Botafogo - RJ
História:
Localizada em Cabo Frio, na Região dos Lagos, Rio de Janeiro, a comunidade quilombola de Botafogo possui suas raízes históricas vinculadas aos africanos trazidos para serem escravizados nas terras da antiga Fazenda Campos Novos. Em 1617, as terras desta fazenda foram doadas aos padres da Companhia de Jesus (os jesuítas) pelo então capitão-mor de São Pedro de Cabo Frio, Estevam Gomes. Inicialmente, os padres recrutavam indígenas para trabalharem na fazenda de gado que se formava naqueles “novos campos”. Nesse mesmo período, a mão de obra escrava é intensificada na região de Cabo Frio com a chegada dos africanos cativos ao longo dos séculos XVII e XVIII. Com a expulsão da Companhia de Jesus pelos portugueses em 1758, a fazenda e as famílias negras que ali viviam foram colocadas “na lista de bens e utensílios apreendidos pela Fazenda Real”. Nessa ocasião, a fazenda é renomeada como Fazenda D’EL Rey e posta para leilão público, sendo arrematada por Manoel Pereira Gonçalves em 1759. A partir desse momento, é iniciado o processo de desmembramento daquelas terras, estabelecendo lotes em menor escala administrados por foreiros e outros tipos de concessões como Tauá, Angelim, Fazendinha e Piraúna. Essas fazendas são importantes para a compreensão da história local, pois foram fundamentais para a configuração da estrutura do tráfico ilegal de escravizados na região no século XIX (Luz, 2013; Accioli, 2018).
Na segunda metade do século XIX, grande parte da fazenda Campos Novos, que já estava bem fragmentada, pertencia ao Reverendo Joaquim Gonçalves Porto. Com a desarticulação do tráfico ilegal de escravizados, a fazenda seguiu como um grande complexo agrícola que abastecia a cidade do Rio de Janeiro sob a utilização da mão de obra cativa. Com a morte do reverendo, os processos de apropriação da fazenda se intensificaram e assim prosseguiu até o início da década de 1920, quando Eugenio Honold adquire a vasta propriedade e agrega ao patrimônio de sua empresa: a Companhia Odeon. Eugenio Honold manteve os descendentes daqueles escravizados como seus “colonos”, pagando o dia para morar. Honold submeteu a fazenda a várias negociações, atraindo posseiros e trazendo muitos problemas para os descendentes dos escravizados. A fazenda era administrada por seu filho George Honold, que faleceu em 1949, num acidente de carro. Eugênio faleceu no ano seguinte. Em 1952, seu neto Luiz Honold Reis passa a direção da fazenda para Antônio Paterno Castelo, “o Marquês”, lembrado com muito pesar pelos mais velhos das comunidades quilombolas. Desde a construção da Rodovia Amaral Peixoto, rodovia que liga o município de Niterói a Campos dos Goytacazes, a Região dos Lagos passou a ser assediada por veranistas, o que impulsionou a Companhia Odeon a intensificar a venda dos lotes. (Accioli, 2018; Nazario, 2020)
É neste período que as famílias descendentes dos ex-escravizados começam a sofrer pressões para que deixem suas terras sem direito a qualquer indenização. Na região da Rasa, em Armação dos Búzios, muitas famílias foram expulsas. Como lembra Dona Rosa da Silveira, da comunidade da Caveira, muitas famílias da Rasa chegavam na região com a roupa do corpo, uma vez que tinham sido expulsas pelo fazendeiro. É nesse contexto que a comunidade de Botafogo inicia seu processo de luta pelo seu território. É importante ressaltar que as expropriações aconteciam simultaneamente em todo o domínio da fazenda Campos Novos. As famílias que hoje ocupam o território de Botafogo possuem parentesco com as famílias quilombolas da Rasa. Segundo dona Maria Antônia, os primeiros habitantes desta região da Restinga, em Botafogo, foram nascidos na Rasa. Sendo assim, a Rasa é um lugar de referência para esses mais velhos. (Luz, 2013; Nazario, 2020)
Ao serem expulsos da região da Rasa, eles se deslocam primeiro para uma área onde hoje se localiza a base militar da Marinha, próximo ao Rio Una. Essa base militar foi instalada na década de 1960, que iniciou uma nova fase de expulsão. Os relatos desse período são muito dolorosos de serem revividos pelos e pelas quilombolas que vivenciaram esses acontecimentos. Segundo os quilombolas mais velhos, a Marinha chegava com caminhões e os soldados arrancavam suas plantações e derrubavam suas casas. Ainda hoje, muitos acreditam que nessa região foram instaladas minas terrestres com o objetivo de intimidar as pessoas para que não voltassem a se estabelecer naquele local. Essa constatação é baseada na crença da comunidade de acordo com as idéias que a própria Marinha disseminava entre as famílias.
Após saírem daquele local, as famílias se estabelecem na região conhecida como Restinga. Ali, eles/elas são acolhidos/as pelas famílias da comunidade da Caveira que os apoiaram em seu processo de se fixarem no local. Como já indicado, na década de 1960, os conflitos entre as famílias dos ex-escravizados e os fazendeiros se intensificaram ainda mais. Muitas restrições foram impostas a essas famílias pelos fazendeiros, como, por exemplo, o acesso ao cemitério da Fazenda Campos Novos e a utilização de fontes de água.
O Sr. João dos Santos, da comunidade da Caveira, e sua esposa Dona Almerinda lembram que eles faziam mutirão à noite para ajudar as famílias dos ex-escravizados a se estabelecerem no lugar, como fazer casas (de sapê) e roças. Eles plantavam pés de banana para dificultar a expulsão das famílias pelos fazendeiros. Essa foi a estratégia de ocupação deles. Mesmo assim, aconteceram situações em que eles foram expulsos e depois retornaram ao local. Ao se fixarem na Restinga, no bairro de Botafogo, com o apoio das famílias da Caveira, eles e elas passam a integrar o sindicato dos trabalhadores rurais e ali obtêm mais ânimo para fazer valer seus direitos aos seus territórios. Além disso, a chegada de agricultores de outras localidades que se estabeleceram naquele local e passaram a compor a luta pela terra foi importante para o processo de resistência e permanência no território.
No ano de 1964, o governo brasileiro criou a Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, que objetivava criar um órgão para regulamentar a questão fundiária. Os órgãos criados foram o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), subordinado à presidência da república e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA), sob a coordenação do Ministério da Agricultura, que visava a colonização e políticas de desenvolvimento rural. (Luz, 2013)
A partir desta legislação, as famílias passaram a pagar o ITR (Imposto Territorial Rural), que é cobrado anualmente das propriedades rurais. A dívida foi paga entre os anos de 1967 a 1969, até o IBRA ser extinto em 1970 e a dívida ser destinada ao recém criado INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária) até ser repassado para a Receita Federal no início dos anos 1990. Uma questão importante é que, em 1983, de acordo com o Decreto-Lei nº 8156 de 1983, o Incra desapropriou mais de três mil hectares de terras pertencentes a antiga fazenda Campos Novos, situada no município de Cabo Frio e mais um pagamento foi imposto a esses assentados referente ao período de vinte anos, sendo três anos de carência e o restante ao longo de 17 anos. O grande problema ocasionado com o estabelecimento dessas leis, a extinção do Ibra e a desapropriação, foi que, em nenhum momento, os governantes e os representantes desses órgãos administrativos consideraram o período em que essas famílias pagaram a dívida do ITR e tampouco os anos de trabalho de arrendamento.
De acordo com o líder da comunidade, Josué da Costa, quando aconteceu a desapropriação da Fazenda Campos Novos pelo INCRA, o órgão considerou essas famílias como invasoras. Aquelas nascidas e criadas ali, que foram expulsas, todas elas foram enquadradas na categoria “posseiro”. Mediante essa situação, o INCRA emitiu um título de posse, apontado anteriormente neste texto. O problema é que as pessoas se viram sem condições de pagar. Foi a partir desta demanda que a comunidade se organizou para reconhecer seus direitos enquanto quilombola. Assim, no ano de 2004, eles fundam a associação e, em 2006, a Fundação Cultural Palmares emite a certificação da comunidade. O processo de titulação da comunidade já se encontra no estágio final, cuja efetivação depende da assinatura do presidente da República. Segundo Josué:
“No pensamento dos nossos griots, nossos ancestrais já tinham pago a preço de sangue, trabalhando dois dias por semana pra fazendeiro pra ter onde morar aqui.”
Vemos que, ao longo dos anos, o Estado tem desrespeitado e desconsiderado a luta por sobrevivência dessas famílias. Foi somente em 1988, com o artigo 68 da Constituição Federal, que essas pessoas e outras milhares em todo o país, descendentes de escravizados que se formaram a partir da resistência pela permanência e manutenção de seus modos de viver em determinado território, puderam reivindicar seu direito ao título definitivo às suas terras em que vivem ou que foram expropriadas.
A partir do artigo 68 do ADTC, dispositivo criado a partir da luta histórica do movimento negro e comunidades negras rurais e do decreto 4887/03, que a comunidade de Botafogo compreendeu a sua condição enquanto comunidade quilombola, pois, por serem descendente de escravizados da Fazenda Campos Novos, trabalharam pagando arrendamento e ainda assim nunca tiveram seus direitos plenos sobre a terra em que vivem reconhecidos. Suas trajetórias são marcadas pela desumanidade das expropriações empreendidas por fazendeiros com o apoio das autoridades locais. A comunidade quilombola de Botafogo ainda não recebeu o título definitivo de suas terras, mesmo tendo pago com trabalho e dinheiro em diversos momentos da história do país. A comunidade quilombola de Botafogo é um exemplo clássico para compreender a história do Brasil que foi forjado desde a invasão portuguesa por saques, escravidão, expropriação e genocídio das populações negra e indígena. Botafogo também é um exemplo para compreendermos que a identidade quilombola é uma construção social historicamente situada, ou seja, acontece de acordo com eventos históricos vividos pelo grupo em questão. É definida pelo próprio grupo e não por agentes externos. Não é um modelo estático de cultura, pois a própria história da comunidade revela os diferentes períodos históricos pelo qual teve de se readaptar para permanecer neste território.
Hoje, a comunidade é constituída por 250 famílias e 36 lotes. Os serviços públicos oferecidos são muito precários. O líder da comunidade, Josué da Costa, é incansável em denunciar o descaso e a necessidade de políticas públicas destinadas à sua comunidade e as constantes invasões que continuam a acontecer, evidenciando o caráter racista do Estado em não garantir os seus direitos constitucionais. O quilombo de Botafogo segue em resistência pelo seu território.
Origem do nome:
Processo:
- Certificada
Município / Localização: Cabo Frio
Referência:
Accioli, Nilma. Pagando dia para morar. Considerações sobre a ocupação Quilombola na Região dos Lagos – Rio de Janeiro, Brasil. Rev. Diálogos Mercosur. Num. 5. Enero – Junio (2018), ISSN 0719-7705 pp. 22-37.
Luz, Andrea Franco. Relatório Técnico de identificação e delimitação dos Remanescentes da comunidades dos quilombos de Botafogo. Cabo Frio - Rio de Janeiro. Outubro/2013.
Nazario, Gessiane. O desafio da mudança: educação quilombola e luta pela terra no quilombo da Caveira, RJ. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. Rio de Janeiro: Junho de 2020.
Redação: Nazário, Gessiane. Quilombo Botafogo (RJ). IN: Atlas Observatório Quilombola. Observatório Quilombola. KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, 2021.
Verbete atualizado em 30/05/2023<< Voltar para listagem de comunidades