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Caveira - RJ

História:

A comunidade Quilombola da Caveira é formada por cerca de 280 famílias. Situada em área rural do município de São Pedro da Aldeia, Região dos Lagos do Rio de Janeiro, que faz limites com os municípios de Cabo Frio, Araruama e Iguaba Grande. A comunidade está localizada no bairro de Botafogo que é marcado pela divisão entre dois municípios: Cabo Frio e São Pedro da Aldeia. 

De acordo com os anciãos e anciães da comunidade (Sr. Genil Silveira, Sr. João Santos, Sr. Francisco dos Santos, Sr. Afonso dos Santos, Dona Aquilina dos Santos, Dona Jovelina Dutra, Dona Maria Silveira, Dona Rosa Silveira, Dona Almerinda dos Santos  e outros/as), as primeiras famílias a ocuparem a região descendem de três homens que foram trabalhar nas lavouras da fazenda no início do século XX. São eles Vítor, Marcelino e Severino (conhecido como Véio Negozinho). O Véio Negozinho foi o primeiro a chegar no local  e trouxe os outros. Ele nasceu no dia da liberdade, 13 de maio de 1888. Naquele tempo a área da Caveira pertencia à Fazenda Campos Novos, uma grande extensão de terras que abrangia vários municípios da Região dos Lagos como Búzios, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia. Era também um grande complexo agrícola que durante as primeiras décadas do século XX continuava a ser um grande abastecedor da cidade do Rio de Janeiro.

A fazenda Campos Novos foi fundada no século XVII pelos jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal ela foi rebatizada de fazenda Del’Rey. Foi arrematada em leilão por Manoel Pereira Gonçalves, no final do século XIX e depois pelo Reverendo Joaquim Gonçalves Porto que foi proprietário da mesma durante a segunda metade do século XIX.  Foi durante a administração deste reverendo que ocorreu na região da Praia Rasa, que também pertencia a Fazenda Campos Novos, o tráfico ilegal de africanos escravizados, liderado pelo traficante José Gonçalves da Silva. Ali eles eram desembarcados e levados para a sede da fazenda para serem distribuídos para outros locais. Com a abolição formal da escravidão, as famílias negras que moravam na fazenda fizeram um acordo para continuarem morando nas terras da fazenda pagando arrendamento aos donos da fazenda. No século XIX as terras da fazenda já estavam bem fragmentadas em fazendas menores.

Em 1919, a fazenda é comprada por Eugenio Honold.  O nome de Eugenio Honold ainda é lembrado pelos mais velhos mencionados acima que se recordam quando eles/elas e seus pais pagavam arrendamento para ele. Arrendamento, neste caso, é um sistema em que a pessoa paga com trabalho para morar nas terras de um fazendeiro. Eugenio Honold deixava a fazenda a cargo de seu filho George Honold, que faleceu em 1949 vítima de um acidente de carro na altura de Tribobó, São Gonçalo. Seu pai faleceu no ano seguinte. Desde a morte de George Honold, as famílias trabalhadoras da Caveira, vivem um tempo de tranqüilidade até que em 1952 o neto de Eugenio, Luiz Honold Reis, transfere a administração da fazenda para Antônio Paterno Castello, o Marquês, que é lembrado com muita tristeza pelos/as mais velhos/as.

O Marquês instaurou na comunidade da Caveira (e em outras localidades da fazenda) um tenso clima de perseguição para que as famílias negras deixassem seus locais de moradia. A intimidação acontecia de várias maneiras como soltar bois e atear fogo nas roças,ameaças de morte pelos jagunços, jagunços andando nus nos quintas das famílias lavradoras, destruição das casas, etc. Mas houve um episódio que marcou a história de luta dos moradores da Caveira, que foi quando numa das tentativas de intimidação, o Marquês impõe regras rígidas no ordenamento do trabalho como marcar horário para uso do banheiro e proibição de fumar o cachimbo. Este último foi o estopim para que eles se organizassem e rejeitassem aquela imposição. Certo dia enquanto estavam no trabalho, ouviram o jipe do marquês se aproximando e num ato de resistência todos começaram a fumar. O Marquês, muito furioso, não queria dar-lhes o recibo. Então eles foram até o escritório que ficava no casarão, sede da Fazenda, e só saíram de lá quando o Marquês lhes entregou o recibo. A partir daquele dia eles se uniram e resolveram pagar o arrendamento em trabalho passando a depositar o valor respectivo, em dinheiro, na conta do Marquês. Foi a partir desse momento que eles resolvem criar a Associação de lavradores de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia.

Foi no quintal da casa de Sílvio que construíram a primeira sede para realizarem suas reuniões. Foi nesse mesmo espaço que aconteceu a primeira experiência escolar dos filhos desses mais velhos, que foram alfabetizados pela professora Glória de quem lembram com muito carinho. Muitos/as deles/as, naquela época, não tiveram oportunidade de estudar, pois tinham de trabalhar para ajudar a seus pais. Foi por causa dessa forma organizada de lutar que, após o golpe de 1964, eles foram perseguidos pelos fazendeiros com a cumplicidade da polícia local e dos órgãos de repressão política da ditadura. Acusados de comunistas e subversivos, muitos tiveram que fugir e viver um tempo escondidos devido às ameaças da polícia. Alguns chegaram a ser presos e torturados pela polícia. Na prisão, eles queriam obrigá-los/las a assinar um documento entregando as suas terras, mas eles/elas resistiram e não assinaram.

As famílias quilombolas da Caveira resistiram por gerações para permanecerem naquele lugar, resguardando e lavrando a terra para as suas gerações. Em meados da década de 1990, a Comunidade se reconhece enquanto quilombola devido a sua ascendência com os antigos escravizados da fazenda Campos Novos e seu longo histórico de resistência para permanecer em seu lugar. A resistência dos quilombolas da Caveira pode ser percebida a olho nu para quem visita o local, pois seus quintais são cercados de fazendas. Em 2004 a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares e no mesmo ano o processo de titulação do território foi iniciado no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). 

Em frente ao quintal de dona Rosa, foi inaugurada, em 2013, a primeira Escola Quilombola do Estado do Rio de Janeiro. Ter uma escola no território é uma demanda de décadas da comunidade que sempre teve de andar longas distâncias para estudar. A escola foi batizada com o nome de Dona Rosa Geralda da Silveira, também conhecida como Rosa da Farinha. Foi uma grande sindicalista e lutadora pelos direitos territoriais. Rosa também foi a primeira mulher a ir para a feira junto com os homens. A partir da sua iniciativa outras mulheres seguiram o seu exemplo. Dona Rosa é lembrada por sua bravura e generosidade no trato com as pessoas de sua comunidade. Infelizmente ela faleceu em 2009. A escola sempre foi um sonho de dona Rosa, que também não teve oportunidade de estudar na sua infância. A escola atende a quase 300 crianças, desde a educação infantil ao 5º ano. A comunidade sonha em que a escola chegue até o ensino médio ou até a faculdade. Para os/as mais velhos/as o principal valor que eles desejam que seja ensinado às crianças é o da união, pois foi esse sentimento que permitiu que eles continuassem existindo ali.

Origem do nome: Nome da antiga fazenda que corresponde ao atual território da comunidade remanescente de quilombo.

Processo:
  - Certificada

Município / Localização: São Pedro da Aldeia

Referência:

ACCIOLI, Nilma Teixeira. José Gonçalves da Silva á Nação Brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio. Niterói: FUNARJ/Imprensa Oficial, 2012.

ACCIOLI, Nilma Teixeira. Pagando  dia para morar. Considerações sobre a ocupação Quilombola na Região dos Lagos-Rio de Janeiro, Brasil. Ver. Diálogos Mercosur. Num. 5. Enero-Junio (2018). PP. 22-37.

COSTA, Luciana Célia da Silva. Quilombo da Caveira. Belo Horizonte: NUQ/FAFICH: OIB/FAFICH, 2016.

LUZ, Andrea Franco. Relatório Antropológico: “A comunidade Remanescente de Quilombo da Caveira.” São Pedro da Aldeia-RJ. Junho/2009.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrosio. O Desafio da Mudança: Educação Quilombola e luta pela terra na comunidade da Caveira. Tese de doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Defendida em Junho de 2020.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Formação da Identidade Quilombola no espaço escolar e a luta por direitos territoriais em Búzios, Brasil. XXXV Convegno Internacionale di Americanistica, 2013. Págs. 713-720.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. De negros a quilombolas da Rasa. Artigo publicado nos anais do Copene realizado entre 29 de julho a 2 de agosto de 2014. Belém/PA.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Isso é uma questão muito política: Relações étnico-raciais e memória quilombola no espaço escolar em Armação dos Búzios. Dissertação de mestrado em sociologia do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Niterói, Julho de 2015.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Conflitos e disputa pela terra, memória e identidade quilombola no espaço escolar da Rasa: para uma antropologia da educação em situação urbana de conflito étnico. Texto em co-autoria com Sidnei Peres. Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 a 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Uma Quilombola brasileira em Harvard: reflexões sobre estigma e autoestima. Disponível em https://www.geledes.org.br/uma-quilombola-brasileira-em-harvard-reflexoes-sobre-estigma-e-autoestima/

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Trajetória Acadêmica, raça e identidade quilombola: um breve relato biográfico. In: Dealdina, Selma (org.). Mulheres Quilombolas: território de existências negras femininas. Sueli Carneiro/Jandaíra: No prelo.

NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. O colar de Búzios: religião, gênero, preconceito e ancestralidade na vida de uma quilombola. Disponível em https://www.geledes.org.br/o-colar-de-buzios-religiao-genero-preconceito-e-ancestralidade-na-vida-de-uma-quilombola/ 

TOSTA, Alessandra. Contando Histórias: uma etnografia das narrativas e usos do passado em um povoado fluminense. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional/UFRJ. Defendida em Fevereiro de 2005. 

YABETA, Daniela. GOMES, F. S. Na Escola Quilombola. Ciência Hoje das Criancas, v. 26, p. 7-9, 2013. 

YABETA, Daniela. A escola quilombola de Caveira e outros casos: Notas de pesquisa sobre Educação e comunidades negras rurais do Rio de Janeiro (2013-2015). In: Hebe Mattos. (Org.). História Oral e Comunidade - Reparações culturas negras. 1ed.São Paulo: Letra e Voz, 2016. 

 

Redação: NAZÁRIO, Gessiane Ambrósio. Quilombo Caveira. IN: Atlas do Observatório Quilombola. Observatório Quilombola. KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, 20 de agosto 2020.

Pesquisas: Este verbete foi escrito com base na minha pesquisa de tese de doutorado em Educação, pela UFRJ, defendida em 15 de junho de 2020. A pesquisa foi realizada entre 2017 e 2020 na comunidade e na Escola Municipal Quilombola Dona Rosa Geralda da Silveira. O trabalho teve por título “O desafio da Mudança: Educação Quilombola e luta pela terra na comunidade da Caveira” e foi orientado pelo professor Dr. José Jairo Vieira -Gessiane Ambrósio Nazário é graduada em Pedagogia (UFF), mestre em Sociologia (UFF) e doutora em Educação (UFRJ)

Verbete atualizado em 30/05/2023


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