Boa Esperança - RJ
História:
O Quilombo Boa Esperança está localizado no Município de Areal, Estado do Rio de Janeiro, e toda sua extensão forma hoje o bairro rural de mesmo nome, cujo principal acesso se dá pela BR-040, Km 36,5. A comunidade configura-se como um pequeno núcleo habitado com fortes laços de parentescos e que guarda histórias contadas entre gerações, registrando suas origens e o estabelecimento nas terras que habitam até o presente. De forma central, são os relatos orais e a longa permanência naquelas terras que fortaleceram, ao longo do tempo, a identificação com os remanescentes da escravidão e da resistência a esta (01).
De acordo com os relatos passados entre avós, pais e filhos, as terras, que hoje pertencem à comunidade e já foram bem mais extensas, faziam parte da propriedade de um fazendeiro chamado Domingos Pereira da Costa, no idos do século XIX. Há duas vertentes de registros orais que se entrelaçam para explicar como se deu a transmissão das terras de Boa Esperança aos antepassados dos atuais moradores. A primeira conta que, após a extinção da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888, o senhor fazendeiro doou uma porção de suas terras para 15 famílias de seus então ex-escravos, que ali trabalharam, permaneceram e deram origem a comunidade de Boa Esperança, nomeada assim por refletir a esperança na libertação (02).
A segunda vertente dos registros orais transmitem as motivações de Domingos da Costa para a doação das terras aos escravos recém-libertos. As mulheres antepassadas de uma das moradoras mais antigas (03) contaram a ela que sua bisavó Deolinda da Conceição foi babá ‒ talvez, ama de leite ‒ do senhor Domingos desde muito pequeno até a juventude dele, criando assim um vínculo afetivo entre senhor e escrava (04). Por essa relação, Domingos, ao final do século XIX, passou as terras de Boa Esperança a sua escrava Deolinda e, por conseguinte, às 15 famílias escravas, cujos descendentes até hoje ali residem.
Os relatos se entrelaçam ao expressar diferentes vivências e formas de enxergar a relação senhor-escravo dentro do regime escravista: primeiro há a legitimidade de posse da terra oriunda do fato de ali terem sido explorados seus antepassados negros africanos por um regime violento e desumano de trabalho, que caracterizou a escravidão, principal forma de exploração de mão de obra no Brasil por mais de 300 anos. Nesse aspecto, o escravo negocia e ganha a confiança do senhor e é indenizado com a posse da terra. Por outro lado, há a experiência do escravo e da escrava doméstica que dentro da casa, devido a suas funções, podiam estabelecer vínculos ambíguos e assimétricos de afetividade com o senhor, não sem a face de exploração e violência, obter a confiança e, com isso, a liberdade e a posse de terras.
Fato é que a atual comunidade de Boa Esperança descende diretamente daquelas 15 famílias de libertos que se estabeleceram na área desde o final do século XIX. Essas famílias foram unindo-se em casamento entre si, e, em menor medida, foram recebendo pessoas de fora, o que se pode observar pela relação de parentesco entre quase todos os habitantes atuais da localidade. A partir de meados da década de 20 do século XX, as lideranças comunitárias tiveram o cuidado de pagar os impostos sobre as terras e de guardar todos os comprovantes a fim de assegurar a posse delas dentro da comunidade original.
As memórias guardadas pelos moradores mais velhos nos apontam também, e com ênfase, para os locais de castigo do período de escravidão dentro das terras de Boa Esperança. O Morro do Tira Manha e o Morro da Forca são dois desses locais distantes do núcleo habitado que toda comunidade conhece pelas histórias. No Tira Manha se aplicava castigos aos escravos que demonstrassem pouca disposição para o trabalho. Tais castigos podiam incluir os usuais açoites ou manter o indivíduo exposto ao tempo por horas ou dias sem alimento, esta última forma provavelmente era o que se fazia ali, visto que o local era retirado e área de plantio dos pés de café. O Morro da Forca é um local de mais difícil acesso, onde, como contam, os cativos recebiam castigos sem que pudessem ser ouvidos ou encontrados com vida.
A comunidade remanescente de Quilombo de Boa Esperança tem em seu território uma capela devotada a Nossa Senhora da Conceição, cuja fundação também remete à origem da localidade. Conta-se que uma imagem de Nossa Senhora da Conceição foi encontrada no meio de uma “soca” de bananas na atual área de Boa Esperança pelo senhor das terras, Domingos Pereira da Costa. Por esse achado, o senhor determinou que no local fosse construída uma capela para a imagem. Após a abolição da escravidão, é notório que várias mulheres da comunidade, como a própria Deolinda, citada acima, possuem Conceição como nome ou sobrenome, assim como a ocorrência da expressão “terras da santa” (05). A capela, que passou por duas reformas e por fim foi reconstruída, era local de rezas com traços de várias matrizes religiosas, como também, festas da padroeira ou de casamentos, momentos estes de confraternização da comunidade com muita música e danças, lembrados pelos moradores mais antigos.
Os relatos orais também fazem menção à prática do Jogo de pau em Boa Esperança até meados do século XX. Trata-se de um jogo, identificado em vários Quilombos no Vale do Paraíba, que simula espécie de luta entre duas pessoas com golpes de pedaços de pau. Surgiu, possivelmente, como meio de defesa e neste ponto guarda afinidades com a capoeira urbana (06).
Em meados dos anos 2000, a comunidade de Boa Esperança criou o Grupo de Capoeira Raiz com integrantes de várias idades, como uma forma de integração entre os moradores e de resgate e fortalecimento das matrizes culturais de sua ancestralidade.
Parte da comunidade mantém nas terras de Boa Esperança plantações de legumes, mantendo uma prática de agricultura familiar para venda fora da comunidade. Depoimentos rememoram que, diferente de hoje, as famílias de Boa Esperança podiam viver de suas próprias plantações, demandando de comprar apenas o que não podia ser plantado.
Até os dias atuais, integrantes da comunidade produzem a rapadura para venda fora da comunidade, seguindo uma receita tradicional também transmitida por gerações.
Por toda essa vivência comunitária em torno de suas histórias e pertencimento à terra, em 2013 a comunidade foi certificada pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo - de acordo com processo de autodeclaração do grupo, e desde então luta pela titulação de seu território através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Origem do nome: O nome Boa Esperança deve-se, segundo relatos de moradores e moradoras, ao fato de os/as escravizados/as nutrirem a esperança de serem libertos um dia. Com a abolição da escravatura, muitos/as negros/as libertos/as decidiram ficar na localidade e continuaram a manter a vida da forma comunitária como estavam organizados.
Processo:
- Certificada
Município / Localização: Areal
Referência:
(01) - Para o conceito de Quilombo como resistência ver: SILVA, Valdélio Santos. Rio das rãs à luz da noção de quilombo. In: Afro-Ásia. n. 23. Bahia: Universidade Federal da Bahia, 1999.
(02) - FONSECA, Celso da Cruz. Entrevista concedida a Olívia Dulce Lobo e Joede Bezerra. Areal- RJ. 20/10/2018,
(03) - CONCEIÇÃO, Emília Maria da. Entrevista concedida a Olívia Dulce Lobo e Joede Bezerra . Areal- RJ. 24/11/2018,
(04) - Para escravidão doméstica ver: MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. "O que fará essa gente quando for decretada a completa emancipação dos escravos?": serviço doméstico e escravidão nas plantations cafeeiras do Vale do Paraíba.In: Almanack, Guarulhos , n. 12, p. 65-87, abr. 2016 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332016000100065&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 29 jul. 2020. https://doi.org/10.1590/2236-463320161205.
(05) - O registro consta no relatório de antropologia do processo de Titulação. Processo 54180.001444/2013-43
(06) - VERSOS e Cacetes: O jogo do pau na cultura afro-fluminense. (Documentário). Direção: Matthias Röhrig Assunção, Hebe Mattos. Rio de Janeiro: Laboratório de História Oral e Imagem – LABHOI, UFF, 2009, 1 Documentário (37 min). Disponível em: http://www.labhoi.uff.br/passadospresentes/filmes_cacetes.php, Acesso em: 09/07/2020.
Redação: LOBO, Olívia D. Quilombo Boa Esperança (RJ). IN: Atlas do Observatório Quilombola. Observatório Quilombola. KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, 14 de agosto de 2020.
Mais informações: Olívia Lobo é graduada (2013) e mestre (2017) em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Verbete atualizado em 30/05/2023<< Voltar para listagem de comunidades