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Caçandoca - SP

História:

"O povoado de Ubatuba foi fundado por volta de 1610, quando o governo de Portugal concedeu várias sesmarias a colonos. Em pouco tempo surgiram fazendas produtoras de açúcar que usavam trabalho escravo. A população do povoado cresceu e tornou-se Vila em 1637. Documentos do século 18 afirmam que ali se produzia e comercializava açúcar, cachaça, fumo e anis. Além de fazendas exportadoras, havia alguns sítios familiares, cuja produção principal era para o consumo interno. Até o início do século 19, os principais proprietários eram portugueses. A partir de 1820, houve um novo aumento populacional em Ubatuba. Vieram europeus de outras origens, principalmente franceses, que começaram a invadir violentamente as terras de caiçaras, destruindo as roças e ameaçando suas vidas. Como tinham recursos para adquirir trabalhadores escravizados, a população de origem africana cresceu bastante no período. Em menos de duas décadas, entre 1818 e 1836, o número de escravizados triplicou, passando de 722 para 2.329.
 
Naquela época, a cultura de café para exportação se espalhou pelo Vale do Paraíba e o porto de Ubatuba, por onde a produção era exportada, tornou-se uma região muito movimentada. A partir de 1830, Ubatuba passou a ser um porto de entrada clandestina de “africanos novos” destinados ao sudeste do país. Mais tarde, com a construção das estradas de ferro que ligavam Santos a Jundiaí, e São Paulo ao Rio de Janeiro, o porto de Ubatuba perdeu importância.
 
Entre 1850 até meados do século 20, a população de Ubatuba cresceu pouco. A maior parte dos habitantes era formada por caiçaras e descendentes de escravizados. Alguns tinham recebido doações de terra de fazendeiros, principalmente daqueles que tinham tido filhos com mulheres escravizadas. Mas, os que não foram beneficiados, tiveram que obter um pedaço de terra por outros meios. Ou arrendaram terras, ou tornaram-se agregados, ou passaram a viver de favor em fazendas, trocando seu trabalho por um lugar para viver."
 
Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

 

Origem do nome: A origem do nome está relacionada a antiga Fazenda Caçandoca

Processo:
  - Certificada

Período aproximado de formação: Os quilombolas da Caçandoca identificam seu território pelas localidades que faziam parte de uma fazenda escravocrata que, no século 19, produzia café e cana-de-açúcar. Comprada por José Antunes de Sá em 1858, a fazenda abrangia as localidades de Praia do Pulso, Caçandoca e Caçandoquinha, Bairro Alto, Saco da Raposa, São Lourenço, Saco do Morcego, Saco da Banana e Praia do Simão. O quilombola Antônio dos Santos diz que seu bisavô, João Benedito, era escravizado na Fazenda Caçandoca quando José Antunes de Sá comprou as terras. Os três filhos do fazendeiro se estabeleceram em três núcleos administrativos da mesma fazenda: Caçandoca, Saco da Raposa e Saco da Banana, cada um com uma sede e um engenho d’água. Na época, o fazendeiro e seus filhos tiveram filhos com mulheres escravizadas. Era comum identificá-los pelo nome de suas mães porque, em geral, a paternidade não era assumida formalmente pelos fazendeiros, que inclusive venderam alguns deles. Com a Abolição, alguns ex-escravizados foram embora, enquanto outros permaneceram como posseiros, donos do seu próprio trabalho. Os que ficaram se juntaram a ex-escravizados que vieram de outras fazendas, bem como aos poucos filhos e netos de José Antunes de Sá reconhecidos oficialmente como “legítimos”. A comunidade foi sendo formada a partir desses núcleos familiares. Sete famílias descendem de uniões entre homens brancos e mulheres negras, das quais cinco uniões envolvem filhos do fazendeiro José Antunes de Sá. Um outro ramo familiar descende de dois escravizados, Gabriel de Oliveira dos Santos e Rosária Vitória. Houve também mulheres indígenas que se integraram ao grupo. Cada uma das localidades de Caçandoca sediou um pequeno núcleo de casas. São fortes as lembranças dos pais, avós e bisavós sobre o sofrimento da escravidão, e de como seus ancestrais viviam no território. Por mais que brancos e negros compartilhassem a simplicidade da mesma vida camponesa, o preconceito racial do grupo branco em relação ao grupo negro e a desigualdade entre eles se mantiveram. Até hoje os hábitos, as tradições e as festas da comunidade da Caçandoca guardam características da vida camponesa e caiçara, resultado do encontro de várias tradições culturais, não só africanas, mas também indígenas e católicas, e de sua adaptação ao ambiente litorâneo. O café e a cana-de-açúcar continuaram sendo colhidos por mais algumas décadas após a Abolição, mas aos poucos as plantações de banana foram tomando seu lugar. A banana passou a ser o principal produto vendido pela comunidade, e assim se mantém até hoje. Além da produção para a venda, as famílias sobreviviam com uma agricultura para consumo próprio, complementada pela pesca e coleta de mariscos. Com o passar do tempo, as diferentes localidades da Caçandoca foram se tornando “bairros rurais”: Caçandoca, Saco da Raposa, São Lourenço, Saco da Banana e Praia do Simão. As famílias de cada um desses bairros compartilhavam uma área de floresta e administravam em conjunto as roças, mas cada uma dispunha de seu próprio pedaço, ou posse de terra. Ao longo dos anos, os grupos trocavam produtos e favores entre si e realizavam mutirões, que na Cançandoca também eram chamados “pitirão” e “ajutório”. Quando o trabalho terminava, o beneficiado pelo mutirão comemorava com os participantes oferecendo comida e bebida. Era a chamada “função”, que celebrava o trabalho realizado coletivamente. Na função, dançavam em um estilo conhecido como “bate-pé”. O transporte de pessoas e mercadorias por mar durou até o início da década de 1970, quando a BR-101 foi construída e o comércio pelos barcos desapareceu. O transporte marítimo, especialmente o das canoas pequenas, dependia das condições do mar. Até então, os tratamentos de saúde eram feitos, majoritariamente, na própria área, com recursos naturais e de acordo com os conhecimentos tradicionais. Os partos eram realizados em casa, com o auxílio de parteiras. Em todos os momentos da história do grupo, uma grande parte dos homens adultos e moços ia embora por alguns meses para trabalhar em fazendas de banana no litoral sul do estado de São Paulo,ou em grandes barcos pesqueiros que viajavam pela região sul da costa brasileira. Antes de partir, os homens deixavam os terrenos já preparados para as roças e, enquanto estavam fora, iam mandando dinheiro para suas famílias. Atualmente, grande parte das famílias quilombolas de Caçandoca vive do turismo, oferecendo serviço de guia, trabalhando em quiosques e vendendo artesanatos, além de trabalhar nos condomínios da região. Alguns ainda praticam a pesca artesanal e mantém roças de banana e mandioca. Além disso, a comunidade tem se dedicado bastante a explorar o potencial ecoturístico da região. Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Município / Localização: Ubatuba

Número de famílias: 50

Estágio no processo e regularização territorial: Certidão expedida pela Fundação Cultural Palmares. Data de publicação no D.O.U.: 25/05/2005. Portaria no Diário Oficial da União (Fonte: INCRA)

Condições sociais: A tradicional festa do Divino Espírito Santo sempre foi uma das mais importantes celebrações na Caçandoca, por mobilizar e integrar todo o município durante aproximadamente 20 dias no mês de junho. Cada núcleo familiar, de uma região do quilombo, compartilhava com a população do seu entorno um grande conjunto de tradições e costumes, e era através dos barcos e da fumaça de fogueiras que comunicavam entre si a ocorrência das festas. Tradicionalmente, os quilombolas também realizam outras festas religiosas, como as de Santana, São Benedito, São João, Santo Antônio, São Pedro (padroeiro dos pescadores), São Bom Jesus, Nossa Senhora do Carmo e São Gonçalo. Danças de matriz afro-brasileira, como o Moçambique, faziam parte das festas de santo, especialmente as dedicadas a santos negros. Sebastiana Gabriel dos Santos, do Saco da Raposa, relembra: (...) a minha avó fazia festa de São Benedito, Santo Antônio, Bom Jesus, fazia festa e fazia bate-pé. Era festa de povo, de vir gente de todos os lugares: Praia Grande, Maranduba, Tabatinga, Sertão da Quina, Saco da Banana, Lagoa, Caçandoca. Casa de assoalho, grande. Tinha que fazer aqueles panelões de comida, matava bastante porco, pato, galinha. À noite era o baile. Os músicos vinham de Maranduba – violão, pandeiro, violino, cavaquinho. Além de suas tradições religiosas, os quilombolas guardam saberes preciosos. O conhecimento tradicional das plantas e dos fenômenos da natureza – os ventos, as marés, os movimentos da lua e dos peixes – influenciam as atividades produtivas e são sinais de sua grande intimidade com o território. Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Condições econômicas: Na década de 1960, os moradores de Caçandoca começaram a perder o domínio sobre as terras. Há relatos de que algumas famílias da região da Praia do Pulso foram enganadas por um parente, que as fez assinar recibos dizendo que serviriam para registrar suas terras, mas, na verdade, eram contratos de venda. Apenas uma das famílias originais do lugar, a de Bernardino do Prado e Maria dos Santos, conseguiu manter seu terreno na Praia do Pulso, onde hoje existe o condomínio de luxo no qual muitos dos quilombolas trabalham. A construção da rodovia Rio-Santos (BR-101), na década de 1970, trouxe graves consequências para os moradores da Caçandoca, acentuando o processo de espólio de suas terras. Com a facilidade de acesso e a consequente valorização das terras do litoral norte do estado de São Paulo, não só os moradores de Caçandoca mas a maior parte da população caiçara da região perdeu suas terras para especuladores imobiliários. Os compradores, chamados de capangas pelos quilombolas, andavam a cavalo e armados, abordando as pessoas nas suas casas e roças e ameaçando-as pelo caminho. Intimidavam os moradores afirmando que trariam outros homens ao local (o que realmente aconteceu), insinuando que havia perigo para a integridade física das meninas e moças da comunidade. Com medo, algumas famílias saíram logo de suas posses, aconselhando as outras a fazer o mesmo para não serem agredidas pelos invasores. Na região da praia e do sertão da Caçandoca, os antigos moradores contam que foram forçados a abandonar a área sob ameaças mais explícitas de violência contra suas famílias. Muitos mudaram-se para as regiões periféricas de Ubatuba e cidades vizinhas como Caraguatatuba, Santos e São Vicente. Nas localidades de Saco da Raposa, Saco da Banana e Praia do Simão, também houve uma forte pressão para que os moradores vendessem seus terrenos. Muitos foram enganados. Sem saber ler, assinaram documentos, confiando nos “compradores” que chegavam de forma intimidadora, declarando serem os legítimos proprietários da terra. Mesmo assim, 17 famílias continuaram morando lá. Em 1974, quando o trecho da BR-101 em Ubatuba estava sendo concluído, várias famílias foram obrigadas a abandonar suas terras. As pessoas recebiam prazo de uma semana para se mudarem, e então eram expulsas, e suas casas imediatamente destruídas, na maioria das vezes queimadas. Naquele ano, uma empresa da área imobiliária se apropriou de 414 hectares na praia e no sertão da Caçandoca, mantendo a área rigorosamente cercada e vigiada, mesmo sem construir nada no local. O registro mais antigo da escritura apresentada pela empresa é referente à aquisição de uma área de 210 hectares conhecida como Fazenda Maranduba, primeiro por um casal, em 1928, e mais tarde pela Empresa Territorial Agrícola Maranduba, em 1941. Por fim, em 1976, um agente imobiliário teria comprado a fazenda, responsabilizando- se pela retirada completa dos habitantes tradicionais da área. No mesmo dia, vendeu-a para a empresa imobiliária. Mesmo sem nenhum documento referente à Caçandoca,entre 1974 e 1985 a empresa destruiu e proibiu a permanência de ranchos para barcos nas praias da Caçandoca e Caçandoquinha, impedindo a pesca dos quilombolas. Bloqueou a passagem de automóveis entre o condomínio e a Praia da Caçandoca, prejudicando o transporte de mercadorias e de pessoas doentes. Também em 1974, a empresa tentou demolir a igreja localizada na Praia da Caçandoca, considerada patrimônio coletivo da comunidade quilombola. Os moradores se mobilizaram e conseguiram evitar a demolição. Anos mais tarde, no processo que moveu contra os quilombolas, a empresa chegou a declarar em juízo que havia ela mesma construído a igreja. Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Assuntos: O direito dos quilombolas da Caçandoca a suas terras tradicionais é confirmado pela posse contínua e longínqua, transmitida através das gerações por herança. Existem vários documentos que registram e comprovam a ligação ancestral dos atuais membros da comunidade com seu território. São registros de imóveis, certidões de nascimento, casamento e de óbito que citam o bairro da Caçandoca como local de moradia de geração a geração. A própria comunidade reuniu, ao longo dos anos, algumas certidões obtidas no Cartório de Registro de Imóveis de Ubatuba que indicam várias transações de compra, venda e transmissão de herança de posses ao longo do tempo. A maior parte desses registros se originaram de escrituras particulares. Os registros paroquiais mais antigos a que se tem acesso são de 1855. Falam de “uma sorte de terras na praia da Cassandoca contendo mil braças pouco mais ou menos” em nome do fazendeiro que vendeu a “Fazenda Cassandoca” para José Antunes de Sá, além da escritura de compra e venda de 1858. Daí surgiram todos os inventários e registros de compra e venda que comprovam documentalmente a relação histórica da comunidade quilombola com seu território. Os documentos informam que a fazenda, na época, compreendia a praia e o sertão da Caçandoca e a praia da Caçandoquinha. Também informava que ao sul fazia divisa com outra terra de José Antunes de Sá. O inventário da esposa do fazendeiro, datado de 1879, confirma a presença das famílias quilombolas na terra. Além disso, um Cadastro de Imóvel Rural realizado em 1978 pelo INCRA comprova o pagamento do Imposto Territorial Rural e a posse do Sítio Saco da Raposa, no bairro da Caçandoca, por Benedito Gabriel dos Santos e irmãos desde 1923. Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Referência:

Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Redação: Andrea Olideira, Daniela Yabeta

Pesquisas: Andrea Oliveira, Daniela Yabeta

Mais informações: Na década de 1980, membros da comunidade começaram a enviar cartas pedindo ajuda ao prefeito de Ubatuba. Em nome da história do povoado, denunciaram a invasão de suas terras pela empresa, citando as arbitrariedades cometidas por seus capangas. Enviaram também cartas ao governador, solicitando a devolução de suas terras. Escreveram também a um deputado estadual, pedindo que intercedesse junto ao governador. Pediram, ainda, a presença da polícia com urgência no local. Além disso, começaram a pesquisar a respeito de seus direitos e a reunir documentos comprovando sua condição de herdeiros legítimos. Desde então, houve muitos processos judiciais, ocorrências policiais e recursos administrativos envolvendo o território da Caçandoca. O recurso da reintegração de posse foi usado várias vezes contra os quilombolas. Quase sempre, os apelos dos membros da comunidade foram julgados improcedentes ou simplesmente desconsiderados. Mesmo assim, uma grande parte do grupo continuou mobilizada, informando-se cada vez mais sobre seus direitos constitucionais à titulação de seu território. Em 1997, ocuparam uma parte da área reivindicada por eles, que estava sob domínio de empresa do ramo imobiliário. Em 1998, a empresa entrou com uma ação de reintegração de posse e ganhou uma liminar que obrigou os quilombolas a abandonarem o local. Nesse mesmo ano, foi fundada a Associação da Comunidade dos Remanescentes do Quilombo da Caçandoca. Através dela, entraram em contato com a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que deu início ao processo de regularização fundiária da área requerida. O Relatório Técnico-Científico (RTC), concluído e publicado no ano 2000, referendou o pleito da comunidade quilombola e identificou a área de seu território em 890 hectares. No ano seguinte, realizaram uma segunda ocupação. Cerca de 30 famílias retornaram para um pequeno terreno perto da estrada que liga Caçandoca à rodovia BR-101. Dessa vez tiveram o apoio do Ministério Público Federal, que solicitou ao juiz de Ubatuba que revogasse a liminar de reintegração de posse concedida à empresa. O juiz atendeu ao pedido, mas depois reconsiderou a decisão liminar em favor da empresa. O Itesp interferiu, conseguindo que o Tribunal de Justiça cassasse a liminar, e não houve reintegração de posse. No mesmo ano, Caçandoca recebeu da Fundação Cultural Palmares a certidão de autorreconhecimento como comunidade remanescente de quilombo, conforme o Decreto Federal 4887/2003. Em junho de 2005, o INCRA publicou o RTID da comunidade e, em dezembro do mesmo ano, a portaria de reconhecimento. Em 2006, a Presidência da República decretou a desapropriação dos 210 hectares da “Fazenda Maranduba”, incluindo outros 200 hectares no território de Caçandoca. O INCRA então ingressou com ação de desapropriação perante a justiça federal de São Paulo. O juiz concedeu o pedido, garantindo assim que os quilombolas pudessem permanecer em suas terras até o encerramento da ação de desapropriação. Essa foi a primeira desapropriação por interesse social que beneficiou uma comunidade de quilombo no país. Atualmente a comunidade está na posse de 410 dos 890 hectares e quando o processo judicial for concluído, a área será titulada em nome da associação. Aguardam, portanto, providências dos governos federal e estadual para finalizar a regularização de suas terras. Coleção Terras de Quilombos: Comunidade Quilombola Caçandoca - INCRA

Verbete atualizado em 26/03/2018


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