Da Igreja e da Universidade para a Clandestinidade... 09/12/2014 |
Trecho da entrevista com Zenaide Machado de Oliveira e Antonio Carlos Oliveira, sociólogos, oriundos da Igreja Presbiteriana Independente Leia a íntegra no livro "Memórias Ecumênicas Protestantes", de Zwinglio M. Dias
Zenaide –Meu nome é Zenaide Machado, depois de casada eu adotei o “de Oliveira”. Nasci no Rio de Janeiro, filha de nordestinos, de pais que acolheram migrantes como eles em nossa casa, ex-prisioneiros, trabalhadores e Getulistas, com uma mãe evangélica, simpatizante do Partido Comunista, e um pai Presbítero. De um lado ou de outro a origem da minha família é de origem evangélica. Pelo lado do meu pai são evangelizadores, pastores e presbiterianos Independentes. Pelo lado da minha avó materna a origem é a Assembleia de Deus. Sou uma carioca suburbana. Nasci e vivi durante décadas em Cascadura. Éramos da Igreja Presbiteriana Independente de Osvaldo Cruz. Um bairro próximo a Cascadura. Tenho 69 anos de idade. Sou Cientista Social formada na UNICAMP e também titulada como Mestre em Economia na UNICAMP. Atualmente moro em Campinas. Sou casada aqui com Antonio Carlos. Temos um filho, Flavio, que é formado em Direito, mas é músico, é instrumentista. Sou uma anistiada política pelo Estado brasileiro. Em 2005, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça me concedeu a anistia reconhecendo que fui perseguida pelo Estado brasileiro no período da Ditadura, por 16 anos. Estive presa três anos e 33 dias. Depois, mais a frente vamos retomar a essa vivencia. Fui perseguida antes da prisão e vivi como foragida por mais de três anos e fui condenada pelos tribunais militares a 19 anos de prisão. Antonio Carlos – Eu sou Antonio Carlos de Oliveira. Nasci em 1º de maio de 1939, em Sorocaba, estado de São Paulo. Filho de um artífice mecânico da Sorocabana que morreu aos 32 anos e quatro meses e de uma mulher que de educação formal, só teve até o 3º ano primário, mas graças a um curso técnico de costura ela nos criou, nos sustentou com muita labuta, com muita luta. Quando meu pai morreu eu tinha três anos e meio. Nós fomos pra Jacutinga, onde meu avô estava instalado. Ele era o típico anarquista espanhol da piada. Ele era artífice. Fazia relógio de Igreja. Quando se converteu ao Protestantismo todos os seus clientes eram padres. Então ele brigava com os padres. Ficamos em Jacutinga até eu fazer oito, nove anos. Fomos pro Rio onde eu tinha uma tia, casada com um técnico da Tecelagem Deodoro que foi onde começamos. E minha mãe já era protestante. Minha avó era protestante e muito protestante! E levamos uma carta de apresentação do pastor de Jacutinga para o pastor da igreja de Osvaldo Cruz. Entrei na adolescência. Muita dificuldade. Minha mãe trabalhava muito. Criou uma escola de corte e costura. Costurava pra fora. Uma luta danada. E aí, quando eu entrei na adolescência, eu estava um pouco perdido. Comecei o ginásio, parei. No ano seguinte, minha mãe teve a luminosa ideia de me mandar pro “Instituto José Manoel da Conceição” (Seminário pré-teológico da Igreja Presbiteriana do Brasil, em Jandira, SP), com a ajuda do Rev. Paulo Martins de Almeida. que foi onde eu aprendi para vida. Lá entrei em contato com a cultura, com a religião, com a política. Embora os valores familiares sejam fundamentais também. Minha mãe, minha família, era uma família que tem ligação com valores fundamentais muito fortes. Tínhamos nossos problemas e dificuldades, mas sempre passaram os valores muito forte mesmo. Minha mãe foi até o fim da vida contribuinte para missão Kaiowa (trabalho missionário da Igreja Presbiteriana do Brasil). Minha mãe era muito ligada a esse trabalho com os índios... num momento de fantasia da minha mãe, ela achava que eu poderia ser Pastor! Sempre trabalhei, minha carteira foi assinada com 12 anos. Então fiz o ginásio no Conceição e tive uma bolsa pra ir pro Mackenzie onde fiz o Colegial. Depois fui entrar na batalha do vestibular de Medicina. Fiz isso em São Paulo, Conceição e Mackenzie. Resolvi ir pro Rio pra fazer Medicina por que achava que era possível continuar trabalhando, arranjando algum quebra galho, um bico pra fazer o curso. Passei no segundo ano de vestibular. E fiz dois anos de medicina. Nós estávamos na atmosfera da Revolução Cubana. Quando passei no vestibular me aproximei do Partido Comunista. Eu já estava totalmente afastado da Igreja. Mas eu abri a questão para incorporar a necessidade de encarar isso. E isso ampliou meus horizontes com novos desafios. E foi um problema de toda geração, nesse sentido. Estive preso, mas não por muito tempo, pois não encontraram nossas ligações. – Quer dizer que seu afastamento da Igreja significou um questionamento da estrutura eclesiástica? Antonio – Certamente. Esse era o centro da discussão teológica naquele momento. A discussão era sobre quais são as formas de viver a fé acima da instituição. Separar a fé da instituição. Eu acho que é isso. Zenaide – Você me perguntou, Zwinglio, como foram minhas experiências Primeiro tinha essa questão da Igreja que eu acho que era um valor da Igreja, que era a possibilidade de uma convivência fraterna. A questão da justiça e da equidade. Esses foram valores que sempre pautaram e orientaram a minha vida. A Igreja vai fazer uma ponte com a vivência que vem depois. A gente vai se sensibilizando pra um determinado olhar. E uma coisa que fez a passagem pra minha vida adulta, que me permitiu essa transição foi o golpe. O golpe de 64. Eu tinha 19 anos. Eu vi o impacto que isso foi na minha família, na minha casa. Enfim. Naquela ocasião a gente já tinha muito contato com membros do Partido Comunista. Eu comecei a me interessar por esse negócio. Porque o sentimento de indignação contra a deposição de um governo legítimo foi muito forte. E eu tinha 19 anos. Estava aberta para embarcar num sonho. Um sonho marcado por questões generosas. – Então, você trazia uma bagagem muito positiva em termos de valores vindo de sua experiência familiar e da comunidade eclesiástica? Zenaide – É, da igreja realmente... tive experiências com as quais eu tenho uma enorme dívida de gratidão. Eu acho que na Igreja só aprendi coisas boas, só tive uma vivência construtiva e vi ali uma comunidade. As pessoas tinham enorme interesse uma pelas outras, um interesse generoso. A Igreja tinha muitas práticas sociais. Prática de amparar os pobres, prática de amparar desassistidos e isso como coisas sistemáticas, como ações comunitárias mesmo. Eu tive gestos concretos quando eu passei a ser perseguida pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, foram vários os gestos mas especialmente três se destacaram. De um grande amigo meu que era da Igreja, sobrinho de um pastor. Passamos a nossa infância e adolescência juntos, que é o Avelino Gomes Moreira Neto, sobrinho do Rev. Sebastião. Ele me abrigou na casa dele. Ele era na ocasião, já formado em Direito, hoje ele é um Procurador aposentado. Enfim, atos da maior generosidade, de humanidade, porque naquela época da ditadura, você sabe Zwinglio, o que isso representava. Ele tinha duas filhinhas pequenas. A outra figura era um membro da igreja, uma diaconisa Leonor Vasquez de Oliveira, mãe do Antonio Carlos, mas na época nós não tínhamos um relacionamento. Não éramos casados. Ela fez isso por ato absoluto de generosidade, de fraternidade, de humanidade. Me conhecia desde pequena. Sei também de um outro membro da Igreja que na ocasião, quando eu era procurada pelas Forças Armadas, os órgãos de repressão... saiam notícias no jornal... Cartazes... aquela coisa toda como terrorista... esse membro da Igreja se aproximou do meu pai e disse: Presbítero estou a sua disposição. O senhor, sua esposa, sua filha. O que precisarem de mim, contem comigo, estou a sua disposição. E depois disso, quando eu saí da prisão, nas festas de família que eram feitas na igreja, aniversário de casamento dos meus pais e aniversário deles, aniversário de minha sogra também, sempre fui acolhida com o maior carinho, o maior respeito na Igreja. – E quais foram pra vocês os piores momentos nessa experiência? Zenaide – Olha, antes de falar da parte negativa eu quero ressaltar a parte positiva. Eu acho que o engajamento da militância vem de um sentido profundo de esperança. Esperança na possibilidade de uma convivência entre as pessoas. Esperança na possibilidade de uma outra sociedade pautada por valores, que acho que se constituem em questões permanentes da humanidade. Que são os valores da justiça, da equidade, da igualdade, da riqueza compartilhada. Então eu acho que eu conheci e tive experiências fantásticas, compartilhei com muitos essa aposta. Foi uma aposta dura que exigiu muito de todos nós. Porque o confronto com o Estado de terror era um confronto que se travava em condições de absoluta desigualdade. Era o monopólio da força, dos agentes públicos, das Forças Armadas que se apropriaram de um Estado e que implantaram um projeto que violentou a nação, a sociedade. Essa possibilidade de resistência, essa unidade é que nos deu forças. Para mim é uma experiência inestimável. Que mudou minha trajetória e eu valorizo essa minha vivência como um patrimônio fundamental do qual eu não abro mão. Apesar de tudo que eu sofri depois. Que não sofri só como eu, pessoa, sofremos todos nós. Nós companheiros. Nós que militamos. Os que foram assassinados, os que foram torturados, os que enlouqueceram. Os que tiveram marcas decisivas e não conseguiram sobreviver. Enfim. Apesar disso tudo eu acho que para nossas vidas, nós que conseguimos sobreviver, isso foi uma experiência sem par. É singular. Não abro mão dela. Antonio Carlos – Gosto muito da citação do juiz argentino, José Luiz nesse processo da Argentina quando disse: A questão do Estado terrorista só tem duas alternativas: uma é que não houve guerra nenhuma, foi uma caçada de coelhos. Outra alternativa a isso é que eles são criminosos de guerra. Zenaide – Eles são criminosos de guerra. Antonio Carlos – Pois é. De um lado a desigualdade absoluta. Eles criaram uma guerra que não existia a serviço de interesses estrangeiros. Zenaide – De interesses antinacionais. Antonio Carlos – Porque na verdade quem é o inimigo? O inimigo fundamental deles? O único inimigo real do império é o nacionalismo. Então o que esses caras fizeram foi destruir um projeto nacional. Foi uma re-colonização. O país não teve nenhuma defesa. Eles são culpados pela covardia e pela traição nacional. É a destruição de um projeto nacional que balizava todos os horizontes, tudo o que as pessoas faziam, levava em consideração a grande massa da população. Zenaide – Um país que tinha uma experiência de incorporação da população ao crescimento, às formas do desenvolvimento. Carregando, claro, muitas injustiças. Mas que tinha uma pauta que demonstrava efetivas preocupações e o projeto do governo João Goulart era isso. Reformas de base, era isso. Não se pretendia nem comunismo, nem socialismo. Mas era um regime com a preocupação de incorporar a população trabalhadora à cidadania. Tá certo? E nós tínhamos um ambiente de cultura, um ambiente social. Nas artes, em tudo. Um ambiente de muita vibração. Esplendoroso. Na resistência isso permaneceu. Era um ambiente muito pujante, muito iluminado. E isso claro ajudou, porque foram diversas formas de resistência. Não só as formas, digamos, de luta armada. Foram muitas as possibilidades abertas de resistir. Agora, você me pergunta da parte mais negativa, da dor. A dor são as mortes. A dor são as várias formas de sofrimento. O silenciamento que a ditadura impôs à sociedade, a destruição da luta operária, camponesa. Da luta política. A destruição dos partidos. A destruição das liberdades, das formas de expressão. Dos instrumentos de organização da sociedade. Isso é a dor. A dor vem com a tortura, com as mortes, com as execuções que persistem até hoje com a questão, por exemplo, dos crimes continuados, dos corpos desparecidos... Onde está o corpo de Amarildo? Essa é uma questão que permanece até hoje. – Vocês falando como fiéis, como leigos, como vocês estavam vendo esse movimento? Por que a gente sabe que vários setores apoiaram o golpe... Antonio Carlos– Eu estava lembrando, que consta que o autor do texto do AI-5 foi o Benjamin de Morais. E o do AI- 2 foi o Gueiros... Que depois foi nomeado governador do Pará, ambos protestantes. Zenaide - Tratava-se de setores da Igreja sem conhecimento, limitados, de ignorância mesmo. Quando surge movimento ecumênico muito entendiam que era comunista. Ecumenismo é o comunismo. Era um obscurantismo decorrente de uma ignorância. Antonio Carlos – A demonização do que eles chamam de comunismo pra mim é uma continuidade absoluta com a Santa Inquisição. Você cria um demônio, você combate o demônio como se ele existisse. Quando você vê a história da América Latina com o nacionalismo latino-americano, você entende que nacionalismo é uma coisa e o que eles chamam de comunismo é outra coisa. Você não pode falar que o cara da Guatemala, do México, Venezuela, são comunistas. Não é a questão do Comunismo que está em voga. Até porque teoricamente não tem nenhuma condição de você pensar que você pode passar de uma sociedade escravagista por uma sociedade que eles chamam de comunista. Agora, a experiência do século XX, da criação de uma sociedade pós-capitalista, mostra que o caminho é muito mais complicado do que essa simplificação que o anticomunismo faz. Trata-se uma utilização fraudulenta, o anticomunismo. O que está em questão é a propriedade hoje, são as condições hoje. Esse negócio de comunismo só Deus sabe. Essa guerra anticomunista tem um ar da Santa Inquisição. Mas, no geral não vejo nenhum racha significativo. Ou por ignorância, ou por covardia, sei lá. Se formaram como um rebanho pra onde a coisa tocava. Zenaide – Então nesse sentido, se incorporaram às forças civis que apoiaram o Golpe. Antonio Carlos – Alguns até com participação efetiva, como aquele bispo Metodista lá de São Paulo que era do DOPS, que faziam o papel de policial. Tem o caso de um pastor que era sargento da Aeronáutica e me disseram que ele colaborava. O golpe teve uma capacidade de mobilização muito grande em todos os setores conservadores da sociedade. Você chega pra um pequeno comerciante, de uma cidade dessas e diz: nós estamos numa batalha contra o comunismo ateu que quer tomar seu negócio... Eles criaram colaboradores em tudo quanto foi cidade. A oligarquia local, de toda as cidades, está aberta pra esse negócio. O pavor do comunismo e tal e coisa. Então eu acho que basicamente a Igreja foi uma forma de apoio. Zenaide – Esse estigma é da sociedade. Perdurou durante décadas, mesmo depois de soltos sofremos dificuldades. Hoje, parece que somos valorizados. O Estado brasileiro nos concedeu formas de reparação. E o Ministério da Justiça hoje acolhe todo esse aparato internacional que briga na justiça de transição. Antonio Carlos – Ao inverso da máquina de propaganda da imprensa. A imprensa persiste na mesma imagem caricata que se tinha antes, de terroristas e etc. – Vocês chegaram a alcançar alguma situação de conflito entre jovens e as outras estruturas eclesiásticas ? Zenaide – Não apenas no comportamento, mas na política também, por que eles eram não só opressores na questão comportamental mas também muito conservadores, reacionários na questão da política. Então eu lembro, por exemplo, do Rev. Sebastião. O Rev. falava alguma coisa que eu achava absurda eu não me continha, levantava o dedo dizendo: eu discordo. E a gente já tinha uma discussão filosófica, enfim, que quebrava os limites daquela religiosidade muito estrita. Eu lembro sim que tínhamos conflitos com alguns Presbíteros... Tinha o conflito e tinha os pastores que sustentavam esse comportamento nosso, dos jovens mais insubordinados... Havia Seminários, Congressos, Encontros da moçada, no Paraná e em vários Estados do Brasil. E tinham alguns pastores com outras abordagens; eu lembro, por exemplo, de uma vez o Rubem Alves dizer: “Com Cristo no barco tudo vai muito bem... não vai não!” - E vocês se casaram? Antonio Carlos – Sim, no militar! Zenaide – Quando fui presa, depois do período de tortura, de incomunicabilidade, em uns nove ou 11 quartéis lá na Vila Militar. Então ali só meu pai, minha mãe e meus irmãos é que podiam me visitar. Então nós tínhamos que nos casar pra podermos ter um encontro, um contato. Naquela época não tinha visita matrimonial, nada disso. Casar era uma possibilidade da gente se encontrar por meia hora que fosse, enfim, com gente vigiando, tenente anotando tudo... mas podíamos nos encontrar. Ele não “pediu” minha mão ao meu pai, “pediu” para o Auditor da 2ª Auditoria do Exército. Um juiz nos casou. No dia o pastor Evaldo foi, era da família do meu pai, mas ele não fez o casamento religioso. Ele pretendia até dizer algumas palavras, mas ali estava uma confusão danada, muita imprensa, eu ia algemada, aí depois, já queriam me levar logo, rápido. Sabe? Então ele acabou sem condição de falar. – E a prisão, o que alegaram, de que lhe acusaram? Zenaide – Quando fui presa eu já vivia como foragida há muito tempo. Eu já era uma condenada à revelia. Eu tinha uma condenação da Marinha, uma condenação da Aeronáutica. Tinha vários inquéritos, processos, enfim. Eu fui presa, eu já era uma clandestina... Cartazes de procura, nome divulgado na imprensa... Saía na imprensa escrita, falada. Eu fui presa num contexto de infiltração dentro da organização. Eu consegui, em várias situações, me desvencilhar de armadilhas, de cercos. Mas eu fui presa. Fui presa pelo Exército, na equipe tinha membros também do DOPS, mas foi pelo 1º Exército. Pela polícia do Exército da Barão de Mesquita, pra onde eu fui levada. Fiquei incomunicável por cerca de 50 dias, grande parte na polícia do Exército da Barão de Mesquita outra parte na Polícia do Exército da Vila Militar, no antigo Pelotão de Investigações Criminais. Era um dos lugares onde se sofria todo tipo de torturas, de constrangimentos físicos, psicológicos, emocionais. – Ser mulher era pior nesse caso? Zenaide – É difícil dizer se era pior. Não tem quem não tivesse sofrido todo tipo de violência, constrangimento e tortura. Eu acho que sermos mulheres com os torturadores homens, eles usavam essa condição de gênero, também como um instrumento de tortura. Talvez nós mulheres tenhamos um pouco mais de abertura para falar dessas coisas, mas eu sei que os companheiros também foram torturados de formas terríveis. Cassetete no ânus, por exemplo, para um homem, heterossexual, era uma coisa terrível. E fizeram isso com muitos. E muitos morreram desse tipo de tortura. Por exemplo, o Mario Alves. O sofrimento físico com o tempo ele se apaga, mas ficam, outras dores... . Essas são permanentes. – E você foi libertada na Anistia? Zenaide – Eu fui antes da Anistia. Eu saí em outubro de 1974. Naquela fase em que a Ditadura já fazia o seu caminho para aquilo que eles chamavam de projeto de distensão lenta, gradual e segura. Foi um período em que os Tribunais Militares foram orientados a se pautar no julgamento pelos testemunhos em juízo e pelas provas colhidas em flagrante. Todos os processos que resultaram em condenações, se baseavam em depoimentos extorquidos sob tortura, nas revisões, nos recursos em outras instâncias, essas sentenças começaram a ser anuladas. Assim eu fui absolvida no Superior Tribunal Militar. Eu cumpri três anos e 33 dias mas o que restou de condenação depois dessas revisões foi um ano e meio. Como eu, muitos jovens de origem evangélica entraram na luta armada. Eu estou falando luta armada, mas havia muitas outras formas de resistência à ditadura. Eu conheci além do Ivan Mota Dias, a Eleni Guariba, o Juarez Guimarães de Brito, O Roberto Chagas... nós militamos juntos... Antonio – Tem muita gente. De repente você descobre que o cara tem uma herança parecida... Você poderia contar um pouco sobre o Ivan, irmão do Zwinglio? Zenaide – Ivan, também era protestante, ele e eu éramos estudantes de História na UFF. Então nos conhecemos naquele ambiente universitário. É chopinho, é discutir política, ir pro cinema no Paissandu, não é? Ele era de uma linha política diferente da minha. O Ivan era da POLOP. Nós fomos juntos para um Congresso de História em BH. Fizemos muito política estudantil. Inclusive com Ivan, nós participamos de uma chapa. O Ivan era o Presidente da chapa e eu a Vice. Nós não ganhamos o Centro Acadêmico, mas, enfim vivemos muitos anos juntos e depois ficamos clandestinos e compartilhamos a militância cotidianamente. Aí já estávamos na mesma organização que era a Vanguarda Popular Revolucionária a VPR. Quando a gente começou nessa militância nós não tínhamos mais vínculo com a Igreja. Eu como militante, eu não tinha mais vínculo nenhum com a Igreja. E nem com a religiosidade. Era uma outra maneira de cultivar valores. O Ivan era uma figura incrível, culta, extremamente interessante. Ele era um cara alegre pra caramba. Muito inteligente e preparado, muito articulado. Ele gostava de cinema, de música... Encontrar com o Ivan todo dia era uma coisa que enriquecia a vida. Ele não tinha aquela aridez que a política impõe na vida da gente, de só falar daquilo... Enfim, ele era um cara que tinha preocupações muito amplas. Então, conviver com ele no dia a dia era uma maravilha... – E você Antônio, como esteve preso? Antonio Carlos – Eu estive preso uns 10 dias na Vila Militar com o Waldo César. Trata-se da Operação ARP. Não era Ação Popular, era ARP mesmo. No nosso burocratismo, com a dissidência, criamos um partido que se chamava Ativo Resolutivo Permanente (ARP). Era só prá intrigar o Estado. Nós entramos na operação ARP... Uma figura que acabou de morrer, um personagem dessa história da prisão era um tal de capitão Ribamar Zamith... Que quando o Waldo foi depor ele o interrogou... Era um ambiente de pressão, eram formas psicológicas de tortura... O capitão se sentava na cadeira e o soldado na grade e faziam os homens de idiotas... Também conheci vários quartéis. O Waldo falando sobre as viagens dele pra Genebra, pra não sei onde... O tal Zamith com aquela mentalidade de baixa classe média ressentida, procurava ridicularizá-lo.... Tinha um Sargento lá que era um monstro em tamanho. Tinha definição de músculo até no dedo. Um monstro. Você chegava lá e o capitão falava assim: Bráulio, você é que vai cuidar deles... Um dia eu encontrei esse Bráulio na rua, quase que me caguei de medo... Mas o Waldo falava de Genebra, não sei mais o que... e o capitão dizia: Sargento, olha só esse homem, usa terno de tergal, mora em Copacabana... não é ridículo?!!.. Mas voltando ao ARP, um dia um dos redatores desse negócio foi preso... Era o nome de um setor da dissidência Estudantil da Guanabara, com documento e tudo “Ativo Resolutivo Permanente!!!” Então, por causa do R queriam descobrir o que era, mas não conseguiram relacionar isso com o Partido ou R de revolução.
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