA e com as próprias comunidades, pretendemos contribuir com a busca de soluções desses problemas quando se referem à negação de direitos fundamentais.

Para isso, a socialização dos conhecimentos jurídicos e da percepção sobre o funcionamento dos Poder Judiciário é uma das frentes de nossa atuação junto com KOINONIA e com as comunidades.

O acompanhamento dos procedimentos administrativos do INCRA para a titulação de áreas de remanescentes de quilombos é outra atividade que subsidiará o trabalho já realizado por KOINONIA.

KOINONIA: Muitos processos de regularização fundiária de comunidades quilombolas estão caminhando para o âmbito do judiciário. Como vocês analisam essa situação?

Ana Cláudia Diogo Tavares: O encaminhamento de procedimentos de regularização fundiária para o âmbito do Judiciário é algo esperado, pois a regularização fundiária promovida por tais procedimentos confronta-se com o ideário liberal de direito de propriedade absoluto e com interesses econômicos sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades.

Esses recursos Judiciais vêm criando obstáculos ou dificultando também a realização da Reforma Agrária. Decisões judiciais paralisam procedimentos administrativos desapropriatórios de propriedades comprovadamente improdutivas.

No caso das comunidades quilombolas no Rio de Janeiro, os proprietários ou grileiros de terras ingressam com ações de reintegração de posse contra famílias das comunidades que são obrigadas a se defenderem no âmbito judicial.

Em especial a comunidade da Ilha da Marambaia sentiu a necessidade de procurar outros apoios jurídicos que levaram o processo de regularização fundiária ao Judiciário, a fim de impedir as reintegrações arbitrárias, impedir a continuidade das violações aos direitos dos membros dessa comunidade. 

Por isso, as organizações populares vêm sentindo a necessidade de debater esse Judiciário.

KOINONIA: Mariana Crioula é uma das entidades que faz parte da Campanha Marambaia Livre! Pela titulação das terras quilombolas da Ilha da Marambaia, assim como KOINONIA. Como está a situação da comunidade da Ilha da Marambaia?

Ana Cláudia Diogo Tavares: A situação da comunidade da Ilha da Marambaia continua bastante complicada. [os quilombolas] Continuam sem acesso à luz elétrica, ainda sofrem a limitação do direito de ir e vir, e, conseqüentemente, dificuldades para estudar.

A comunidade, através de sua organização e articulações com diversas entidades que apóiam as suas lutas, conquistou uma decisão judicial na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público. Essa ação reconhece o direitos dos quilombolas de permanecerem na Ilha e ver o retorno de seus familiares expulsos, além de dar continuidade ao seu modo tradicional de vida.

Tal decisão, porém, pode ser reformada na 2ª instância. Por isso, decidimos na Campanha realizar uma campanha de cartas aos desembargadores responsáveis pelo julgamento dos recursos da União e do INCRA.

Outra ação judicial, desta vez de autoria da comunidade, nos demonstra o interesse na União em desrespeitar o direito dos quilombolas. Trata-se do Mandado de Segurança que a comunidade interpôs contra o ato do presidente nacional do INCRA e do superintende regional do INCRA/RJ.

O Incra ilegalmente publicou uma portaria tornando insubsistente a portaria nº 15 que publicava o RTID [Relatório Técnico de Identificação e Delimitação], etapa necessária ao prosseguimento do procedimento de titulação da área. Diante da vitória da comunidade na 1º instância, que conseguiu liminar que revalidou a portaria nº 15, a União Federal ingressou com um processo de suspensão de segurança.

Tal processo, resquício da ditadura militar brasileira, é considerado por diversos juristas como inconstitucional, na medida em que torna ineficaz uma garantia constitucional do cidadão, o mandado de segurança, em face de atos de autoridades públicas que violem direitos.

Com a tese de que a continuidade do procedimento consiste em ameaça de grave lesão à ordem pública e à segurança nacional, [a União] conseguiram uma decisão favorável da presidente do Tribunal Regional da 1ª Região para suspender a decisão da juíza. Outra campanha de cartas pedindo a reconsideração dessa decisão foi lançada pelas entidades que integram a Campanha.

KOINONIA: Vocês gostariam de ressaltar algum aspecto do trabalho de vocês ?

Ana Cláudia Diogo Tavares: Atuamos numa perspectiva de transformação da sociedade injusta em que vivemos. Para alcançar essa transformação, pensamos ser necessária a articulação entre os diversos movimentos e organizações que atuam na defesa dos direitos humanos. E acreditamos que o trabalho de assessoria jurídica popular se organiza e só tem sentido em função da organização e das lutas dos trabalhadores urbanos e rurais para a conquista de direitos fundamentais.

Mais informações sobre o Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola:

mariana.criola@gmail.com

Tel:(0xx21) 2224-6713, ramal 23.

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