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A Igreja Universal e a Fome: Novos Hábitos de um Velho Projeto

Por: Pedro Rebelo

Pedro Rebelo é professor de História,
pós graduado em Ciência da Religião,
atuante na luta por liberdade religiosa e
direitos humanos e colaborador de KOINONIA

Izala é uma velha conhecida do Brasil. Está por aqui há, pelo menos, cinco séculos. Em alguns raros momentos da nossa História ela pareceu mais branda, mas sempre esteve de ronda. Para quem tem a felicidade não conhecê-la, Izala é a fome. O termo é do idioma kimbundo, mais utilizado no Candomblé da Nação Angola, embora não seja raro o uso do termo pelas demais nações para se referir a este mal.

Izala nunca foi amiga do povo de santo. Não se passa e nem se deixa passar fome em um terreiro. É ewó, é quizila, e no Brasil ela reflete nossa pobreza material, e também espiritual, na medida em que as obras de caridade sempre foram uma ferramenta de aculturação e apagamento da fé não cristã dos mais pobres (leia-se população preta e indígena).

Esse raciocínio passa longe de ser uma crítica à quem ajuda o próximo. A Teologia da Libertação, por exemplo, soube bem como conciliar o partir do pão com a luta pela socialização do trigo. E talvez isso nos falte, principalmente a nós Povos Tradicionais de Matriz Africana: comungar e conscientizar entre os nossos.

Há poucos dias, um Bispo da Igreja Universal, uma das lideranças máximas no Estado do Rio de Janeiro, o Bispo Jadson Santos, que inúmeras vezes realizou supostas sessões de “descarrego” atribuindo o mal aos nossos Orixás e Guias, publicou em suas redes sociais uma foto em que fazia uma oração dentro de um terreiro. Na legenda foto dizia:

Deus abençoe a Mãe “x” e seus filhos de Santo!
Esses que nos recebeu em seu centro,
onde fizemos doações de 55 cestas básicas e bíblias. [SIC]

Quero aqui poupar a identidade da Mãe de Santo, por entender que ela é meu povo e eu não cumpro aqui o papel de algoz dos meus. Eu quero refletir sobre o que levou aquele terreiro a abrir suas portas para que nosso principal agressor dos últimos 40 anos ali entrasse, com a falsa pretensão de amor ao próximo e distribuísse Bíblias e fizesse oração. Por que não ajudou apenas? Não tão difícil chegar a uma conclusão.

No ano passado, por exemplo, 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais 116,8 milhões de pessoas passaram por alguma situação de insegurança alimentar, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. E não foi apenas no contexto da pandemia que a fome voltou a patamares absurdos no Brasil. Há uma política de morte em escala desde 2016 quando Temer acenou paro o Agronegócio e deixou de mão a Agricultura Familiar. Bolsonaro seguiu a mesma cartilha e com a pandemia, escancarou-se a profunda desigualdade deste país e só não foi ainda pior por conta do Auxílio Emergencial. Entre 2004 e 2020, mais de 60% de quem passou fome era preto.

É nesse cenário que entram as instituições religiosas de diferentes tradições com ações sociais. Tudo muito louvável e importante, afinal de contas, nenhum trabalhador desperta sua consciência de classe com a barriga vazia. É ilusão pensar que quanto pior, melhor. E é essa mesma barriga vazia que pode servir de instrumento de barganha e dominação.

A Igreja Universal sabe como aproveitar os momentos históricos. Nos anos 1980 e 1990 jogou pesado contra os terreiros de forma aberta e violenta até que a reação veio e após processos judiciais, mobilização e empoderamento do povo de santo, se viu obrigada a adotar novas táticas. No entanto, seus demônios continuam com os nomes de sempre nas sessões de descarrego: Zé Pelintra, Exu Caveira, Maria Padilha, Maria Navalha… Dia desses até um suposto Preto Velho eu vi numa rara exibição midiática de descarrego.

A tática nos últimos anos foi majoritariamente outra: seduzir pelo discurso do dinheiro, da vida boa, da certeza de sucesso, mais barato que um jogo de búzios e um bom ebó. Assim, a IURD tem cooptado os mais pobres, em sua maioria pretos e periféricos, a deixarem sua ancestralidade por promessas de prosperidade.

Embora seja verdade que nos anos de Lula e Dilma algumas políticas públicas foram fundamentais na garantia de direitos e reafirmação dos povos de terreiro, também é inegável que a governabilidade contribuiu para o avanço neopentecostal. O mesmo movimento que deu o tom da narrativa do golpe de 2016.

Agora, voltando ao mapa da fome, ouso dizer pregar prosperidade não tem sido tão eficaz, afinal o poder de compra e o bem-estar social estão em baixa, então ressurge o assistencialismo proselitista para a alegria de Izala. Trazem o pão e, também, o seu deus (minúsculo, por se tratar de um deus materialista).

Estes que batem à porta dos nossos terreiros mais vulneráveis, os terreiros que não têm acesso à políticas, editais, que estão apenas vivendo a sua realidade diária, não querem saciar o corpo, querem arrebanharas almas que consideram condenadas. Junto de uma cesta básica, um símbolo: uma Bíblia. Junto com a Bíblia, uma oração nada despretensiosa em espaços sagrados que já viu muito sangue derramado no frio chão, por este mesmo credo que ajudou a demonizar e perseguir o nosso.

E a grande questão que não quer calar é: Onde estão os nossos? O que nos falta para conectar os terreiros mais estruturados que conseguem captar recursos, cestas básicas e serviços, com aqueles que necessitam?

A era do virtual está aí. É hora de honrar Ogun com o uso das nossas tecnologias e honrar Esù, estabelecendo redes de comunicação a fim de garantir auxílio aos nossos, pois Izala sempre quer mais e não se saciará apenas pelo estômago, ela quer nos devorar e re-devorar em até que não sejamos mais nós.

Izala não é apenas o reflexo de uma crise. Izala é um projeto político e espiritual.

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